sábado, 26 de novembro de 2011

Nocturno Diurno




Crítica de Pedro Boléo no Público de Hoje, P2,10

Onze Cartas de António Pinho Vargas

"A primeira parte apresentava uma obra nova, estreada em Outubro na Casa da Música, no Porto, e agora refeita no S. Carlos, em Lisboa. Chama-se Onze Cartas e é uma interessante reflexão sinfónica sobre a criação artística, escrita por António Pinho Vargas. Uma obra para orquestra sinfónica, electrónica e três nar...radores pré-gravados. Onze Cartas que merecem leitura atenta. A partir de textos de Italo Calvino, Jorge Luis Borges e Bernardo Soares, o compositor procurou fazer "uma espécie de sinfonia-ópera ou ópera-sinfonia que na verdade acabará por ser uma coisa Outra", como escreve Pinho Vargas no programa do concerto. Coisa outra, onde se sente a presença de uma voz orquestral própria: ali coexistem texturas tensas e intensas fracturas, a presença da palavra e intervenções pontuais da electrónica, numa conjugação original que integra coerentemente os diferentes meios, produzindo assim um "texto musical" aberto ao que de novo pode vir a ser (na obra, no mundo). Uma música com pontos de interrogação, cortes, mas também melancólicas continuidades. Uma composição que tem perguntas lá dentro... sobre os próprios caminhos da obra. Os textos dos três escritores (textos sobre o próprio acto de escrever, as possibilidades, os conflitos, as razões, as contradições da criação) surgem sobre o som de uma grande orquestra, com variadas percussões e um alargado conjunto de metais. E aqui a orquestra mostrou-nos com clareza suficiente a "interrogação forte" que constituem estas Onze Cartas.

O que é escrever? O que é possível escrever? Por que se escreve? E o que fica do que se escreveu? Pinho Vargas escolhe autores contraditórios, e eles dialogam no interior da obra. As filosóficas melancolias (investigações interiores do homem e do texto) de Bernardo Soares (lidas por Pinho Vargas, o autor da música, o que agrava o efeito de auto-reflexão da obra) estão distantes do esforço de rasgar horizontes largos (exteriores) de Borges ou da clareza materialista e aberta ao mundo de Italo Calvino, o escritor cujas palavras inauguram a "conferência" musical que Onze Cartas também é. Mas do diálogo entre os três nascem luzes e sombras que a música, embora num outro plano, integra com a sua reflexão própria, sonora, com a sua poética do inacabado e da "falha". Até chegarmos a um momento-chave, na voz de Pinho Vargas lendo Bernardo Soares: "Por que escrevo então? Porque ainda não aprendi a renúncia." A música responde numa passagem com enorme força, em que a desistência se transforma em existência, em que a dúvida se torna possibilidade de resposta, em que a melancolia se faz esperança em acção. Sim, vale a pena compor"

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