sábado, 22 de outubro de 2011

Domingo




Poema de Domingo
Quando chega domingo,
faço ten­ção de todas as coi­sas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pen­sar…
E há os que vão para o campo
cheios de gran­des sen­ti­men­tos bucó­li­cos
por­que leram, de vés­pera, no bole­tim do jor­nal:
« Bom tempo para ama­nhã»…
Mas uma mai­o­ria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aque­les que pas­seiam com a mulher e os filhos
são mais gene­ro­sos.
Um rapaz que era pin­tor
não disse nada a nin­guém
e esco­lheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a famí­lia e os ami­gos
andam pen­sando por­que seria.
Só não rela­ci­o­nam que se matou num domingo!
Mari­a­zi­nha San­tos
(aquela que um dia se quis entre­gar,
que era o que a famí­lia dese­java,
para que o seu futuro ficasse resol­vido),
Mari­a­zi­nha San­tos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apal­pem as coxas
e abafa os sus­pi­ros mor­dendo um len­ci­nho que sua mãe lhe bor­dou,
quando ela era ainda muito menina…
Para eu con­tar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noi­tes frias e lon­gas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sor­rir aos homens que pas­sam!
E a cos­tu­rei­ri­nha mais honesta que eu namo­rei
ven­deu a vir­gin­dade num domingo
 — por­que é o dia em que estão fecha­das as casas de penhores!

Há mais amar­gura nisto
que em toda a His­tó­ria das Guerras.

Par­tindo deste prin­cí­pio.
que os eco­no­mis­tas des­co­nhe­cem ou fin­gem des­co­nhe­cer,
eu podia des­truir esta civi­li­za­ção capi­ta­lista, que inven­tou o domingo.
E esta era uma das coi­sas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as rapa­ri­gas ama­riam no tempo pró­prio
e tudo seria natu­ral
sem men­di­gos nas ruas nem casas de penhores…

Penso isto, e vou a gran­des pas­sa­das…
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gri­tar o que sen­tia,
mas todos acha­ram estra­nhos os meus modos
e estra­nha a minha voz…
Mari­a­zi­nha San­tos foi para o cinema
e outras mene­a­ram as ancas
 — ao sol
como num ritual con­sa­grado a um deus! —
até che­gar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida…

Venha a misé­ria maior que todas
secar o último res­to­lho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas ser­ras;
venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a gran­des pas­sa­das
como um louco maior que a sua lou­cura…
O rapaz que era pin­tor
aconchegou-se sobre a linha fér­rea
para que a morte o des­fi­gu­rasse
e o seu corpo anó­nimo fosse uma ban­deira trá­gica
de revolta con­tra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a famí­lia ao necro­té­rio e ficou ater­rada!
Conheci-o numa noite de bebe­deira
e acho tudo aquilo natu­ral.
A cos­tu­rei­ri­nha que eu namo­rei
deixava-se ir para as ruas escu­ras
sem nenhum receio.
Uma vez que cho­via até entrá­mos numa escada.
Somente sequer um beijo tro­cá­mos…
E isto por­que no momento pró­prio
olhava para mim com um pro­pó­sito tão sereno
que eu, que dela só dese­java o corpo bom feito,
me punha a obser­var o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela sere­ni­dade
de pes­soa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obs­tá­culo
que nesse ins­tante as minhas mãos segu­ras­sem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés…
(ela está sem­pre com sujei­tos decen­tes)
e quando nos fita­mos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nas­cido
para fazer as coi­sas mais herói­cas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
 — rapaz, traz-me um café…
O meu amigo, que era pin­tor,
contou-me numa noite de bebe­deira:
 — Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o fute­bol…
E como os olhos se me ene­vo­as­sem de água,
con­ti­nuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
 — .… no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e pas­sava um dia intei­ri­nho de domingo
segu­rando uma cana donde caia um fio para a água…
… um dia pes­cou um peixe,
e nunca mais lá vol­tou…
O pior é pen­sar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda ale­gre
como se fosse uma festa?… —
O rapaz que era pin­tor sabia uma ciên­cia rara,
tão rara e certa e mara­vi­lhosa
que des­lum­brado se matou.

Pago o café e saio a gran­des pas­sa­das.
Hoje e depois e todos os dias que vie­rem,
amo a vida mais e mais
que aque­les que sabem que vão mor­rer amanhã!

Mari­a­zi­nha San­tos,
que vá para o cinema mor­der o len­ci­nho que sua mãe lhe bor­dou…
E os senho­res sere­nos, acom­pa­nha­dos da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tos­tão na mão dos pedin­tes…
E a menina das horas lon­gas e frias
con­ti­nue pela mão de sua avó…
E tu, que só andas com cava­lhei­ros decen­tes,
ó cos­tu­rei­ri­nha honesta que eu namo­rei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a misé­ria maior que todas
secar o último res­to­lho de moral que em mim resta;
e eu fica­rei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas ser­ras:
e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,
eu vou fazer as coi­sas mais belas
que um homem pode fazer na vida!

Manuel da Fonseca

via
http://enfado.org/2006/06/27/poema-de-domingo/

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