O nosso caminho não é de relva suave, é um trilho de montanha pejado de muitas pedras. Mas segue em frente, para cima, rumo ao Sol. E encontrarás a serenidade. Ruth Westheimer
quinta-feira, 4 de abril de 2013
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
PARTE II
1 — Região dos saloios e suas zonas
II — A's portas da capital. Cidade de Lisboa. Entre Belém e Cascaes
III — Da Outra-Banda á enseada de Sines
IV — DiSTRiCTo DE Leiria
POUTDIiliL PITTOQESGO E ILLDSTQIIDO
II
AEX
A
EZA
ALBERTO PIMENTEL
SEGUNDA PARTE
I — Região dos saloios e suas zonas
II — A's portas da capital. Cidade de Lisboa. Entre Belém e Cascaes
III— Da Outra-Banda á enseada de Sines
IV— Districto de Leiria
LISBOA
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
SOCIEDADE EDITORA
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MDCCCCVlll
SEGUNDA PARTE
I- Região dos saloios e suas zonas
Caracterisação geral
5s dividimos a região dos saloios em duas zonas, a saber:
a) Zona de installaçao.
b) Zona de penetração ou irradiação.
A primeira representa o habitat inicial dos mouros — tolerados
— do arrabalde de Lisboa e dos seus immediatos descendentes.
A segunda exprime a natural expansão d'esses primeiros occu-
padores, do sul para o norte, obliquando, como um braço de po-
voação, para a Arruda, Sobral e margem do Tejo, e seguindo quasi em linha recta de
Mafra para Torres Vedras, d'onde, por entre a Lourinhã e o Cadaval, se prolonga até
Óbidos.
Os habitantes de todos estas localidades oíferecem caracteres e costumes inteira-
mente análogos aos dos saloios do Termo de Lisboa (zona de installaçao) accusando assim
uma origem commum.
A linha de expansão tinha forçosamente que desenvolver-se sobre o norte, porque
ao oriente o Tejo e ao occidente o Atlântico fechavam por estes dois lados o território,
que é, como sabemos, uma península — a península de Lisboa.
Posto isto, vamos vêr qual foi o ponto de partida, a zona de installaçao.
Esta zona está comprehendida no actual districto de Lisboa, e na margem direita
do Tejo, sendo limitada ao nascente por este rio, ao occidente pela costa marítima, ao
sul pelas villas de Oeiras e Cascaes, e ao norte pela villa de Mafra ou, se quizerem,
pela villa de Torres Vedras.
Por outras palavras, é todo o antigo Termo de Lisboa^ expressão mais vaga e inde-
cisa, porque ao passo que Luiz Mendes de Vaconcellos lhe dava dez léguas de compri-
mento e cinco de largura, contando-as desde Torres Vedras a Cascaes, João Baptista
de Castro apenas lhe reconhecia nove léguas de extensão, e de largura pouco mais de
três, tomando por limites Oeiras ao sul e Santiago dos Velhos ao norte.
O que é certo é que a antiga expressão Termo de Lisboa se relacionava única-
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
mente com o habitat dos saloios, e não em geral com os arredores de Lisboa, porque »
apenas abrangia os habitantes da margem direita do Tejo e não os da margem esquer-
da, alguns dos quaes, como os de Almada e Cacilhas, ficavam a menor distancia da
capital do que muitos d'aquelles
Portanto essa expressão claramente visava o typo ethnographico do saloio que ex-
pansivamente alastrou para o norte, mas que foi contido ao oriente pelo curso do Tejo,
como ao sul e ao occidente pelo mar.
Typo tradicionalmente resistente desde o principio da monarchia até hoje, o saloio
tem em verdade conservado a sua caracterisação originaria de raça estranha tanto nas
feições como nos costumes, apenas, quanto a estes, com explicáveis transformações no
vestuário, que é de todos os costumes europeus o mais facilmente evolutivo.
A opinião geral attribue aos saloios uma origem marroquina, quer dizer, conside-
ra-os descendentes dos mouros que occupavam Lisboa antes da conquista christã e que
por tolerância de Affonso Henriques aqui ficaram abairrados, depois d'ella, tanto den-
tro da cidade (Mouraria) como fora d'ella isalotos).
O mouro é natural do norte de Africa, como o árabe o é do occidente da Ásia.
No século vii os árabes irromperam pelo isthmo de Suez no Egypto, na Núbia, na
Abyssinia. Durante o mesmo século alongaram a sua conquista pela Mauritânia até ao
Atlântico, e apesar da rivalidade em que viveram com os mouros e berberes, povos
aborigenes, deixaram na Africa, como eterno vestigio do seu dominio, a religião e a
lingua.
As raças do actual império de Marrocos (antiga Mauritânia) foram cruzadas pelos
árabes, mas a população indígena ficou predominando ethnologicamente pelo meior nu-
mero.
No século vni, os árabes invadiram a nossa Península e aqui, como na Africa, ára-
bes e mouros disputaram como invasores o poder, até que os mouros conseguiram esta-
belecer se na Espanha e senhorear a Lusitânia.
O saloio é descendente dos mouros, e por isso tem mais de africano que de árabe,
raças ainda hoje distinctas em Marrocos, onde cohabítam os mouros, os berberes, os
árabes e os negros, além de numerosos judeus.
Os árabes são um povo nobre, muito vivo, artista e intelligente, sempre activo e
nómada.
O mouro é sedentário, indolente, triste e monótono.
O saloio representa este elemento improgressivo, esta raça estacionaria. Tem muito
de mouro, alguma cousa de berbere, e pouco de árabe, a não ser, mais evidentemente,
a influencia longínqua do vocabulário.
N'uma palavra, o saloio é africano de origem, e os seus hábitos de vida, as suas
tendências hereditárias ainda hoje o revelam.
A designação — saloio — conforma-se com esta genése; apenas ha divergência
quanto á etymologia do vocábulo.
N'este ponto são cinco as opiniões conhecidas.
Querem uns que a palavra çaloio (graphia antiga) ou saloio (graphia moderna) te-
nha vindo de çalá, que assim se chamava a oração que os primitivos mouros estabele-
cidos nos subúrbios de Lisboa rezavam, segundo seu culto, cinco vezes por dia.
Pretendem outros que o vocábulo derivou de Çalé ou Salé, cidade marítima da
Mauritânia •.
Conjecturam alguns que proceda de Salama, saudação usual entre os povos ma-
hometanos.
' ^alé é um porto marroquino, que está separado de outro porto, Rabat, apenas por um rio estreito.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
O marquez de Rezende, com o apoio de outros eruditos do seu tempo, suppÕe que
o nome — saloio — seria um appellativo para distincção de mouros oriundos de tribus
mais qualificadas, visto que só nos arredores de Lisboa se deu aos mouros este nome,
e a mais nenhuns.
Finalmente, uma quinta opinião inclina se a crer que çaloio venha de um antigo tri
buto — çalaio — que se pagava do pão cozido em Lisboa e seu termo, e que era conhe-
cido pelo nome de pão saloio *.
Esta ultima opinião não importa uma relação necessária com a remota origem mar-
roquina dos saloios ; mas falam mais alto do que ella os caracteres ethnographicos e até
a circumstancia de terem sido os mouros suburbanos que durante séculos forneceram
de pão a capital.
Podia mesmo succeder que o nome do tributo viesse do nome dos que principal-
mente tinham que pagal-o.
O que é certo é que ainda hoje se dá ao pão manipulado no arrabalde o nome de
«pão saloioí, sendo especialmente afamado o de Melleças.
No interior da cidade, o typo marroquino degenerou facilmente pelo cruzamento, e
foi absorvido na população christã; mas no campo essa absorpção teve de ser contrariada
não só pela vida solitária como pela exigua unidade das povoações, que puderam assim
conservar o seu typo originário, ainda depois da descaracterisação religiosa da raça se
sobrepor á sua origem histórica.
A população avançou para o norte, á procura de terra, mas não recebeu elementos
estranhos, antes se consolidou ethnographicamente pelas relações sexuaes dentro da
mesma colónia.
Em nossos dias a região dos saloios mantém as tradições dos seus primeiros e re-
motos habitantes em quasi todos os costumes e usos que d'elles recebeu, incluindo
grande numero de vocábulos — a começar nas designações topographicas de muitos
logares.
Quem entra n'essa região reconhece a presença de um elemento ethnographico que,
não obstante séculos de aclimação, cristallisou em alguns dos seus caracteres hereditá-
rios.
Os processos de cultura evidenceiam nitidamente a antiga feição mauritana.
A horta saloia, verdejante e húmida, regada pela nora, permanece inalteravelmente
a mesma de geração em geração.
As designações são ainda árabes : a horta é a arrifana ; a nora é a naura mussul-
mana; e os alcatruzes que elevam a agua de rega nunca perderam o seu nome de origem.
Entre as plantas hortenses avulta em lindos taboleiros a clara e fresca alface, que não
conservou entre nós a sua designação laúna-lactuca (d'onde os trancezes derivaram
laiíue) mas que bem patentea ainda ter provindo da voz arábica alchasse.
E aqui me lembra dizer que talvez fosse a predilecção dos mouros do arrabalde
por esta cultura que fez generalisar o consumo da alface em Lisboa, por onde veio aos
lisboetas o cognome de alfacinhas.
A casa saloia, ordinariamente pequena, apenas com dois compartimentos, é coberta
por esse pittoresco telhado que ainda chamamos «mourisco» e parece um livro escan-
chado com a lombada para cima.
Em algumas casas, mais pretenciosas no exterior se bem que talvez não melhoradas
* Sobre a origem da palavra saloio vejam-se : Elucidário de Viterbo, vocab. Çaloio ; Vestígios da
língua arábica, vocab. Çaloio; Panorama, vol. ii, pag. 124; Miscellanea de Miguel Leitão, dialogo xii ;
Bluteau, Vocabulário; Marquez de Rezende, Panorama, vol. xi, pag. 36ó.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
no interior, apparece a tradição marroquina de um pequeno terraço ou a^oteia, quasi
sempre ajardinado no parapeito com vasos de craveiros e amores-perfeitos.
O modo como o saloio appareiha o seu burro — pobre camello da Europa — é actual-
mente o mesmo que os primeiros colonos da região empregavam: é ainda o albardão
mourisco com o arção em meia lua.
E os ceirÓes de esparto bifurcados no dorso da azemola são a copia flagrante de
um costume persistente em Marrocos.
Em todas as manifestações externas da vida social, o saloio apenas deixou perder,
quasi inteiramente, a tradição de seus remotos ascendentes na maneira de vestir.
Os mouros, como se sabe, gostam das cores luminosas. O seu cafta é amarello,
verde ou azul ; o cinto ordinariamente vermelho, o aike branco e as bahuchas amarellas.
E' natural que durante os primeiros reinados da monarchia portugueza os mouros
abairrados usassem os trajes da sua raça, mas a pouco e pouco, até para não serem
vexados pelos christãos, procuraram imitar estes no vestir.
Tal foi a razão por que Affonso IV ordenou que todos os mouros, quando não
usassem os seus fatos tradicionaes, trouxessem um signal {almexia) que os diíferençasse
da população christã.
Alem d'isto, a legislação portugueza punha restricções sobre a medida e feitio das
aljubas e alquicés que os mouros vestiam.
E as cortes iam reclamando successivamente contra quaesquer abusos que elles com-
mettiam n'esta matéria, especialmente por se esquivarem a trazer o signal.
D. João II, respondendo ás cortes, ordenou novas instrucções sobre o trajo dos
mouros e insistiu no distiiictivo — uma lua de panno vermelho no hombro direito.
Como se sabe, D. Manuel decretou que fossem expulsos do reino não só os judeus,
mas também os mouros, que recusassem baptisar-se.
Presos á terra portugueza por interesses agrícolas, industriaes ou commerciaes, os
mouros acceitaram a conversão sem grande reluctancia, tanto mais que o mahometismo
era já para elles uma religião dynamisada em successivas gerações, e a almexia um
distinctivo que os humilhava perante os christãos.
Por sua parte, D. Manuel, que se mostrou implacável com os judeus, os quaes foram
barbaramente expulsos por que não tinham quem os vingasse, foi transigente com os
mouros, que possuíam uma pátria aguerrida e podiam n'ella exercer duras represálias
contra os christãos que lá residiam.
Foi-se descaracterisando por aclimação ou conveniência o traje tradicional dos mouros
de Lisboa e do arrabalde.
Comtudo, ainda na primeira metade do século xix havia no vestir dos "saloios al-
guma coisa de exótico e pittoresco, como se reconhece pelo conhecido couplet da farça
lyrica O Beijo^ lettra de José Maria da Silva Leal, musica de Angelo Frondoni, repre-
sentada em 1844 no antigo theatro da Rua dos Condes :
Sou saloia, trago botas,
Também trago meu mantéu,
Também tiro a carapuça
A quem me tira o chapéu.
A saloia do Termo perdeu o mar.téu c a carapuça; ficaram lhe apenas as botas,
que são calçado assaz resistente, próprio para repetidas marchas e caminhadas.
O mantéu era de parrilha (saragoça) e de cor berrante como o collete, ou pelo
menos assim foi no século xviii, segundo se vê do Anatómico jocoso :
frr-
ií?
íf^ : ;
EMPREZA DA HISTORIA DE PC^TUGAL
Também a senhora
saloia dos queijos,
cara de laranja,
olhos de morcego,
gibão de pretinas,
collete vermelho,
saia deliruada,
mantéu amarello !
A saloia vem a Lisboa todos os dias se vende leite, fructas, hortaliça ou legumes
e todas as semanas se é lavadeira.
Foi o arrabalde saloio que deu ao vocabulário portuguez o substantivo collareja,
mulher de Collares, que por extensão ficou designando toda a regatoa ou vendedeira
d'aquelles géneros.
Um outro substantivo, de idêntica origem, está hoje obliterado : quero referir-me
á frieleira ou frialeira, mulher de Friellas, que outr'ora vendia peixe pelas ruas n'uma
celha que trazia á cabeça.
As varinas desíhronaram n'este mister as frialeiras.
Exceptuando as botas pregueadas, a saloia actual veste como as mulheres do povo
no sul: jaleco, e saia de chita sobre outra de baeta encarnada; lenço na cabeça.
A saia é sempre curta, o que se explica pela necessidade de preserval-a da lama
nas estradas ou ruas e da agua nos rios e lavadouros.
A saloia não só lava a roupa das suas freguezas, mas também vem trazel-a á ci-
dade, com a trouxa umas vezes á cabeça, outras n'um burro ou n'uma carroça, e na
volta, ordinariamente, junta-se com outras lavadeiras, empoleirandose todas sobre as
trouxas no alto da carroça.
Venham para cá os médicos falar do contagio pelos micróbios nas roupas sujas ou
infeccionadas !
Não consta que nenhuma lavadeira saloia tenha morrido por causa das roupas alheias.
Na Paschoa, a lavadeira costuma trazer ás freguezas o presente de um molho de
louro, de rosmaninho e alfazema, para defumadouros.
E' um laço armado á gorgeta ou folar.
D'antes a venda do conhecido queijo saloio, feito de leite de cabra ou ovelha, era
realisada em Lisboa pelas mulheres do arrabalde. Agora essa espécie de queijo ven-
dese em todas as mercearias e logares de fructa, e também apparecem alguns homens
a oíferecêl-o por portas em cabazes, como acontece— logo o diremos melhor—com os
morangos no verão.
A lavadeira saloia, na sua peregrinação semanal em Lisboa, de bairro para bairro,
de rua para rua, de casa para casa, apenas tem um pensamento fixo, uma ideia domi-
nante : receber o seu dinheiro e voltar para a sua aldéa.
Na capital, é como um exilado doente de nostalgia. Nada do que Lisboa pode, cada
semana, offerccer para cila de novidade, lhe prende a attenção.
Nas estalagens *, durante a noite, emquanto descansa na tarimba de pinho, com
a cabeça sobre uma trouxa, creio que a incommodará menos a dureza do catre do que
a anciã de vêr luzir a manhã para despachar-se e abalar.
Em algumas povoações do Termo, sobretudo n'aquellas que tiveram conventos de
freiras, a industria feminina conserva por tradição local o fabrico de certos doces de
nomeada.
A maior ^e todns é a dos (Jamillos, na rua do Amparo.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
Assim, por exemplo, em Odivellas ainda hoje se vendem, em casas particulares, os
famosos esquecidos^ os não menos famosos suspiros, e a marmelada famosíssima.
O saloio também, pararellamente, se descaracterisou no traje.
Veste jaqueta, faixa, calça de bocca de sino, cobre-se com o gabão, em jornada
com a manta, e usa botas de bico com salto de prateleira.
Na cabeça traz carapuça, que antigamente brilhava de cores vivas, talvez por lon-
gínqua tradição do barrete vermelho dos mouros.
Eftectivamente, muitas vezes a carapuça era encarnada com orla branca ; outras
vezes azul com orla encarnada.
Também o saloio, quando queria passar por janota, usava collete vermelho, jaleca
azul e botas brancas.
Hoje a carapuça é ordinariamente preta, como a faixa. Só de longe a longe se vê
uma carapuça verde; e já apparecem muitos chapéus desabados, alguns á Mazantini.
Outr'ora, no verão ou no inverno, o saloio usava, em todos os actos solemnes, um
capote azul de capuz extenso.
Era, pouco mais ou menos, o alborno^ dos antigos mouros do arrabalde.
A saloia degenerou completamente quanto á celebrada belleza das mulheres marro"
quinas, talvez por os duros trabalhos e violentas intempéries que desempenha e arrosta.
Das mouras que outr'ora viviam em Portugal, escravas ou forras, diz a tradição
escripta que eram lindas e interessantes. Gil Vicente, no auto do Jui\ da Beira, fala de
uma «galante mourinha» e António Prestes, no auto do Procurador, emprega a expres-
são «mourinha d'aljofre».
As saloias apenas poderão hoje igualar-se ás mouras na brancura dos dentes, que
estas conservam esmaltados com a fricção de certa erva e aquellas talvez por eífeito da
silica contida no centeio do pão de mistura que as alimenta.
Mas em verdade é raríssimo encontrar-se uma saloia bonita : se eu não tivesse visto
uma, loira e branca, em Villa de Rei, logar da freguezia de Bucellas, não comprehen-
deria que o sr. visconde de Castilho (Júlio) tivesse escolhido uma Beatriz de Odi/ellas,
f branca, alta, com uma pelle de setim», para animar a traça amorosa do seu romance
Amor de mãe.
São excepções muito raras.
Em geral, a saloia é feia, morena, e ossuda.
Alem d'isto, arisca, áspera, e tão interesseira como o saloio, o que explica talvez
est 'outro couplet da farça lyrica O Beijo:
— Oh ! saloia, dá-me um beijo,
Que eu te darei um vintém.
— Os beijos d'uma saloia
São caros, mas sabem bem.
O saloio, physicamente, desfigurou-se menos em relação ao typo originário da sua
raça; e, moralmente, tem ainda d'ella irrecusáveis vestígios.
E' moreno e feio, se bem. que menos nutrido do que o mouro em Marrocos, porque
trabalha mais do que elle, em parte talvez por eífeito do nosso doce clima.
Todavia, entre os saloios, a mulher trabalha incomparavelmente mais do que o ho-
mem.
Nos olhos d'elle, se não ha o brilho que illumina o olhar do árabe, observa-se com-
tudo uma certa expressão de astúcia natural. ,
O saloio é manhoso por instincto.
Fala pouco, corno em geral o mouro, até por desconfiança ; ao contrario do árabe,
que é animado no trato e na conversação.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Uma anecdota authentica vai pintar-nos desde já o caracter astuto, interesseiro c
avaro do saloio.
Certo dia, o prior de uma das mais importantes freguezias do Termo foi procurado
por um lavrador abastado, seu parochiano e amigo.
— Olá, você por cá?! dizlhe o padre.
— E' verdade, sr. prior. Venho trazer-Ihe uma lembrança...
E dizendo isto, pousava sobre uma cadeira um enorme saco que trazia.
— Uma lembrança?! Ah, sim. . . Mas eu já lhe tenho dito muitas vezes que não
quero que se incommode . . .
— Isto de nada vale, sr. prior. Trago aqui as primeiras batatas que se apanharam
lá na minha horta. São uma perfeição. O sr. prior ha de gostar da uovidadesica . . .
— Mas vamos a saber: o que é que o traz por cá?
— Sr. prior: como vossa senhoria sabe, estão perto as inspecções para o serviço
militar. Ora o meu filho, o Manuel, vae ás sortes este anno. Eu, com franqueza, não
gostava de o ver com as correas ás costas. Bem sei que elle é um rapagão, lá isso é;
mas se o sr. prior quizesse, com a sua influencia, o rapaz podia sair livre. ..
— Homem! veiu você em má occasião. Já foi tempo em que me mettia n'essas coisas.
Agora não : não quero saber de politica, não trabalho em eleições, e um favor d'esses
só se faz a um grande influente.
O saloio embatucou.
— Isso é a sério, sr. prior ? atreveu-se a perguntar.
— Muito a sério. Mas não desanime. Vá ter com Fulano, que está agora dirigindo
a politica cá da freguezia. Elle lhe fará esse favor. E diga-me uma cousa : quanto julga
você que possam valer essas batatas ?
— As batatas? Boas como são, não as largaria por menos de ura cruzado...
— ^Está bem. Quer beber uma pinga?...
— Isso não se recusa.
Mandou o prior vir uma caneca com vinho. O saloio bebeu, de um só trago, lim-
pando depois vagarosamente a bocca á face dorsal da mão esquerda.
— Diz-me então o sr. prior que vá ter com Fulano ?
— Sim, digo. E será servido. Olhe, tome lá este cruzado. E' para dar uma pinga
ao seu rapaz. . .
Tirou o saloio do bolso uma grande carteira de couro vermelho, cingida por uma
tira de cabedal, e n'ella guardou o dinheiro.
— Muito obrigado, sr. prior. Beberemos á sua saúde. E agora, se me dá licença,
vou falar com o sr. Fulano. Adeus, sr. prior.
— Adeus. Volte por cá quando quizer.
Encaminhouse o saloio para a porta e ia a abril-a, quando bruscamente, parecendo
tomar uma súbita resolução, se deteve.
— Sr. prior. Já agora mais um pedido.
-Diga lá.
— Se vossa senhoria me desse licença, eu levava este saco de batatas para ofiferecer
ao sr. P^ulano.
— Pois não, á vontade. . .
— Então com sua licença. . .
E, sobraçando o saco, sahiu com toda a scmccrimonia '.
' Esta nnecdotn é transcripta de um artigo do Século (de 12 de outubro de 1901) escripto por
meu filho, que durante quatro annos exerceu a clinica em varias povoações saloias.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
No sentimento da avareza pode o saloio considerar-se um perfeito e completo exem-
plar da sua primitiva raça.
Um pcrtuguez que visitou modernamente Marrocos informa que aNão ha nada que
atemorise mais o mouro do que dizer-lhe ou fazer-lhe conhecer que é ricoB.
Isto em parte é devido ao receio pelas rapaces exacções dos baxás e do próprio
sultão.
Como todos os avarentos, o mouro esconde os seus thesouros, e diz-se que manda
enterrai os por um escravo ao qual mata depois para que o segredo do esconderijo não
possa ser revelado.
O saloio também aferrolha as suas economias, e porventura as enterra, tradição
que parece ter ficado dos mouros em todo o nosso paiz.
232 — Uma fonte saloia, quadro de Gameiro
(A figura da saloia é representada á antga, com o e>>u carapuço)
Teme-se dos ladrões, dos vizinhos, dos filhos, dos enteados, dos genros e do escri-
vão de fazenda.
Quando as filhas estão para casar, e os noivos reclamam o dote, ou quando os fi-
lhos querem casar e reclamam a sua legitima, ha por via de regra serias questões na
família.
Se o saloio casou com uma viuva rica, embora feia e velha — o que muitas vezes
acontece por simples ambição — levantamse graves conflictos quando os filhos do pri-
meiro matrimonio, chegando á maioridade, exigem a partilha das terras.
Então o saloio prefere questionar a renderse, e birra em ir ])ara os tribunaes sus-
tentar uma longa demanda que lhe custa ás vezes mais dinheiro do que as terras valem.
Todo o saloio é demandista por um inconsequente espirito de avareza.
Também é religioso como seus avós os mouros, se bem que reze menos orações
do que elles, não só porque a religião christã não é tão exigente n'este ponto como a de
Mahomet, mas também porque o saloio trabalha mais do que o mouro.
Cinco vezes por dia vão os mahometanos orar á mesquita, e de cada vez lavam os
pés antes de entrar a porta.
O saloio não se lava nunca, nem mesmo quando nos domingos e dias santos vai
ouvir missa á igreja da freguezia, o que jamais deixa de fazer.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Mas se a religião christã o obrigasse a determinadas abiuções, creio bem que, eiiv
bora contrariado, as praticaria, porque é tão disciplinadamente religioso, quanto cega-
mente supersticioso.
Apesar de dominado pelo espirito de avareza, não repelle nunca as occasiões de
gastar dinheiro com uma festa de igreja ou com a entrada de um cirio.
Falo até com certa largueza, sobretudo se lhe distribuíram um papel importante,
o de mordomo da funcção ou juiz do cirio.
A credulidade supersticiosa dos árabes, transmittida á Península por elles e pelos
mouros, creou fundas raizes no saloio.
Não ha nenhum que deixe de acreditar em bruxas, em almas do outro mundo, em
maus olhados e outras abusões.
Contra todos estes malefícios procura o saloio defender- se com rezas, com ben-
zeduras, com defurnadouros e com amuletos, entre os quaes tem iogar primacial a
figa.
O gosto dos mouros pela dança reconhece-se ainda nos saloios.
Ficou celebre em Portugal a memoria das antigas choreas que os mussulmanos
trouxeram á Península, taes como a Pella e a Mourisca.
O saloio morre pelo serão de dança, a que elle chama brincadeira, e que se realisa
nas noites dos domingos e dias santos n'uma casa ou loja para esse effeito cedida, pa-
gando os rapazes bailarinos a despesa do petróleo.
Comquanto a influencia das danças citadinas tenha alastrado para o arrabalde, ainda
não foram inteiramente banidas as danças aldeãs, e n'estas o rythmo é arrastado e lento
como nos bailes mouriscos, em que o pandeiro, a guitarra de três cordas e as palmas
das mãos acompanham preguiçosamente a cadencia choreographica.
N'estas danças propriamente saloias a musica não é mais viva do que em Marro-
cos : o harmónio, instrumento que a produz, não fere o ar nem os ouvidos, e menos
ainda convida ao sonho.
Sonho I o saloio é rebelde a toda a idealisação. N'elle, o casamento ou representa
uma conveniência ou mera sympathia : amor allucinado nunca.
Não ha Romeus, assim como não ha Othellos no Termo de Lisboa.
No muro do derrete., durante a feira das Mercês em Cintra, as raparigas, sentadas
como em exposição, esperam que os rapazes as «conversem».
Parece ser um vestigio de tradição mussulmana. Ainda hoje, entre os berberes, se
faz em certas épocas uma feira de mulheres novas onde os solteiros as vão escolher
para casar, e os casados para completarem o seu harém.
Um auctor portuguez que escrevia em i858 diz que era o padrinho do noivo que
se dirigia á casa da noiva, e ahi era esperado pelo padrinho d'esta, para fazer o pedido
de casamento.
A porta da casa estava fechada, e de dentro demoravam-se em abril-a para simu-
lar resistência.
Este costume não foi exclusivo das povoações saloias em Portugal, nem o foi
dos mouros, dos berberes ou dos árabes, mas filia-se provavelmente na exogamia
oriental.
Também o mesmo auctor portuguez, falando do casamento dos saloios, diz que
no dos mais ricos «vão atraz do préstito uns poucos de carros conduzindo o enxoval
da noiva».
Não sei que este costume subsista hoje.
Mas prevalecem ainda o tiroteio de confeitos á sahida do templo e o jantar das bo-
das, com o seu arroz doce obrigatório.
Palmeirim, descrevendo Um casamento nos saloios, refere-se a estes dois costumes,
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
«a saraivada grossa de confeitos» e as «travessas de arroz doce, litteralmente envolvi-
das em canella e casca de limão». '
Assim é, com a dlflerença, porém, de que o arroz doce vem repartido em tantos
pratos quantos são os convivas; e cada conviva deve despachar o seu prato ou então,
dizem os saloios, não fa- a ra-{ão á festa. -
Findo o jantar, o padrinho mais auctorisado começa a propor Padre-Nossos por
alma dos parentes dos noivos, singular contraste com a alegria d'um noivado.
Em seguida principia o bailarico, no qual a noiva toma parte, parecendo ter esque-
cido completamente o noivo, que por sua vez não mostra impaciências nem desejos,
tão certa é a ausência de fortes impulsos affectivos no casamento saloio.
Esta mesma ausência se faz notar tanto no adultério como no casamento.
A saloia raras vezes atraiçoa o marido, justamente porque as paixões amorosas e
os apetites sexuaes são sempre moderados na sua raça, tanto no homem como na mu-
lher, e talvez também por um instincto religioso de respeito aos cânones.
Mas se alguma vez prevarica, as outras censuram-n'a dizendo que anda amai enca-
minhada»; comtudo, se ella não abandona o lar conjugal, o marido não a expulsa, não
a odeia porque nunca a amou, e todos acabam por esquecer o delicto.
Parece á primeira vista inexplicável o facto de ter a saloia muitos filhos sendo tão
pouco amoraveis os cônjuges : é que ambos elles estimam tel-os por motivos diversos.
O homem vê no augmento da familia um elemento de prosperidade ; cada filho são
mais dois braços para o trabalho.
A mulher tem por occasiao do parto trinta dias de repouso, e de melhor alimenta-
ção porque se trata a gallinha cozida e pão alvo.
E' verdade que o parto pôde ser laborioso, e quasi sempre o é, em consequência
da má posição do feto devida aos violentos trabalhos que a mulher desempenha até ao
ultimo dia de gravidez.
Mas a saloia espera sempre livrar-se do perigo rezando algumas orações, fazendo
algumas promessas, e, no momento critico, pondo na cabeça o chapéu e nos hombros
os calções do marido.
Raras vezes, e só em ultimo caso, é chamado o medico, tanto n'esta como nas ou-
tras enfermidades. O saloio tem medo á despesa a fazer com as visitas e os remédios
— despesa que pôde prolongar-se por muito tempo e ser avultada. Além d'isso, como
vive em plena natureza, experimenta primeiro a medicina naturalista das beberagens e
drogas caseiras. Por si, quando se sente reles (adoentado), ingere meia canada de vinho
com alecrim, canella, losna, assucar, transpira muito e quasi sempre fica melhor.
Em caso de morte, o saloio não se mostra tão avaro perante os gastos do enterro.
E' a ultima despesa, que de mais a mais pôde logo ser compensada pela herança. O
luto incommoda pouco os saloios, porque é breve e barato. Atam um lenço em volta da
cabeça com as pontas cahidas para traz, e cobrem os hombros com mantas de lã. Mas
saiem de casa, falam, trabalham, isto é, voltam á sua vida normal, sem lamurias e sem
o menor vislumbre de saudade, sincera ou fingida.
Tranquillo e conformado, o saloio raras vezes é criminoso; não usa revólver, nem
usa navalha de ponta e mola. Já vão apparecendo alguns fadistas nas povoações do Ter-
mo, por contagio de Lisboa. Mas esses mesmos, quando são bulhentos, teem ordinaria-
mente por arma de combate o pau de chapa, que é tradicional na sua raça. Pôde dar-se
como certo que se um saloio maltratou outro, foi á paulada com o seu cacete.
' Galeria de figuras portuguesas, pag. 2o5 e seg.
'-' Physiologia do saloio, L.i,boa, i858. E' um opúsculo de 64 paginas.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Também, se é gatuno, não assalta ninguém na estrada, nem mesmo uma lavadeira
indefesa que, sentada sobre a burra, volte da cidade com o dinheiro da semana.
Não. O ladrão saloio limita-se a furtar os fructos das arvores, as aves das capoei-
ras e alguma roupa que esqueceu no seccadouro.
Lança pois mão do alheio como o árabe, mas também como elle não recorre á vio-
lência — ao roubo e ao homicídio.
Todavia, os furtos são pouco numerosos nas hortas e quintas, porque ha a cohi-
bil-os uma espécie de policia rural muito activa e vigilante: o cão saloio.
E' terrível este animal, e tão saloio dos quatro costados como o seu dono. Feio,
sujo, mal tratado, quasi sempre de pello amarello, defende a casa, defende as terras e
até defende toda a povoação com um patriotismo feroz.
Quando eu, no empenho de reunir apontamentos para este livro, passei uns dias
em Bucellas, vime parvo com 7 cães, com 70 cães, com 700 cães, com toda a canzoada
bravia que me sahia ao encontro na rua, na estrada, no campo.
O cão do Minho ladra á passagem de um traseunte, mas em geral só o persegue
se o vê maltrapilho. E' um cão menos mouro do que o saloio, que julga vêr «christãosB
em lodos os viandantes, e lhes manifesta um ódio de raça ladrando e mordendo. Na
região dos saloios não ha que fiar-se a gente no provérbio : «Cão que ladra não morde».
Nesta região tudo parece haver ficado estacionário — o homem e o cão. Um e ou-
tro a amam, plenamente identificados com ella. Não querem sahir d'ali, mas também
não querem que ninguém lá entre. E se o homem tem que vir á cidade, deixando a
mulher no lavadouro, é o cão que guarda a casa.
O saloio, apenas larga o amanho da sua almoinha e das suas terras, para vir exercer
em Lisboa o commercio rendoso, e nada cansativo, dos morangos no estio e dos perus
no Natal.
E' uma tarefa bem remunerada, que só o constrange por ter de sahir da aldéa, mas
que apenas lhe impõe o único trabalho de apregoar:
— Vai um cabaz de morangos :
— Merca o casal de pirutts ?
A venda dos morangos é ordinariamente feita por saloios cintrões — porque Cintra
tem o privilegio do morango pequenino e gostoso.
Quanto aos perus, ás vezes nem é preciso apregoal-os, porque os vendedores esta-
cionam n'um largo, como por exemplo o de S. Domingos ; o trabalho dos saloios resu-
me-se então em evitar que os perus se tresmalham ou em agrupal-os se elles se tres-
malharam.
Como se vê, o saloio monopolisa no seu sexo as industrias mais lucrativas e menos
pesadas.
E' a eterna tradição mourisca da inferioridade da mulher, sempre besta de carga,
hoje como no passado. Uma locução portugucza, que nos ficou do tempo do dominio
sarraceno, perpetua no glossário esta tradição: «moura de trabalho ou trabalhar como
uma moura».
No Aulo das regaleiras do Chiado a velha replica á rapariga que se queixava de
trabalhar como escrava:
Tu dizes que és aqui moura !
Os criados e caseiros das quintas de Cintra trazem a Lisboa no inverno as camel-
lias e violetas, que são revendidas nos mercados públicos, cm certas tabacarias como a
do Neves no Rocio, e nas lojas de alguns floristas.
Em todo o arrabalde saloio se dão bem as violetas, mas as camellias em nenhuma
região do sul parece darcmse melhor do que em Cintra.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA 17
Ora, os queijinhos, os morangos, a vara guiadora dos perus, as camellias e as vio-
letas pesam de certo muito menos do que uma trouxa de roupa, as bilhas de leite,
um cesto cheio de fructa, de hortaliça, de legumes, de ovos e um alguidar cogulado de
tremoços.
Quanto á venda do leite, este ramo de negocio tem sido ultimamente disputado ás
saloias pelas varinas e pelas vaccarias de Lisboa.
Outro ramo de proveitoso commercio para o saloio é a caça. Praticandoa diver-
te-se e ganha dinheiro. As perdizes, coelhos e lebres que vem ao mercado da capital são,
na sua maior parte, uma industria do caçador aldeão do arrabalde.
Entre os escriptores portuguezes que se teem occupado dos saloios do Termo, um
253 — Padeira e levandeira saloia, a cavallo
ha que, sem lhes desconhecer os defeitos, procura rebater a opinião de «muito bárba-
ros» em que os tinha Miguel Leitão de Andrada.
E' o erudito marquez de Rezende.
Para sustentar a impugnação menciona este venerando fidalgo alguns homens illus-
três que diz terem nascido no arrabalde saloio, e algumas pessoas de sangue real.
Entre aquelies cita em primeiro logar D. Domingos Annes Jardo, que foi bispo de
Évora e depois de Lisboa, bem como chanceller-mór do reino, no tempo de AlTonso 111
e D. Diniz.
Effectivamente D. Domingos nasceu em Agualva, que tinha então o nome de Jarda,
ainda hoje conservado n'uma ribeira da freguezia de Bellas; e a prova de que provinha
de uma familia obscura está no facto de ter adoptado como appellido, á falta de outro,
o nome da sua terra.
O futuro prelado revelou desde a infância dotes intellectuaes, talvez por atavismo
de sangue árabe, que n'elle predominasse mais do que o mouro.
Foi estudar direito canónico em Pariz, onde se doutorou, e mais tarde contribuiu
para a fundação da Universidade de Lisboa.
Vê-se que a sua familia, comquanto obscura, era de lavradores abastados.
VOL. 11 3
EMPREZA DA HISTORIA DE PORIUGAL
Depois o marquez de Rezende fala de Gonçalo e Pedro de Cintra, cujcs nomes
ficaram assignalados na historia das nossas navegações.
Segue-se a menção do ponderoso archeologo do século xvii, D. Jeronymo Contador
de Argote, que nasceu em Collares.
E vem por ultimo o nome de D. Fr. Bartholomeu dos Martyres, que o marquez
de Rezende diz ter «nascido de pais humildes no pequeno logar da Terrugem».
Ora isto não é exacto.
D. Frei Bartholomeu nasceu em Lisboa, na freguezia dos Martyres, e daqui veio
o adoptar este sobrenome *.
Os pais, segundo informa Frei Luiz de Sousa, é que eram saloios, ambos nascidos
na Verdelha (actual concelho de Loures); mas «gente boa e limpa» e como tal viera
domiciiiar-se em Lisboa n'aquella freguezia.
Quer isto dizer que não eram da plebe saloia, nem cavadores de enxada, e que
por seus hábitos apurados e largas posses transferiram a residência para Lisboa.
A confusão em que labora o marquez de Rezende provém da circumstancia de pos-
suírem um casal na freguezia da Terrugem (concelho de Cintra) para onde fugiram da
peste que «ardia em Lisboa», quando o filho era ainda creança de peito-.
Finalmente, o marquez de Rezende quer nobilitar a região do Termo pelo facto de
ali terem nascido dois reis — D, João VI na Ajuda, D. Pedro IV em Queluz — e na
Ajuda, Queluz e Mafra todos os irmãos de D. Pedro IV.
Não ha duvida que n'aquelle tempo a Ajuda estava fora das portas da cidade, como
Belém, o que ainda acontecia no reinado de D. Maria II, D. Pedro V e D. Luiz I; mas
eram subúrbios nobres e já policiados.
De mais a mais a família real não provinha de origem saloia, mas do cruzamento
de sangue portuguez com outras raças europeas.
O numero de pessoas illustres nascidas no Termo — entre ellas a grande trágica
Emilia das Neves — é relativamente insignificante, a despeito da contradicta do vene-
rando marquez de Rezende ; e sempre de famílias crassas e povoações rudes, em todos
os tempos e paizes, sahiram algumas vezes talentos que constituem excepções pheno-
menaes, inexplicáveis a não ser por grandes e caprichosos saltos atávicos.
Nos 142 ministros de estado, que serviram o paiz desde a regência da Terceira
até 187 1, isto é, durante um período de 40 annos, apenas conto 4 ou 5 oriundos de ambas
as zonas da região dos saloios, e esses já procedentes de famílias submettidas a uma
antiga corrente de instrucção litteraría e educação social.
O saloio do Termo não teve referencias nos autos de Gil Vicente, Prestes e Chiado
como o «ratinho» da Beira, comquanto estes dois typos se aproximem por varias cír-
cumstancías communs : a ignorância, a devoção, a sovínice, a manha, a porcaria, a
passividade e a vida agrícola.
Mas os ratinhos são bem mais sympathícos do que os saloios, porque são mais
resistentes, mais activos e audazes, e até mais alegres.
E' outra raça — apta para a emigração.
Isto explica talvez a razão por que entraram nos autos quinhentistas, c os saloios
esqueceram; podendo também explicar-se, pelo reconhecimento daquella superioridade,
a ausência de affectuosa camaradagem com que os ratinhos são recebidos nas povoações
saloias.
Digamos rapidamente o que são os ratinhos, e como os saloios os depreciam.
' Frei Apollinario da Conceição, Demonstrafão histórica da primeira e rea' parochia de Lisboa,
pag. qi, § n7,
' Frei Luiz de Sousa, Vida de D. Fr. Bertolameu dos Martyres^ Ciip. I,
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
Miguel Leitão, na Miscellanea, assignala a origem da palavra «ratinho» dizendo:
«... os ratinhos, que sendo o concelho de Rates huma só freguezia de quatorze ou
quinze lugarinhos, ou aldeias, e estes sós sejão os ratinhos, d'elles se estendeo o nome
a quasi toda a Beira, que quer dizer bordas do mar. E a outras comarcas.» '
Ora o território a que, entre o século xvi e o século xvii, Miguel Leitão chamava
o «concelho de Rates» é hoje a freguezia d'este nome no concelho da Povoa de Varzim,
com uns mil habitantes, e não mais legares do que aquelles que lhe são calculados na
Miscellanea.
E' uma das freguezias a que na Povoa se chama «aldéas» para as differençar da
cabeça do concelho — a villa marítima; e possue um antigo templo que é monumento
nacional por sua vetustez e tradições ancestraes.
Hoje a povoação de Rates — especialmente a sede da parochia — tem-se renovado
no seu aspecto material com alguns prédios modernos.
Lembrome de um, quasi fronteiro á igreja: eu fui muitas vezes a Rates, sendo
deputado pela Povoa, visitar o abbade, que era meu adversário politico, mas nunca
deixou de manter comigo relações pessoaes.
Ora acerca dos «ratinhos» que, segundo Miguel Leitão de Andrada, se tornaram
conhecidos pela emigração em toda a Beira, disse no nosso tempo Baptista na Choro-
graphia Moderna :
«A maior parte dos habitantes do sexo masculino deixam a terra natal no fim da
primavera, e vão para os trabalhos do campo, especialmente da ceifa, para as provín-
cias da Beira, Extremadura e Alemtejo, onde lhe dão o nome de Ratinhos» ^
Baptista repetiu o que a antiga tradição contava.
Outr'ora era natural que os ceifeiros annualmente emigrados de Rates procurassem
a província da Beira, que lhes ficava próxima, apenas separada do Porto pelo rio Douro;
os limites d'essa grande província eram então marcados por este rio, pelo Mondego e
pelo mar.
Mas que também chegassem á Extremadura e ao Alemtejo, elles, os habitantes
de Rates, é uma affirmação gratuita que se basea h'um gracioso equivoco.
Vamos explicai o.
Aconteceu, na successão dos tempos, que em todo o reino, especialmente no sul,
começou a dar-se por extensão o nome de ratinJios á generalidade dos ceifeiros emi-
grantes, nome que na Beira foi primitivamente dado apenas aos que procediam de Rates.
Por outras palavras, o ratinho, authentico e genuíno, identificou-se, na linguagem
popular, com todo o ceifeiro do norte, especialmente com o da Beira, e passou a ser,
sob a primitiva alcunha, um typo cómico de sovínice e sordidez.
A emigração dos ratinhos, desenvolvendo- se, por amor a uma industria cosmopo-
lita que os habitantes de Rates fundaram, chegou á Extremadura, ao Alemtejo e até á
Andaluzia.
Deu isto logar a uma anecdota — e aqui está a graça do caso —que resalta de algu-
mas linhas escriptas pelo Padre Carvalho, o mais notável dos nossos chorógraphos no
século xviii.
Diz elle, textualmente, discreteando sobre a multidão de «ratinhos» que iam procu-
rar trabalho ao longe, não só em províncias distantes, mas até em remotos continentes :
«Outros querem se derivasse (o nome) dos fecundos partos das mulheres d'esta
Província (Entre-Douro-e-Minho), de que se tem em tão breves annos povoado quasi
1 Fim do dialogo xii.
2 Vol. II, pag. 8S2.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
todas as mais Províncias do Reyno, e muitos lugares em Africa, Angola, Sofala, e ou-
tros na Ásia, índia, e America». '
Como a alluvião dos ratinhos fosse cada vez maior, já no século xviii se não julgava
que elies pudessem proceder apenas da pequena aldéa de Rates, e portanto deu-se-lhes
por berço toda a provincia de EntreDouro e-Minho; mas ainda assim tornouse neces-
sário inventar a fabula de que as mulheres d'aquella provincia parissem copiosas ninha-
das de filhos como as ratas.
Eu vi em 1878 passar no alto Alemtejo grandes caravanas (lá diz-se camaradas) de
ratinhos que vinham do norte para o sul.
Vi-os caminharem alegremente para o duro trabalho das ceifas nos vastos campos
transtaganos, como se fossem para uma romaria.
Vestidos de saragoça, mochila e bordão ás costas, a cabaça a tiracollo, uma colher
de pau entalada na fita do chapéu, vios passar, em columnas, ao som de pífaros que
alguns d'elles tangiam, e os outros cantando em coro para animar a marcha.
Durante as ceifas, não teem melhor cama que o restolho das searas, nem melhor
merenda que o caspacho ou gaspacho, sopa que não vai ao lume e é temperada com
vinagre, azeite e alho.
Muitos dos «ratinhos» morrem por insolação e empaludismo, heróica e obscura-
mente, verdadeiros martyres do trabalho.
Alguns d'elles chegam á Anduluzia, onde se misturam com ceifeiros gallegos.
Mr. Quillardet, no seu interessante livro Espagnols et portugais che^ eux, publi-
cado em ic,o5, a elles se refere por os ter encontrado lá, e observou que são mal vistos
pela população indígena, em razão de occasionarem uma baixa de salários, já pouco
elevados na Andaluzia.
No Alemtejo, os ratinhos são ordinariamente bem recebidos, e fraternisam com as
povoações.
Também o são, em alguns concelhos extremenhos de entre o Tejo e o Sado, por
exemplo Moita, Setúbal e Alcácer, onde perdem o nome de «ratinhos» e geralmente os
designam pelo de «caramelos»
Não acho outra explicação para esta alcunha senão a de serem gente das bandas da
Serra do Caramulo, isto é, procedente da Beira.
No Termo de Lisboa, os saloios tratam os pouco numerosos ganhões lá de cima,
que por alli apparecem, pela denominação trocista de «rolas».
Em Bucellas vi alguns trabalhando n'um campo, e duas creanças que iam passando
na estrada começarem a zombar d'elles fingindo que arrulhavam como as rolas: ruru ruru.
O que tem graça é que nas ruas de Lisboa os garotos algumas vezes apoquentam
os saloios chamandolhes também «rolas» e perseguindo-os com mordazes arrulhos.
Se no primero período do theatro portuguez o typo cómico do ratinho supplantou
o do saloio, por igual ignorante e sovina, no século xix o ratinho desappareceu do palco
e foi substituído pelo saloio como personagem de entremez.
Já os comediógraphos, no fim de século xviii, começaram a aproveitar esta grotesca
individualidade, que tinham mais á mão do que os ceifeiros da Beira.
Assim, appareceu n'essa época uma farça anonyma — O saloio cidadão; e depois
outra, de Domingos de Caldas Barbosa, A saloia namorada ou o remédio c casar.
A evocação theatral do typo — saloio — parece ter agradado, porque Marcos Por-
tugal não se dedignou compor sobre idêntico thema uma burletta — A saloia namorada,
que foi cantada no Rio de Janeiro em 1812.
• Tom. I, pag. 336.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
Durante todo o século xix, especialmente em nosso tempo, o saloio tem estado
sempre em scena, a contento das plateas populares, como provaremos pelas seguintes
indicações bibliographicas : O beijo, farça lyrica — O ultimo dia de arraial nos saloios,
comedia — Lui:^inha^ a leiteira, scena cómica — O Descasca Milho, c. i act. — O Des-
casca Milho, ent-act. cómico —Ainda o Descasca A ilha, c. i act. — Casamento do Des-
casca Milho, c. I act. — Baptisado do filho do Descasca Milho, c. i act. — Morte do
Descasca Milho, c. i act. — Casamento do filho do vaqueiro, c. i act. — Mariquinhas
a leiteira, c. i act. — Um duello em Odii>ellas, c. 2 act. — O noivo da Lourinhã, c. i
act. — Um noivado em Friellas, c. i act. — Um baptisado em Canecas, c. i act. — De-
sabafos do Zé leiteiro, s. c. — Manél Corisco, s. c. — O Manél d" Abalada, s. c. — O
juii eleito, c. i act. — Zé Canaia, c. i act. — Um casamento em Fanhões, operet. — Zé
Chalaça, s. c. — O sr. Murtheira, s. c. — A traição elastrica, canç. — E cá nan sé,
canç. — Cru\es ou cunhos t canç. — Zé:[inho de Bellas, canç. — O Fr escala da Mal-
veira, canç. — O mosquito, monologo — Zé Calino, m. — Um saloio em Lisboa, m. —
Uma coisa que é cã sê, m. — Amor e dinheiro, s. c. — Cm alho, s. c. — O tio Zé Chi-
bato, s. c. Etc.
Fora do theatro, o saloio tem sido lembrado n'outras espécies litterarias. O primeiro
jornal de Cintra intitulou-se O saloio (i8b6); depois, também em Cintra houve o Jornal
saloio; e um almanach de 1890, o Mal amanhado, era escripto em linguagem saloia.
A linguagem incorrecta do saloio, isto é, as alterações phoneticas com que elle, por
ignorância, estropia as palavras, umas antigas, outras modernas, tem sido no theatro o
principal truc explorado pelos auctores.
E' justamente n'essa incorrecção que reside a maior graça d'este typo cómico.
Pela nossa parte não ousaremos nunca chamar dialecto á linguagem dos saloios.
Reputamola apenas uma «variedade local», no sentido em que Max Muller empregou
esta expressão ; tal linguagem não differe da língua litteraria senão por effeito da rudeza
de quem a fala. Ora os dialectos, segundo o mesmo auctor, teem sido sempre as fontes
da lingua culta e não outros tantos canaes derivados d'ella. A mesma opinião expressa
Littré quando diz que a lingua geral é um dialecto que supplantou os outros. E a
linguagem saloia não nos parece ser mais que uma filha aleijada e constrangida da lin-
gua geral ; um turvo canal que derivou d'ella. Vamos vêr.
Linguagem saio a
Linguagem culta
Linguagem saloia
Linguagem culta
Alimaes
Animaes
Claustro
Cáustico
Pescuradores
Procuradores
Lidico
Liquido
Acolyíos
Incógnitos
Pilemica
Polemica
Suscetivle
Susceptível
Planta forma
Publica forma
Alembranças
Lembranças
Pulga
Purga
Quase
Quasi
Sismatura
Scisma
Cedade
Cidade
Tosse confucia
Tosse convulsa
Memoira
Memoria
Olivél
Libello
Palatea
Platea
Catacismos
Sinapismos
Polucia
Policia
Confurtativo
Facultativo
Baltisado
Baptisado
Conspirar
Transpirar
Reizes
Reis
Saibo
Sábio
Plefice
Superfície
Treato
Theatro
Déspio
Déspota
—
—
Outras palavras ficaram do portuguez antigo, como escorra lhas que da linguagem
da corte transbordaram para o Termo, e ali permaneceram mais ou menos deturpa-
das, mas detidas pela força da tradição.
Exemplos: riba, de ripa, riba; friamulos (porcos) talvez de freama no sentido de
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
presunto, segundo o Elucidário; eiva (toque de podridão na fructa) como sinonymo de
doença í engulhas, vómitos; d/ã, cansaço, manifestamente abreviatura de ofFêgo; meu-
iéus, toalha de mesa, do antigo manténs; Iresler, delirar com febre, originariamente
perder o sizo por excesso de leitura; vilro, victorioso, de victor, etc.
Ha outras deturpações que se foram aggravando de geração em geração, de modo
que já não é hoje possivel procurar-lhes a origem culta, nem mesmo aventar hypotheses.
Uma das coisas que parece terem ficado do tempo dos mouros na successão dos
saloios é a rivalidade que aquelles sustentam de tribu para tribu, de aduar para aduar,
e estes conservam de aldéa para aldéa, designandj-se com alcunhas injuriosas ou pelo
menos ridículas, reciprocamente.
Os de Odivellas são «rapa-caldos» ; os de Canecas «alimaes» ; os da Povoa de
Santo Adrião «kágados»; os da Ameixoeira «catalões»; os da Charneca «lobos ou la-
drões», etc.
Algumas cantigas saloias envolvem sentido deprimente para os habitantes de certas
localidades, como por exemplo :
Cães de Carnide,
Cadellas do Lumiar,
Acudi aos de Bemfica
Qne se querem enforcar.
Nas povoações saloias circulam vários provérbios, que nunca ouvi em qualquer ou-
tra região e que reputo interessantes como indicadores dos usos, costumes e sentimen-
tos indígenas.
Um d'elles, por exemplo, manifesta a philosophia egoista e pratica do saloio: «A
sogra e o furão só debaixo da terra é que dão».
2^4 — Uma caF:t s.iloia
II
Cadaval
viLLA do Cadaval, cabeça do concelho do seu nome, está situada
n'uma collina, entre dois valles, que são o de Canada e o de
Abrigo.
Segundo a versão popular, a etymologia de Cadaval prende
justamente com a posição geographica da villa entre aquelles dois
valles regados por muitas nascentes e arroios: assim, tendo o fun-
dador da povoação perguntado onde por aqui haveria agua, res-
ponderam-lhe que em cada valh. E por apócope, teria vindo a dizer-se : Cadaval.
A villa fica -jb kilometros ao norte de Lisboa ; e dista 6 da estação do Bombarral
na linha de oeste. Caminhamos, pois, da peripheria para o foco inicial dos saloios.
Passa perto o rio Bojota, que é alimentado por vários regatos ; e parte da serra de
Monte Junto pertence á freguezia do Cadaval.
Todo o concelho é fértil e abastado, graças ao seu activo commercio de vinhos,
cereaes e gados.
Data de remota antiguidade a povoação do Cadaval, que foi uma das occupadas
pelos mouros na Extremadura.
D. Fernando, o Formoso, elevou-a á categoria de villa e doou-a ao quarto conde de
Barcellos para si e seus successores em i de dezembro de iSyi. ' Não tardou, porem,
que voltasse a villa aos bens da coroa ; D. João I doou-a a D. Pedro de Castro, filho do
conde de Arrayolos.
No reinado de D. João II é o Cadaval doado a D. Martinho de Noronha, filho do
mordomo-mór D. Pedro de Noronha, que aquelle rei tratava por sobrinho.
Entre os Noronhas do Cadaval e os Soares de Torres Vedras rebentaram conlli-
ctos, que deram origem ao levantamento de bandos de uma parte e outra. Em certa pu-
gna travada entre os dois bandos ficou morto, junto a Torres, um dos Noronhas,
D Henrique.
• Braamcamp, Brasões, vol. III, pag. 255.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Sabendo do facto, D. João II mandou chamar á sua presença Gomes Soares, o qual
respondeu :
— Que se sua alteza o chamava para fazer-lhe mercê, elle a não pretendia ; e que
se era para lhe cortar a cabeça, o podia mandar fazer na praça de Torres Vedras.
O rei, no primeiro Ímpeto, affrontou-se com esta resposta altiva e confiscou os bens
a Gomes Soares ; mas depois, reconhecendo a hombridade que mais tarde ou mais cedo
agrada aos caracteres fortes, perdoou-lhe e ainda lhe fez novas mercês.
Um homem comprehende sempre oulro homem.
Da villa do Cadaval antiga resta dizer que D. Manuel lhe concedeu foral a i de
outubro de i5i3, e que D. João IV a instituiu em cabeça de ducado.
Taes são, em resumo, as noticias históricas, que os chronistas e os chorógraphos
fornecem e reproduzem.
Agora venha alguma nota impressionista, que resuma n'um traço colorido o aspecto
e vida do Cadaval.
Ha mais de 3o annos — e logo faremos as observações que tão largo período de
tempo impõe — dizia Júlio César Machado:
tO Cadaval é uma villa pequena, em que pouco ha para vêr, e bem pouco para
referir, depois de se ter visto tudo — uma igreja e mais uma quinta!
«A igreja foi fundada pelos habitantes, e tem de curioso dois quadros da celebre
Josepha de Óbidos, o da Senhora do Rosário, e o da Circumcisão.
«A quinta é a chamada de Dona Amiga, que tem uma deliciosa alameda, a que só
falta, para se tornar de proporções bucólicas, uma senhora em blouse branca, recostada
brandamente n'um kioske, lendo Fanny ou as Folhas cabidas, á hora em que baixa o
sol. Fanny no Cadaval ? ! Por que não? se ha uma alameda bem copada e bem fresca ?
por que não, se houver uma senhora bem crystalisada e bem romântica ! O' amor! Amor!
As artes consagram os teus milagres e os teus crimes até : por que não encontrei eu
então nenhum cupido de pedra n'aquella alameda, por velho e esôpo que fosse ? Uma
alameda sem um cupido, não é alameda. E' só por ti, amor, que se anima o mármore,
e que a tela respira!...
«Debalde se procura no Cadaval o palácio dos duques. Encontrei apenas dois par-
dieiros velhos, tisnados pelo sol e abalados pelos invernos : um d'elles é o celleiro, e o
outro a adega do duque do Cadaval ; a adega é para as jogadas, e o celleiro para os
dizimos !. . . t>
Isto é já antigo, mas vale por uma photographia instantânea. Estava ainda em voga
a Fanny de Ernesto Feydeau e a theoria de Sthendal sobre as crystallisaçôes no amor;
mas nas linhas geraes o quadro do Cadaval é completo.
A vida social é que mudou aqui — como em toda a parte onde a situação geogra-
phica favoreceu a vizinhança de uma linha férrea.
D'antes era preciso ir em vapor até Villa Nova da Rainha, e seguir depois por Otta
a estrada real das Caldas; quando o caminho de ferro chegou ao Carregado — já era
um progresso — tomava se ali a famosa diligencia do José Paulo até onde ella, que fa-
zia carreira para as Caldas, podia dar conducção.
Agora a linha férrea de oeste (Torres- Vedras —Caldas — Figueira da Foz), passando
a pouco mais de uma légua do Cadaval, dotou esta villa com facilidades de communi-
cação e, portanto, de commercio.
' Scenas da minha terra, Lisboa, i86j, pags. 18-19.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
Isto é quasi sempre um grande gérmen de prosperidade e renovação.
Tanto assim que Júlio César Machado fala de um barbeiro que em 1862 acumulava
no Cadaval oito logares ; e hoje ha n'esta villa dois barbeiros que não fazem. . . senão
barbas.
Com o policiamento moderno veio melhor distribuição de funcções sociaes •, e cada
cidadão entrou no seu papel.
A villa tem actualmente uns novos paços do concelho, duas escolas officiaes, e dois
coilegios particulares para ambos os sexos ; duas pharmacias e um medico ; agentes
bancários e de seguros; dois hotéis e três casas de pasto; três modistas; uma papela-
ria ; lojas de fanqueiro, de mercador» de quinquilharias, ferragens, louças e vidros ; um
forno de louça vermelha; uma caldeira de distillação e três sociedades musicaes — Phi-
larmonica Cadavalense, Recreio musical dramático e Sol-e-dó 17 de agosto.
255— Vista geral da villa
A freguezia do Cadaval conta 1.241 habitantes, a maior parte na villa, e o resto
no logar de Adão Lobo. O orago da parochia é Nossa Senhora da Conceição.
Ha na villa duas feiras annuaes a 24 de junho e 8 de dezembro ; o mercado mensal,
que d'antes se fazia no 2.'^ domingo de cadamez, passou em 1904 a fazer-se no i.° do-
mingo.
Sei da existência d'um periódico — Commercio do Cadaval, mas ignoro se dura ainda.
O titulo de duque de Cadaval foi concedido por el-rei D. João IV, em 26 de abril
de 1648, a D. Nuno Alvares Pereira de Mello, 4." marquez de Ferreira e 5." conde de
Tentúgal.
Este fidalgo casou três vezes: a i.'' com a 8.* condessa de Odemira, viuva e sem
filhos, que da casa paterna herdou, entre outras propriedades, o paul de Muge; a 2.*
com a princeza Maria Angélica Henriqueta Catharina de Lorena, que era prima em se-
gundo grau da rainha D. Maria Francisca Izabel de Saboya; e a 3.* com a princeza
Margarida Armanda de Lorena, filha do conde de Armagnac.
De todos os três matrimónios houve filhos.
Succedeu-lhe no titulo D. Luiz Ambrósio de Mello, 2° duque de Cadaval, que ca-
sou com a sr.* D. Luiza, filha natural de el-rei D. Pedro II.
Esta dama, tendo fallecido o 2.° duque de Cadaval, casou com seu cunhado D.
Jayme de Mello, 3.° duque.
VOL. 11 4
a6 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Era uma linda mulher, alta, branca e loura, alegre e espirituosa.
Quando estava na sua casa de campo em Muge, e el-rei seu pai por ali passava
para ir caçar em Salvaterra, muitas vezes a sr.'' D. Luiza o acompanhara sendo sem-
pre por elle tratada com especial affecto.
O 3." duque foi muito perito em equitação e toureio.
E' obra sua o famoso picadeiro da casa de Pedrouços.
Casou 2.* vez com sua sobrinha, a princeza Henriqueta Júlia Gabriella de Lo-
rena.
Succedeu-lhe D. Nuno Caetano Alvares Pereira de Mello, 4.° duque de Cadaval,
que desposou D. Leonor da Cunha, dama da rainha D. Marianna Victoria e filha do 5."
conde de S. Vicente.
O 6." duque foi seu filho D. Miguel Caetano, que teve por mulher D. Maria Ma-
gdalena de Montmorency e Luxembourg.
Succedeu-lhe D. Nuno Caetano, 6." duque de Cadaval, seu filho, que casou com D.
Maria Domingas de Bragança Sousa e Ligne, da casa Lafões.
O duque viveu retirado em Pariz (e ali falleceu) por desaccôrdo com o regimen
constitucional.
Havia tomado parte activa nos acontecimentos políticos de 1828-1833.
A elle se refere uma cantiga poKtica alludindo á sua retirada de Lisboa com as for-
ças miguelistas na noite de 23 para 24 de julho de i833 :
Lá vai primeiro
O duque fraco, etc.
Succedeu-lhe na casa uma das suas seis filhas, a 4.*, D. Maria da Piedade, que ca-
sou em Pariz (1843) com seu tio D. Jayme Caetano, 3." filho do 5." duque de Cadaval.
A família Cadaval possue vastas propriedades e alem do palácio de Lisboa (que
era na rua do Príncipe, junto ao Rocio) tem casas de campo em Muge, Tentúgal, Évora,
Agua de Peixes * e Pedrouços.
Como sabemos, o Cadaval está comprehendido na zona de irradiação do primitivo
saloio.
O typo popular conserva os seus caracteres originários, é geralmente moreno, ra-
ríssimas vezes claro.
Quanto ao fato, os velhos usam calça direita, jaqueta, camisa branca ou de chita
sem gravata, sapato de salto de prateleira, atacado; cinta, barreie ou chapéu de aba larga.
Os rapazes variam um pouco este traje tradicional, afadistando o, seja pelo contacto
com Lisboa durante o tempo do serviço militar, seja por serem impressionados por uma
dupla corrente de influencia lisboeta que recebem retlexamente de Torres Vedras ao sul
e das Caldas da Rainha ao norte — povoações em communicação directa e diária cora
a capital.
Assim é vulgar encontrar-se nos rapazes cadavalenses a calça de bocca de sino, o
chapéu á Mazantini, e uns certos modos bailhões.
O concelho do Cadaval pertence ao districto administrativo de Lisboa c á comarca
de Torres Vedras.
A sua população total é de 10.693 almas.
Alem da freguezia da villa, o concelho comprehende mais as seguintes : Alguber,
Cercal, Figueiros, Lamas, Peral, Pêro Moniz, Vermelha e Villar.
' No Alemtejo, concelho de Alvito.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA 27
A freguezia de Nossa Senhora da Purificação de Alguber fica 10 kilometros a nor-
deste da cabeça do concelho e domina uma ribeira affluente do rio Arnoia.
Este rio nasce aqui e vai desaguar na lagoa de Óbidos.
Alem da sede da parochia, Alguber comprehende mais os logares da Grugeira,
Gouxaria e Adro das Candeias; e três quintas que são as do Cidral (de D. Beatriz de
Sousa Botelho), da Boa Vista (de José Ernesto Pereira Marques) e a de Porto Nogueira.
População total : Õ29 habitantes.
Ha uma escola para o sexo masculino.
A freguezia de S. Vicente do Cercal, com uma população de 604 almas, está situada
na estrada real de Lisboa ás Caldas da Rainha, e dista da cabeça do concelho 12 kilo-
metros para leste.
iiE' uma terra pittoresca o Cercal, diz JuIio César Machado ; e tem a habilidade
de ser alegre era qualquer situação e com qualquer tempo.» *
Antigamente era paragem obrigada dos trens que vinham das Caldas para o Car-
regado ou que do Carregado iam para as Caldas.
Os cocheiros desaguavam ali os cavallos, e avinhavam-se a si mesmos.
A propósito, conta Júlio César uma anecdota graciosa, como todas as que esmaltam
os seus escriptos.
Fala do vinho do Cercal — em geral mau — e da honra que lhe faziam os cocheiros.
«Quando algum lá apparece pela vez primeira, tem de desempenhar-se dos seus
deveres bebendo uma canada de vez e sem pestanejar. Um de uma occasiao pediu dez
minutos para reflectir no que ia fazer e quaes as consequências da sua acção. Conce-
deram-lhe os outros cocheiros esta pequena espera, e o neophyto voltou as costas e saiu.
Havia no Cercal duas casas de comida com venda de vinho, a da viuva Moreira, que
pertence hoje a um filho, e a do Leal, que foi trespassada aos que actualmente a diri-
gem. Passados os dez minutos appareceu outra vez o cocheiro novo e submetteu-se sem
difficuldade á experiência convencionada da cerimonia. Em logar de uma canada, bebeu
duas. Disse-Ihe um dos cocheiros veteranos : — Estavas a fazeres-te fino, e enxugas por
esta maneira ! O Gaivêas, futura flor dos cocheiro^, das Caldas da Rainha, sorriu-se : —
Está bem de ver ! respondeu esse prudente moço. Quiz experimentar primeiro se era
capaz, fui beber a canada ali ao Leal ; por isso é que me estreai a beber agora as duas !»
Ramalho, nas Farpas, também celebra a hospedaria Moreira.
A freguezia do Cercal comprehende, alem do logar que é sede da parochia, mais
os de Salvador e Espinheira ; e as quintas da Alagôa e do Calado.
Tem uma escola mixta, regida por uma professora; feiras annuaes, a 3 de junho,
5 de agosto, i3 de outubro; e mercado no i." domingo de cada mez.
Júlio César Machado diz que o inverno no Cercal é rigoroso por causa da Serra
da Neve, que faz parte da Serra de Monte Junto, e fica sobranceira a Pragança : d'ella
sopram ventos gelados.
Em i85i foi agraciado com o titulo de barão do Cercal, e em 1867 promovido a
visconde. Alexandrino António de Mello.
Mas como no paiz ha varias povoações com o nome de Cercal, não sei se a esta ou
outra se refere aquelle titulo.
A freguezia de Nossa Senhora da Conceição de Figueiros, com 1.533 habitantes,
fica a nordeste do Cadaval, d'onde dista 9 kilometros.
A estrada das Caldas passa-lhe a um kilometro de distancia.
Alem da sede da parochia, comprehende os logares de Painho e Bouça do Louro.
' A vida alegre, Li.>boa, lííSo, pags. 11(1-117.
2» EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Painho é hoje um logar importante, com certo movimento commercial e agrícola.
Funccionam na freguezia duas escolas para ambos os sexos.
Entre todos os casaes de Figueiros mencionarei o da Palhoça ainda em homenagem
a Júlio César Machado, que n'elle ou nos seus arredores procurou assumpto para um
lindo conto — O pastor da Palhoça. •
O sitio descreve-o assim esse pobre Júlio, que a fatalidade matou: €... Palhoça
nem é aquella casa de venda, que se encontra á beira da estrada um pouco adiante do
Cercal, balançando aos ventos do inverno o ramo que tem á porta, nem também é a
estação da malaposta que lhe fica um pouco á direita, e que não deve chamar-se Pa-
lhoça, mas logar dos carreiros ; os campos de pastagem que ali se encontram, é que
mereceram ao sitio esse nome, em tempos mais poéticos, que toleravam ainda a clás-
sica cabana de palha no meio dos montes. . . »
Quinta ha uma em Figueiros — chamam-lhe dos Caniços.
A freguezia de S. Thomé de Lamas, com uma avultada população de 2.752 almas,
demora 5 kilometros a sueste do Cadaval.
Comprehende vários logares, dos quaes o mais notável é Pragança ; e cinco quintas,
uma das quaes com o singular nome de Noruega.
O logar de Pragança tem prosperado tanto em importância viticola, que já lhe
querem chamar a Bairrada da Extremadura.
Os vinhos aqui produzidos estão tendo credito e mercado.
Por virtude da abundância de vegetação, ha também quem chame a Pragança a
Cintra do Cadaval.
Na flora d'esta região abundam o alecrim, que empregam no aquecimento dos for-
nos, e a peonia, que na primavera cobre os campos com o estendal das suas flores.
O logar consta de uns i5o fogos, e cerca de 700 habitantes.
A creação de gado, especialmente caprino, tem tido desenvolvimento em razão da
abundância e facilidade de pastos que se encontram na serra.
Ha em Pragança duas fontes e três chafarizes, sendo um d'elles muito amplo ; uma
capella, sob a invocação de Santo António, com escadas de cantaria e abobada de tijolo;
uma escola para o sexo masculino ; e uma sociedade musical com o titulo de — Philar-
monica de Pragança.
Nas Lapas, penhas que dominam o logar, do lado de nascente, teem sido feitas al-
gumas explorações archeologicas, incluindo a da gruta do Curral das Cabras Gafas.
No alto da serra de Monte Junto fazse uma romaria a Nossa Senhora das Neves.
Os romeiros acampam entre o carrasco, o alecrim e as rochas calcareas que eriçam
a montanha. E' um arraial extremamente pittoresco.
No logar de Rochaforte, também da mesma freguezia de Lamas^ ha outra escola
para o sexo masculiqo.
A freguezia de S. Sebastião do Peral, com 971 habitantes, fica, sobre uma ribeira
aflluente do rio Real, quatro kilometros ao norte da cabeça do concelho.
Leite de Vasconcellos recolheu a linguagem do Peral, chamando lhe dialecto e di-
zendo que diftere pouco do falar de outros logares do mesmo concelho.
Ahi vai uma amostra do sr.pposto dialecto do Peral :
— 0'i nha mai, — 0'i nha mai, — 0'i nha mai,
I.á vem no gaitêro. O pandôro tá roto. Nã posso ganhar.
— 0'i nha filha, — 0'i nha filha, —0'i nha filha,
Tóca-ro pandêro. Ganha p'ra ôtro. Vai-te deitar
• Historias fará gente moça., pag. .j.5.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
29
— 0'i nha mai,
Nã posso drumir.
Como se vê, á parte as elisões exigidas pelo rythmo, as palavras apenas accusam
a incorrecção da pronuncia aldeã, como já notamos a respeito da linguagem dos
saloios.
Exemplificando : gaitêro por gaiteiro ; pandéro por pandeiro ; óíro por outro ; dru-
mir por dormir.
O logar do Peral, sede da parochia, já no tempo do rei D. Fernando era conside-
rado villa, como se vê da doação que d'ella fizera aquelle rei ao 4.° conde de Barcellos
para si e seus successores em 17 de julho de 1371. *
256 — Encaíxotamenlo de uva ferral na Quinta D. Amiga, propriedade do sr. José do Nascimento Pereira
A freguezia comprehende mais os logares de Barreiras e Sobrena, e as quintas do
Valle e de S. Lourenço, sendo esta ultima do sr. D. Nuno Gorjão Henriques.
Um dos Gorjões nascidos n'esta quinta, Bernardo Gorjão Henriques, foi ministro
do reino em 1 847-1 848.
O povo da Sobrena e arredores tem muita devoção com a imagem de Santo Es-
tevam, que está n'uma ermida do logar, e é de pedra ; porque piamente crê que se cura
de sezões raspando as costas do santo, e ingerindo a farinha da pedra com bom vinho
durante nove dias consecutivos, em jejum.
Chama-se ali a esta droga o «Pó de Santo Estevam».
Ha no Peral duas escolas para ambos os sexos.
Pêro Moniz está situado sobre o rio Real, e dista da villa do Cadaval 4 kilometros
para sudoeste.
A freguezia tem 63 1 habitantes, e uma escola para o sexo feminino.
O orago de Pêro Moniz é S. João Baptista.
' Braamcamp, Brasões, vol. ii', pag. 255.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Alem da sede da parochia ha mais o logar de Martim Joannes.
Quintas: do Pombo e do Gradil.
A freguezia de S. Simão da Vermelha, com 1.146 habitantes, está situada sobre
uma ribeira affluente do rio Real, na estrada para a cabeça do concelho.
Tem uma ponte sobre a ribeira.
Fica a 6 kilometros da villa do Cadaval, para noroeste.
Possue escolas para ambos os sexos e uma sociedade musical.
Alem do logar da Vermelha, comprehende mais os da Gorda e de Vai de Canada.
D'este ultimo, dá-nos Júlio César Machado um vivo bosquejo em rapidíssimas pa-
lavras : foito ou nove choupanas, casas de rama, colmadas, três ou quatro casebres
caiados, e o resto verdadeiras choças pastoris». *
Falta apenas falar da ermidinha do Sacramento para completar a noticia da povoa-
ção de um dos valies que fazem ilhargas á villa do Cadaval.
A freguezia de Villar, orago Nossa Senhora da Expectação, tem 1.286 habitantes,
fica situada sobre uma pequena ribeira que junta com outras forma o rio Real, e dista
da cabeça do concelho 8 kilometros para o sul.
Comprehende vários logares, o que explica a elevada cifra da sua população, supe-
rior á da freguezia do Cadaval e immediatamente inferior á de Figueiros.
Possue uma escola para o sexo masculino.
O concelho do Cadaval tem prosperado muito nos últimos 3o annos pelo que res-
peita á producção agrícola, especialmente á viticultura. Aguiar, nas suas Conferencias
(1876), apenas se refere de passagem ás vinhas do Cadaval, creadas, como as da Arru-
da e Alemquer, em terreno valdense. Hoje — Pragança por exemplo — já o illustre
cenólogo teria que demorar-se mais falando de toda esta região concelhia.
Pinho Leal diz que o notável jurisconsulto e diplomata Duarte Ribeiro de Macedo,
que sem favor se pode considerar um dos clássicos portuguezes, nasceu na villa do
Cadaval.
Isto não é exacto. Foi em Lisboa que elle nasceu, como de si mesmo declara no II
tomo das suas Obras (1767), pag. 292.
Em conclusão — O município do Cadaval, apesar da feracidade do seu solo, foi
pobre e insignificante até 1837. N'esta data, com a annexação das freguezias do Bom-
barral e Carvalhal, começou a prosperar. Como todas as localidades vinhateiras, soflíreu
com a depreciação dos vinhos em 1848; mas em i85i, com a subida dos preços, entrou
n'um período de florescência económica e depois d'isso, não obstante haverem-lhe sido
desannexadas aquellas duas freguezias, tem continuado a progredir e enriquecer.
' Apontamentos de um folhetinista, pag. 182.
III
Lourinhã
I
A VILLA E ALGUMAS FREGUEZIAS DO CONCELHO
villa da Lourinhã está situada n'uma planicie e rodeada de montes,
na. estrada de Peniche a Torres Vedras. Esta estrada, ao entrar
na villa, pelo norte, forma, sombreada de arvoredo, uma pittoresca
avenida.
Fica a Lourinhã a i8 kilometros da estação do Bombarral.
A sua historia remonta a longínqua antiguidade, cremos que
ao período romano e com certeza ao árabe.
Já dissemos que D. Affonso Henriques a doou a um dos
cruzados francos, o conde Jourdan, que o ajudaram na conquista de Lisboa ; e que
Sancho I doou Pontével aos colonos francos agrupados na Lourinhã e em Villa Verde,
aproximando-os assim da margem do Tejo. *
Alexandre Herculano, commentando a fundação de taes colónias, descreve-as a
rápidos mas profundos traços, dizendo: «Dentro em breve esta gente coUecticia, este
vulgacho indómito se foi affazendo á vida sedentária, e abandonando o tracto das armas,
ou porque os seus chefes desejassem, emfim, o repouso, ou porque o próprio rei os
escusasse, temendo a ferocidade nativa d'elles, da qual não faltariam exemplos na con-
quista de Belatha, e de que os monumentos d'esse tempo nos dão indirectamente tes-
temunho». -
O mesmo historiador especialisa um d*esses monumentos: é o primeiro foral da
Lourinhã, no qual o donatário Jourdan estabelece a seguinte severíssima pena, que por
si só descobre a necessidade de reprimir duramente a fereza homicida dos colonos : se
o assassino fôr preso, seja sepultado vivo, e o cadáver da victima lançado sobre elle.
' 1° vol. d'esta obra, pag. 8 e lo.
- hist. de Port., 2.' ed., tora. I, pag. 1*78 — tom. iV, pag. 461.
32 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Comtudo esta comminação não apparece unicamente no foral da Lourinhã ; encon-
tra-se idêntica no de Marmelar. •
Jourdan mandou construir, ou talvez restaurar, o castello, de que não restam ves-
tígios.
Continuou nos descendentes do fundador da colónia franca o senhorio da Lourinhã,
até que veio a cahir em successão feminina na pessoa de uma Dona Urraca, a qual
desposou Ruy Gonçalves Taveira.
D'este casamento nasceu um filho, que se chamou Vicente Rodrigues Taveira e ca-
sou com Dona Sancha Correia.
Tanto o pae como o filho foram senhores da Lourinhã em respeito á memoria de
Dona Urraca.
Morreu Vicente Taveira sem deixar prole, e por sua morte pretenderam a succes-
são os parentes de sua mãe, como affins da linha do conde Jourdan, primeiro senhor
da Lourinhã.
D. Affonso III não os attendeu, e encorporou a villa nos bens da Coroa: depois
de a ter em sua posse, doou-a ao infante D. Affonso.
Quando Affonso III morreu, e começou a contenda entre o infante D. Affonso e
el-rei D. Diniz, os pretendentes acharam a occasião excellente para voltar á carga.
Fizeram-se inquirições e parece que se averiguou que a successão competia ou
podia competir a outra Dona Urraca, mulher de Gonçalo Pires.
D. Diniz conformou se logo com esta averiguação, que lhe cahia como sopa no
mel, porque contrariava o infante.
A'quelles cônjuges succedeu seu filho, Nuno Gonçalves, a quem Affonso IV con-
firmou a doação.
Ainda outro Gonçalves, de nome Martim, que parece ser filho do individuo acima
referido, recebeu o senhorio da Lourinhã, e por testamento o deixou a sua mulher
Maria Coelho.
Interveio então el-rei D. Fernando, que ao seu grande privado Gonçalo Vasques
de Azevedo doou o mesmo senhorio, com o pretexto de ser o donatário filho do prior
de Santa Cruz de Coimbra, D. Francisco Pires, natural da Lourinhã, e aparentado por
seu pae com a linha de Jourdan.
A principal razão não estava de certo em ser Pires, mas em ser valido.
Subiu ao throno D. João I e doou o senhorio da Lourinhã ao famoso doutor João
das Regras, por morte do qual o herdou sua filha Dona Branca da Cunha, mulher de
D. Affonso, senhor de Cascaes.
Uma filha d'estes, D. Izabel, casou com D. Álvaro de Castro, i." conde de Monsanto.
Elrei D. Duarte confirmou a esta dama, fora da lei mental, o senhorio da Lourinhã,
que desde então ficou na casa dos condes de Monsanto. *
O foral do conde Jourdan foi confirmado por D. AlTonso II; ^ e D. Manuel deu
novo foral em i5i2.
O Padre Cardoso disse, e repetiramn'o Almeida, Pinho Leal e Baptista, que o
nome de Lourinhã veio da f quinta de Lourim, que lhe fica perto».
Ora, no Diccionario Postal e Choreographico, Lourim não é mencionado como
quinta, mas apenas como um casal, na frcguezia de Nossa Senhora da Annunciação,
que comprehende a villa ; e são-lhe dados 3 fogos.
' Mesma obra e edição, tomo IV, pag. 86.
í Mon. Lus , tom. V, liv. XVI.
' Port. Mon.—Leges et consvetudines. I, pag. 447.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
33
O próprio Baptista, que repetiu aquella etymologia, não menciona Lourim entre as
quintas da referida freguezia, e sim fala de um casal do Lourim e de um Casal Novo
do Lourim.
Parece-nos que não seria esta a origem do onomástico Lourinhã, comquanto haja
exemplos de um casal ou de uma estalagem ter dado nome a uma povoação. Antes nos
inclinamos a acceitar a etymologia indicada por Cortesão : ' Lourinhã, da baixa latini-
dade — laureanea, terra abundante em loureiros.
De Laurianea, Laurian (Porl. Mon. — Leges et consvetudines, 1, pag. 447) ; e de Lau-
rian, Lourinhã.
A igreja matriz da Lourinhã era junto ao castello, ampla e magnifica — sumptuosa
257 — Um aspecto da villa
até. Tinha bellas columnas de mármore na capella-mór, um lindo pórtico de architectura
gothica, elegante charola e torre quadrada com pyramides.
Não se sabe ao certo o nome do seu fundador, mas diz-se que o arcebispo de
Braga, D. Lourenço, a sagrou no tempo de D. João L
Os annos e o vandalismo foram arruinando este templo, até que cahiu em total
abandono, sem ninguém lhe acudir — nem mesmo aos telhados !
Na actualidade, serve de igreja parochial a do extincto convento de Santo António,
que era de franciscanos e havia sido fundado em ibgS.
No lado do Evangelho, dentro de um mausoléo de mármore, jazem os restos mor-
taes da fundadora, a qual, por disposição testamentária, ordenou que o pessoal do con-
vento fosse limitado a dois ouvidores (confessores), dois ralhadores (pregadores), dois
gargalhitos (donatos); e um barbatão (leigo com barbas) — para o peditório.
Ha a mencionar n'esta igreja um altar de bello mosaico.
O claustro do convento tem cisterna de excellente agua.
» Subsídios para um diccionario completo, etc, tomo II, pag. 19.
VOL. II
34 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A Santa Casa da Misericórdia da Lourinha, fundada em i58(), possue hospital admi-
nistrado peia respectiva mesa.
Funccionam na villa duas escolas officiaes, sendo — Conde de Ferreira — a do sexo
masculino, e uma aula particular para o sexo feminino.
Ha duas sociedades de recreio— Club Recreativo 14 de Julho e Philarmonica Lou-
rinhanense ; um hotel, do Porphyrio ; quatro estabelecimentos de trens de aluguer ; lojas
de modas, fanqueiro, mercearia, quinquilharias, ferragens, louça, etc. ; agente do Banco
Lisboa & Açores ; agentes de seguros contra incêndios ; uma pharmacia, e um
medico.
Faz se mercado no ultimo domingo de cada mez, e feira — de S. Matheus —a 21
de setembro.
Acha-se estabelecido um serviço de diligencias entre a Lourinhã e Torres Vedras
(vinte kilometros de distancia) ao preço de 400 réis cada logar.
O orago da villa, cabeça do concelho, é Nossa Senhora da Annunciação ; e a po-
pulação é de 5. (334 habitantes, ambos os sexos.
Em 1902, o meu illustre amigo sr. Arthur Gonçalves, que aqui veiu ha muitos an-
nos crear familia, encetou a publicação de um periódico, intitulado A Tentativa, e im-
presso em Peniche.
Publicaram- se apenas 4 números. A tentativa falhou, apesar de arrojada. Foi assim
desmentido o provérbio latino: Audaces fortuna. . .
A villa da Lourinhã, como todo o concelho do seu nome, tem abundância de vinho,
cereaes, gados e caça. Também produz algum azeite.
Quanto a fructas, de que não é desprovida, as suas maçãs gosam a fama de serem
muito saborosas.
A Lourinhã foi berço de um d'esses famosos prelados guerreiros da idade media,
um d'esses bravos cavalleiros mitrados que, no campo de batalha, pelejavam por Deus
e pelo rei.
Refiro-me ao arcebispo de Braga D. Lourenço, um dos contendores em Aljubarro-
ta, onde com a cruz sobre o peito e o roquete sobre as armas, arremettia impávido
contra os castelhanos invocando Santa Maria e brandindo a espada.
Tanto avançava no ardor da peleja, a par dos mais esforçados, que recebeu no
rosto uma forte cutilada.
A este facto se refere elle próprio n'uma carta escripta, depois da batalha, a D.
João de Ornellas, abbade de Alcobaça: taprouve a Deus e a Santa Maria sua madre
que as ribeiradas do meu gilvaz sejam já vedadas.. . cá se vierem caizo, já darei e le-
varei outra pela mesma requesta, e crede vós, bom amigo, que quem esta pespegou
não levou enxebre, nem irá contar em Castella aos soalheiros o cruzamento de minha
cara*.
Tanto monta como dizer que a ferida está quasi cicatrizada, e elle prompto para
outra pela mesma causa — que era a independência da pátria ; mas que o castelhano que
lhe vibrou o golpe foi bem convidado, e não terá vontade de contar em Castella a ou-
sadia que commetteu pelo troco que apanhou.
E' tradição que D. Lourenço mandou em vida fazer o próprio tumulo e sobre a
pedra da campa lavrar o seu vulto.
Concluida a obra, foi o arcebispo examinala, e deu signaes de descontentamento.
O escuiptor mostrou-se surprehendido, e com o olhar— pois não ousou fazel-o cora
a palavra — interrogou a D. Lourenço sobre a causa do seu desagrado.
Então o arcebispo puxou da espada e com ella talhou um golpe na face da sua ima-
gem de pedra, tal como aquelle que o castelhano lhe havia descarregado ao vivo em
Aljubarrota.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA 35
O corpo de D. Lourenço conserva-se inteiro na Sé de Braga, exposto ao publico.
Peor sorte teve a casa onde nasceu, o Casal da Charrua, a 2 '/» kilometros da villa,
porque o deixaram arruinar completamente, sendo as ultimas pedras aproveitadas na
parede de um curral ! Triste e lastimoso !
No século XVIII (agosto de 1777) foi concedido o titulo de visconde da Lourinhã a
Manuel Bernardo de Mello e Castro, que falleceu a 19 de agosto de 1792, e era irmão
de Martinho de Mello e Castro, celebre ministro da marinha no reinado de D. Maria L
O 2,° visconde e i." conde do mesmo titulo foi João de Almeida de Mello e Castro,
casado com D. Domingas Izabel de Noronha, dama da rainha D. Carlota Joaquina, e
ainda lembrada na tradição aristocrática de Lisboa pela sua notável perversão de pala-
dar *.
A condessa da Lourinhã soflria d'aquella anomalia de gosto, que leva a recusar os
alimentos communs e a preferir-lhes substancias não nutritivas, e até repugnantes.
E' uma doença, a que alguns médicos dão indistinctamente o nome de malacia e
pica, se bem que outros designem particularmente a aberração pathologica a que nos
referimos pelo ultimo d'aquelles vocábulos, que realmente parece mais expressivo pela
correlação existente entre a depravação de gosto da ave chamada pega (pica em latim)
e igual depravação em indivíduos da espécie humana.
A pobre condessa da Lourinhã ingeria excrementos, e algumas vezes chegava a
mandar parar a sua carruagem para que o trintanario recolhesse na rua aquella sub-
stancia immunda que os francezes designam espirituosamente por — omelette quittée au
soleil; e Camillo, nos caminhos rústicos de Seide, não menos espirituosamente por —
boninas.
O concelho da Lourinhã inclue na sua extensa orla de litoral varias povoações ma-
rítimas e praias de banhos, assim dispostas, a contar do norte para o sul :
a) Sitio do Pai Mogo, com um posto fiscal e excellentes praias. (Funcciona aqui
uma armação de pesca, systema valencianoj.
bj Areia Branca, junto da qual fica a bella praia do mesmo nome, que serve todo
o concelho.
c) Montoito, que tem um posto fiscal e a praia da Peralta.
d) Atalaia de Cima e Atalaia de Baixo, servidas pelo Porto de Barcas, junto do qual
ha uma pequena praia de banhos.
é) Ribamar, que é servida por um pequeno mas seguro porto, denominado Porto
Dinheiro, onde muitas vezes se acolhem as embarcações de Peniche quando ha tem-
poral *.
As nossas cartas geographicas são tão incompletas e imperfeitas, especialmente as
que se destinam ao ensino publico, que aquella de que por vezes nos servimos apenas
menciona Ribamar como povoação marítima d'este concelho.
Voltando ao assumpto, diremos ainda que a linda praia da Areia Branca demora
a um kilometro da villa da Lourinhã, e que o panorama que se avista do Alto da Vigia
é verdadeiramente encantador.
No Porto de Barcas que — já o dissemos — serve as povoações da Atalaya, nau-
fragou ha vinte e cinco annos, por causa da agitação do mar, uma companha que tinha
ido levantar as redes lançadas junto a Peniche três dias antes.
Pereceram, quando entravam em Porto de Barcas, três dos pescadores, á vista de
terra, porque uma onda alterosa voltou o barco que elles tripulavam.
1 Braamcamp, Brasões, I, 217.
^ A praia de [íibamar aindi se prolonga ao sul para dentro do concelho de Torres Veiras.
36
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A scena foi lancinante. Os náufragos gritavam angustiosamente, e em terra os ha-
bitantes das Atalaias soltavam vozes de animação e estimulo, para evitar que perdes-
sem a coragem.
Tudo foi baldado.
Este naufrágio deixou uma lutuosa memoria.
Tanto a Areia Branca como as duas Atalaias pertencem á freguezia de Nossa Se-
nhora da Annunciação da Lourinhã; e bem assim o logar de Nadrupe, onde se faz uma
festa com arraial a Nossa Senhora da Graça.
O saloio da Lourinhã pode dizer-se que mantém ainda todos os costumes e usos
dos seus ascendentes, que irradiaram outr'ora do Termo de Lisboa.
Apenas no traje feminino, como também acontece nos arredores occidentaes da ca-
pital, se nota alguma evolução sob
a influencia do modelo de Torres
Vedras, importado de Lisboa.
A bota de cano alto vai ce-
dendo o logar á meia moderna e
ao sapato, especialmente nos dias
festivos.
O Diccionario 'Popular, de
Pinheiro Chagas, remata o seu
ligeiro artigo sobre a Lourinhã
dizendo: «Não sabemos qual a
origem do proioquio vulgar, que
faz com que se diga de um ho-
mem lorpa e que tudo ignora :
Parece que veio da Lourinhã, t
Este proioquio tem ainda ou-
tras modalidades, taes como: —
£' da Lourinhã ! — Não se faça
da Lourinhã! todas ellas batendo
no mesmo sentido.
E' provável que alguma anecdota explique a procedência do proioquio, como syn-
these da boçalidade do camponez da Lourinhã. Ignoramol-a. Mas o que sabemos é que
o povo d'este concelho conserva uma rudeza primitiva e aquella ignorância tradicional
que os saloios herdaram dos seus antepassados. Assim nos affirmam pessoas que de
perto o conhecem.
Comtudo devemos notar que não é só no nosso paiz, nem dentro d'elle apenas na
província da Extremadura, que uma ou outra povoação é citada por modo deprimente
para a maioria dos seus habitantes, pois que o incluir a totalidade seria grave injus-
tiça.
A freguezia do Ermello, em Mondim de Basto, e não Celorico de Basto como diz
Leite de Vasconcellos •, também passa na tradição por ser um cortiço de gente pouco
favorecida intellectualmcntc.
O concelho da Lourinhã tem uma população de 12.11S habitantes.
A sua principal producção agrícola é vinho, trigo, milho, batata e frutas.
Quanto ao vinho, ella tem aug'mentado muito desde que o professor Aguiar
258 — Paços do Concelho
• Annuario para o estudo das tradições, etc Ora no concelho de Celorico de Basto não ha nenhuma
freguezia nem logar com o nome de Krraello. Em Mondim é que a ha, e outras do mesmo nome nos con-
celhos dos Arcos e de Vianna. E em Baião também ha uma quinta assim chamada.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
37
publicou as suas Conferencias, pois que então, 1876, apenas satisfazia, em regra, ás
necessidades do consummo local.
Ha no concelho extensas pedreiras e também minas de azeviche.
Pertence este concelho, administrativamente, ao districto de Lisboa, e ecclesiasti-
camente ao Patriarchado.
A villa é cabeça de uma comarca de terceira classe.
Antigamente pertencia á comarca de Torres Vedras.
Lancemos agora os olhos pelas outras freguezias de que se compõe o concelho da
Lourinhã.
A freguezia de Miragaia (S. Lourenço dos Francos), contém 1.984 habitantes e
dista da cabeça do concelho 5 kilometros.
Não sei se haverá aqui algu-
ma lenda galante a justificar o ono-
mástico, ainda que tosse menos ga-
lante que a do Porto, reconstruída
por Garrett.
E' verdade que existem outras
Miragaias, nos concelhos de Pena-
fiel, de Águeda, de Paredes, da
Guarda e na ilha do Fayal, com
quanto eu lhes não conheça lenda
nenhuma.
Comprehende esta freguezia
vários logares, sendo um d'elles
Vai de Lobos, homonymo do que
Alexandre Herculano habitou junto
a Santarém; e outro, a Martellei-
ra, em cuja capella costuma fazer-
se uma festa rija a S. Sebastião.
Na Ribeira de Palheiros o san-
tuário de Nossa Senhora da Piedade inspira grande devoção ao povo, o qual, em occa-
siões de longa estiagem, costuma fazer uma procissão de penitencia, levando a imagem
para a igreja parochial.
E' perto d'este mesmo logar da Ribeira de Palheiros — apenas a distancia de Soo
metros — que fica a Ponte de D. Pedro, de que logo falaremos ao tratar da lenda de
Ignez de Castro.
Ha escolas em Miragaia e na Martelleira.
Funccionam na freguezia uma fabrica de distillação e um forno de telha.
A freguezia da Moita dos Ferreiros, orago Nossa Senhora da Conceição, conta 1.067
habitantes.
Fica na encosta de um rronte, a 10 kilometros da cabeça do concelho, para leste.
Tem escola do sexo masculino.
Comprehende dois logares, o da sede da parochia e o de Pinhôa, vários casaes, e
algumas quintas.
Faz-se aqui a feira chamada de Nossa Senhora da Misericórdia, no primeiro domingo
de setembro.
A freguezia de S. Domingos do Reguengo Grande, com uma população de 1.438
habitantes, dista 12 kilometros da cabeça do concelho, para nordeste.
Comprehende o logar do seu nome e o de Fontellas, vários casaes, e uma quinta
chamada de Villa Viçosa.
Ponte da Senhora dos Anjos, na estrada de Peniche
38 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Tem escola para o sexo masculino.
A freguezia de S. Lourenço dos Gallegos, 5 kilometros ao norte da villa da
Lourinhã, é povoada por 778 habitantes.
Comprehende vários logares, alguns casaes e as quintas da Fonte Real, • da
Junceira e da Lameira.
O logar sede da parochia tem o nome de S. Bartholomeu, e d'aqui vem dizerem
alguns erradamente — S. Bartholomeu dos Gallegos.
Junto ao logar do Poço ha uma nascente de agua sulphurosa, não explorada,
A 24 de agosto fazse a feira de S. Bartholomeu.
O logar de Vimeiro, sede da parochia d'este nome, fica n'um valle por onde corre
a ribeira de Maceira, e está entalado entre as colinas sinuosas, que para o norte
dominam a estrada da Lourinhã e para o sul as estradas de Torres Vedras e Mafra.
Por detraz d'e5tas colinas erguem-se ainda outras entre o Vimeiro e a costa.
A povoação dista da villa da Lourinhã 8 kilometros, para suaste.
A freguezia, cujo orago é S. Miguel, contém apenas ód5 habitantes, e só mais
outra povoação denominada Toledo, além de alguns casaes.
Nada recommendaiia o Vimeiro se não tivesse occorrido aqui, na primeira década
do século XIX, um importante acontecimento militar.
Depois da batalha da Roliça, a 17 de agosto de 1808, ao passo que Delaborde re-
tirava em paz sobre Torres Vedras, Wellesley marchava para a Lourinhã, aproximan-
do-se da costa, e no dia 19 estabelecia-se no Vimeiro.
Entretar to Junot, tendo saido de Lisboa e unindose a Loison, dirigia-se para
Torres Vedras, aonde chegou no dia 18, e encontrou as forças de Delaborde.
Demorou se dois dias em Torres Vedras, hesitando, e só na tarde do dia 20 se
resolveu a marchar para a Lourinhã.
Foi no dia 21 que se feriu a batalha.
Sir Wellesley commandava 28.000 homens, dos quaes 2.685 eram portuguezes.
O exercito francez compunha-se de 14.000 homens.
Além da desproporção das forças^ a posição de Wellesley era muito vantajosa pelo
accidentado do terreno, especialmente pelas colinas sobre as quaes postou a artilharia,
que dominava o valle.
O combate foi encarniçado e violento, havendo de parte a parte algumas cargas
brilhantes e algumas conversões rápidas e firmes.
Os francezes foram destroçados, perderam entre mortos e feridos 1:800 a 2:000
homens, e i3 peças de artilharia.
O general Brenier ficou pri.iioneiro, e o coronel Foy gravemente ferido.
Os inglezes perderam 720 homens, e os portuguezes 9.
Mesdames Foy e Trousset assistiram á batalha ao lado de Junot.
Os francezes retiraram em boa ordem para Torres Vedras.
Junot, desanimado, mandou propor um armistício, durante o qual se negociou a ce-
lebre convenção erradamente chamada de Cintra, que tão favorável foi aos francezes,
o que em Inglaterra causou grande indignação.
Lord Byron a ella se refere, irritado, no Childe Harold: «A loucura pisou aqui aos
pés o pennacho do vencedor, e a politica reconquistou o que perdera a espada!»
Segundo a convenção de 180S, os francezes sahiram de Portugal com armas e
bagagens, foram transportados por navios inglezes, c os generaes auctorisados a levar
o que em Portugal tinliam adquirido, isto é. . . roubado.
' Veja-se o que mais adiante dizemos a respeito d'csta fnnte.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA Sg
Em vão alguns generaes portuguezes e a côrte do Rio de Janeirc protestaram con-
tra estas concessões que nos humilhavam, e que mostravam da parte dos inglezes uma
transigência também humilhante para elles.
Só Junot, pelo seu lado, levou de Lisboa em dinheiro 77:4oo.'í?ooo réis e mui-
tas preciosidades, taes como a celebre Biblia dos Jeronymos — que depois teve de ser
resgatada por i4:40o5Pooo réis — e valiosíssimas jóias, entre as quaes um coUar de dia-
mantes no valor de 63:ooo.:*ooo réis.
Nada escapava á rapacidade de Junot — e dos outros francezes.
EUe até quiz fazer mão baixa no chapeo de S. Jorge.
A este respeito conta João Pedro Ribeiro nas Reflexões históricas: «Ouvi dizer que
o General Junot, quando tinha entrado em Lisboa com o Exercito Francez, requisitara
o chapeo da mesma Imagem (S. Jorge). A realidade d'este facto não a posso attestar,
somente ser devoção da Duqueza de Cadaval ornar para o dia da Procissão o chapeo,
que levava o Santo, com os seus riquíssimos Brilhantes, com os quaes o mesmo Gene-
ral, quando Embaixador em Lisboa, o tinha visto ataviado. Mas já então a Casa de Ca-
daval tinha acompanhado a Côrte para o Rio de Janeiro, e o chapeo de S. Jorge não
interessava a sua avidez». '
Pudera ! sem os brilhantes, para que queria Junot o chapeo do Santo ?
Napoleão Bonaparte, esse anão do inferno como lhe chama Byron, recebeu Junot
de sobrecenho carregado, dizendo-lhe com esmagadora seccura :
— Avant de rentrer á Paris il faudra retoiírner à Lisbonne.
E voltou, em 1810, n'uma posição secundaria, sob as ordens de Masséna, mas nem
então, nem antes, o orgulho de Napoleão tivera motivo para ficar lisonjeado.
No Vimeiro não ha nenhum monumento commemorativo da batalha, nem sequer o
menor vestígio dos seus destroços.
Apenas os habitantes mais velhos apontam por tradição recolhida dos antepassados
o logar do combate e evocam a posição e movimentos dos exércitos belligerantes.
Sir Arthur Wellesley foi pelo governo portuguez agraciado (decreto de i3 de maio
de 1811) com o titulo de conde do Vimeiro em. memoria d'esta batalha. (Veja-se Torres
Vedras).
II
FREGUEZIA DE MOLEDO -LENDA DE IGNEZ DE CASTRO
Esta freguezia, que tem por orago o Espirito Santo e apenas b\g habitantes de
ambos os sexos, é a menos populosa do actual concelho da Lourinhã, mas, entre as
ruraes, é a mais importante pelas suas tradições históricas, não só por haver sido ou-
tr'ora cabeça de concelho, com especiaes regalias, mas também porque se relaciona com
a famosa lenda de D. Ignez de Castro.
Leitor amigo, tenha paciência : vamos conversar um pouco sobre este assumpto,
que tanlo fala á sensibilidade meridional, e que nos reserva aqui algumas surpresas.
Deixe me começar um pouco de longe.
Foi na antiga livraria Bertrand, ao Chiado, que eu falei com o sr. Alexandre Her-
culano — uma única vez.
• Parte 1.*, pag. 38, not.
40
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
D'essa fugaz aproximação, para mim solemnissima, deixei memoria escripta em
outro livro meu '.
O illustre historiador, vendo claramente que estava deante de um rapaz cheio de
esperança e boa vontade, aconselhou-me traçando um caminho :
— Tem um interessante problema histórico a resolver, se quizer consagrar-lhe a sua
vida com perseverança e paciência. Vae talvez admirar-se.
— Ouvirei.
— Procure desembrulhar documentalmente a complicada questão — Ignez de Cas-
tro. Se puder encontrar provas decisivas, terá prestado um bom serviço.
Eu fiquei muito perturbado, e respondi timidamente ;
— Mas, sr. Herculano, sou pobre, preciso trabalhar, e não poderia ganhar a minha
vida consagrando a um único as-
sumpto o meu tempo todo.
— E' o mal que persegue os
nossos escriptores, replicou o emi-
nente homem de lettras.
As suas palavras nunca me es-
queceram, mas eu era então novo,
e deixava-me absorver quasi intei-
ramente pela fútil vida da imprensa
diária, que me dava algum dinhei-
ro e alguma evidencia. O resto do
tempo perdia-o alegremente. / ■' ■
Dois annos depois, em 1875,
lendo uma das eruditas notas ao
drama, melhor diria poema dramá-
tico D. Igne\ de Castro, de Júlio
de Castilho, tive occasião de pen-
sar mais a serio nas palavras de
Herculano : ahi se assignalava a
antinomia entre a candura que os
poetas attribuem a D. Ignez e a perversidade que pelo nosso povo de algumas provín-
cias do norte lhe é attribuida.
Chamara em certos sitios — diz J. de Castilho — a uma mulher intrigante, astuta
e perversa, Ignei de Crasto,
Esta bifurcação da lenda em dois poios oppostos, esta estranha antithese psycho-
logica entre a versão dos poetas e a versão do povo, anthitese indocumentada roas
parallelamente tradicional entre um c outro elemento, fez-me comprehender melhor as
palavras de Herculano, porque me entremostrou quanto, em verdade, o problema era
complicado e obscuro.
Decorrido mais tempo, quando já Camillo Castello Branco conhecia bem as aldeãs
minhotas, encontrei n'um romance seu, Mysterios de Fafe, a plena confirmação da
nota de J. de Castilho: «E já d'aquella sciencia histórica do Porto alguns ramaes tem
chegado ao centro do Minho ; porque as lavradeiras d'ali, se querem execrar uma mu-
lher impudica, chamam lhe Igne^ de Carasío.» ^
Em 1880 ou pouco antes alguém me deu copia de um documento existente no
260 — Antiga igreja do Castello;
• O capote do sr. Braj, pag. 25.
2 Fim do cap. XXI.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
tombo parochial de S. Lourenço de Azeitão, pelo qual se verificava que o palácio do
Salinas, em Aldeã Nogueira d'aquella freguezia, tinha pertencido á infanta D. Constan-
ça, mulher de D. Pedro, d'onde eu quiz concluir a possibilidade de que os arvoredos
de Azeitão, antiga estação fidalga no estio, houvessem escutado as primeiras confiden-
cias amorosas de D. Pedro e D. Ignez, isto segundo a antiga crença de ter D. Ignez sido
aia da infanta D. Constança.
Mal diria eu então — porque o ignorava totalmente — que a lenda de Ignez de
Castro a havia de encontrar ainda localisada em parte da sua feição idillica na mesma
província do sul, a Extremadura, mas em outra região distante, com todo aquelle mesmo
brilho de apaixonada ternura a que a corrente tradicional, seguida por Camões, tem
dado por único scenario «os saudosos campos do Mondego».
261 — Outro aspecto da villa
Em 18S7, vindo Camillo a Lisboa consultar alguns ophtalmologistas distinctos,
lastimou-se-me, no Hotel Universal, de provavelmente já não ter olhos para escrever
uma reconstituição biographica de Ignez de Castro, baseada em documentos.
Tornei a lembrar-me das palavras de Herculano, e perguntei :
— Coisas inéditas, talvez ?
— Basta dizer-lhe, respondeu Camillo, que principiarei por evidentemente provar
ter sido D. Ignez de Castro portugueza, nascida em Vailadares, concelho de Gaya.
— Sim. . . reflecti eu. D. Ignez, pela linha materna, era de origem portugueza e tinha
o appellido de Vailadares. Na Torre do Tombo existe a doação, feita pelo infante D.
Pedro a Ignez de Castro, do padroado da igreja de Santo André de Canidello, que
não fica longe de Vailadares. Também o testamento de D. Pedro m.antém aos filhos de
D. Ignez «que outro si foi nossa mulher» o direito de propriedade sobre o a quinta de
Canidello».
— Tudo isso, replicou Camillo com firmeza, seriam apenas indícios. Mas eu tenho
provas.
Chegaram visitas, e a conversação interrompeu-se.
VOL. 11 6
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Depois. . . Camillo cegou completamente, suicidou-se, e na casa de Seide não appa-
receram os seus papeis sobre Ignez de Castro.
Seriam talvez notas soltas, colhidas em nobiliários ou manuscriptos. Esta espécie
de documentos archivou muita falsidade, ingénua ou propositalmente ; mas também
salvou revelações, verídicas ou verosímeis, que se não pódern encontrar em mais parte
nenhuma.
O que não padece duvida —infelizmente ainda hoje — é que Alexandre Herculano
tinha carradas de razão para chamar «problema histórico» e «complicada questãoi ao
assumpto Ignez de Castro.
A lenda, com todas as suas vagas nebulosidades e salientes cqntradições, perma-
nece fundamentalmente no mesmo estado, mas desdobrase episodicamente ao sul no
concelho da Lourinhã, e é d'esse único ponto que eu hei de tratar, aclarando a tradição
por minuciosas informações colhidas na origem local.
Certamente o que melhor se pôde ler nas entrelinhas da trágica morte de Ignez de
Castro é a sua causa efficiente, de exclusivo caracter politico.
Isto pôde custar a comprehender hoje, dada a lenidade dos nossos costumes
modernos, que a civilisação bruniu e adoçou.
Mas devemos collocar-nos no século xiv, perante reis como foram Affonso IV e
Pedro I, empenhados em assegurar a independência do reino contra o estrangeiro, a
successão directa contra as pretensões dos bastardos e a concentração do poder real
contra a influencia dos parentes, do clero, da nobreza e das camarilhas.
Era um pensamento constante, insistente, necessário até, que se tornava obsessão
exaltada e, por isso, muitas vezes attingiu proporções deshumanas.
Affonso IV teve, como notou um erudito medico, * a concepção delirante da razão
de estado.
Pedro I desvairou pela justiça, segundo o mesmo iliustre commentador.
E assim como Affonso IV mede o perigo resultante da suggestão de uma linda
mulher, que enfeitiça o príncipe real, lhe dá bastardos, e abre, inconscientemente talvez,
a porta á influencia castelhana, pondo ao lado do poder do rei a ameaça do poder do
príncipe; Pedro I, dominado pelo seu ideal de justiça, que às vezes o torna sanguinário,
e pela mesma razão de estado, que o obriga a defender a integridade do poder real,
não só castiga atrocidade com atrocidade nos assassinos de Ignez de Castro, mas con-
segue de um só golpe vingar a morte da mulher amada e ostentar de um modo terrífico
a omnipotência da Coroa, na qual, segundo as idéas do tempo, residia a vontade
suprema e a suprema justiça, por delegação da auctoridade divina.
Afibnso IV reputava Ignez de Castro um duplo perigo politico, não só pelas suas
ligações de parentesco com fidalgos castelhanos, mas também porque era mãe de
bastardos.
Esta só palavra— bastardos— seria sufficiente para azedar o coração de Affonso, por-
que lhe recordava a encarniçada lucta com seu pai por causa de Affonso Sanches.
E comtudo essa recordação era apenas uma face da questão politica, da razão de
estado, tal como elle a via segundo a sua época e a sua própria intelligencia. *
Na calculada resolução que tomou a respeito da morte de D. Ignez de Castro de-
vemos attribuir a Afíonso IV tanto a premeditação como a responsabilidade, porque
■ O dr. Manuel Bento de Sousa, que pena foi que não estudasse toda a historia de Portugal sob o
ponto de vista da psychiatria
» «Mas D. Affonso IV, até ao fim da sua vida, fez sempre ceder todas as considerações ao que elle
julgava a razão d'Estado, e foi seguindo o seu caminho atropcllando ou desdenhando os obstáculos.»
Pinheiro Chagas Hisl- de Porl.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
tudo faz suppôr que os executores do assassínio antes seriana instrumentos fieis do
que deliberados conselheiros— pois que não podiam crer na sua absoluta impunidade
como cúmplices de um tal acto.
Dizerem alguns chronistas que o rei teve um momento de fraqueza e piedade, na
presença de Ignez e dos netos, e que foram os três validos que lhe dominaram esse
movimento de ternura, uma só cousa pode significar: propósito de attenuar perante a his-
toria a iniciativa do rei n'um facto que, fora da esphera politica, foi classificado de abo-
minável crueza.
Mas Affonso IV não era homem para ouvir melhor conselho do que o seu próprio.
Quando um dia pensou na confiscação dos bens de Affonso Sanches, realisou-a contra
a vontade das cortes e dos privados— saltou por cima de tudo para fazer a sua vontade.
Na hora da morte, não obstante o pacto de perdão celebrado com o filho, Affonso
IV parece sentir pesar-lhe o remorso de haver compromettido três dos seus amigos
na tragedia de Coimbra, e aconselha-os a fugirem.
Subindo ao throno, Pedro I quer— diz uma tradição não incontestada — que Ignez
de Castro seja rainha depois de morta, já que o não pudera ser em vida.
São passados seis annos depois do assassínio.
O periodo da decomposição cadavérica deve ter reduzido Ignez de Castro apenas
ao esqueleto. Não importa: o espectáculo será assim mais solemne e tremendo.
Essa mulher, de que só resta o arcabouço descarnado, será rainha posthuma, por-
que o rei assim o quer.
Pouco interessa que o casamento se effectuasse ou não; que seja verdadeiro, ou não
seja, o tardio auto matrimonial existente na Torre do Tombo; que D. Pedro falasse
verdade ou mentisse nos dois documentos em que nomeou D. Ignez como sua mulher.
O que se conta é que ella foi rainha depois de morta— em esqueleto; que a senta-
ram no throno, a revestiram de coroa e manto, e lhe beijaram a mão; porque a vontade
do rei assim o qui^, ordenou e julgou preciso á dignidade da realeza e ao seu ideal de
justiça de talião. *
Durante a vida de Ignez de Castro o apaixonado Pedro sacrifica-se para salval-a,
pois que ainda não é rei : chega a mentir dizendo que não pensava em desposal-a nem
desposaria, isto para desviar d'ahi a attenção de Atfonso IV e pelo próprio bem que a
ella queria, segundo a phrase de Garcia de Rezende.
Alguns escriptores estranharam que D. Pedro I só depois de cinco annos de rei-
nado declarasse ter desposado Ignez de Castro.
Cremos que o não quizera fazer emquanto sua mãe fora viva, por filial respeito,
talvez até por evitar mentir-lhe, o que seria uma cruel ingratidão para com a bondosa
e pacificadora rainha — muito caroavel como avó para os filhos de D. Ignez de Castro,
dos quaes se não esqueceu no testamento.
Mas a rainha D. Beatriz falleceu em outubro de iSig; logo no anno seguinte D. Pe-
dro I declara ter casado com D. Ignez de Castro; e em i36i fal-a exhumar e reconhe-
cer como rainha, se a memoria da coroação é verdadeira.
Tem se dito que influirá no espirito de Affonso IV a consideração de que Ignez de
Castro era uma bastarda, indigna por isso de occupar o throno.
Não ha duvida de que era filha natural do fidalgo castelhano D. Pedro Fernandes
de Castro, o qual se creára em Portugal na corte de D. Diniz ; mas o pai d'este D. Pedro
* O Chronicon conimb. diz que D. Ignez foi degolada ; mas Garcia de Rezende, nas Trovas, diz que
lhe traspassaram o coração, o que parece mais verosirail. De um modo ou outro, a cerimonia da inves-
tidura presuppõe a articulação do esqueleto.
44
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
de Castro fôra casado com D. Violanta Sanches, também filha natural de Sancho IV de
Castella, pai da rainha D. Beatriz, pelo que Ignez de Castro era prima de D. Pedro I
— embora por bastardia.
D. Pedro Fernandes de Castro, por alcunha o da guerra, foi casado duas vezes, e
fora do matrimonio houve um filho Álvaro, e uma filha Ignez, de uma sua parenta, D.
Aldonça Lourenço de Valladares, filha por sua vez de Lourenço Soares de Valladares,
fronteiro-mór de Entre-Douro-e-Minho.
A ascendência de D. Ignez de Castro não era, pois, obscura nem humilde, e o
facto de ser bastarda não implicava desdouro entre as classes nobres, que muito se pre-
savam de bom sangue, legitimo ou illegitimo.
A posição de Aldonça Lourenço no palácio de D. Pedro de Castro era de dama de
honor ou don^ella nobre de sua se-
gunda mulher D. Izabel Ponce de
Leão.
Notável coincidência a de te-
rem tanto a mãe como a filha dado
bastardos aos maridos das senho-
ras a quem acompanhavam — am-
bos estes com o nome de Pedro;
posto que eu esteja convencido de
que Ignez de Castro não foi aia da
infanta D. Constança ou só por
pouco tempo o seria.
Supponho também que Ignez
de Castro, que primeiro usava o
appellido de Pires — como sempre
usou seu irmão Álvaro emquanto
não foi conde de Arraiolos — subs-
tituiria este appellido por aquelle
n'um intuito de maior nobilitação
para se impor, quando já era amada
por D. Pedro, ao respeito da corte portugueza, lembrando-lhe que por sua avó paterna
descendia de bastardia real.
Em que época principiariam os amores com D. Pedro? Diz se geralmente que Ignez
de Castro viera para Portugal como aia de D. Constança: n'este caso, os amores leriam
cf^meçado durante o matrimonio do principe.
Mas da tragedia Castro, de António Ferreira, o qual falleceu da peste grande em
16G9, e portanto precedeu o poema de Camões, deprehende-se — o que Duarte Nunes
de Lião corrobora — que foi antes do casamento com D. Constança que principiaram
os amores com Ignez de Castro ou porque eila tivesse vindo educar se em Portugal
como seu pai, ou porque aqui nascesse e ficasse.
Diz Ferreira :
Por mim lhe aborreciam altos estados,
Por mim os nomes de Princezas grandes.
Por tão grande me avia nos seus olhos.
Hum tempo duro, mas em fim forçado
Deu a Constança n mão, Constança aquelia
Por tantas armas, e furor trazida,
Já quasi do seu fado triste agouro :
Deu a Consljn(a a mão, mas a alma livre,
Amor, desejo, e fé me guardai sempre.
262 — Lavadouro do Poço Novo
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
Segundo esta versão, que concorda com a de alguns chronistas, D. Pedro já amava
Ignez de Castro quando a razão de estado, imposta por seu pai, o obrigou a desposar
D. Constança Manuel.
Esta infanta teria conhecido, logo no primeiro anno de casada, provavelmente por
denuncia, os amores de D. Pedro com a linda Collo de garça.
Procurando cortar sem violência — porque o seu caracter não era violento — mas
pelo escrúpulo e preconceito religioso estas relações illicitas, convidaria Ignez de Castro
para madrinha do infante D. Luiz, que deve ter nascido em iS^i, isto é, no anno se-
guinte áquelle em que D. Constança veio para Portugal.
Kuinas do corpo e naves lateraes da igreja do Castello
Mas o suave rodeio que a infanta procurava não produziu o resultado que ella
sonhou. Os amores illicitos e escandalosos continuaram.
Ora a infanta D. Constança poderia ter feito valer, para divorciarse, uma clausula
do seu contrato nupcial — a qual dizia que, no caso de haver filhos, se devia impedir
que D. Pedro tivesse relações com outras mulheres.
Esta estranha clausula não faz suppôr que D. João Manuel, pae de D. Constança,
estava já bem informado dos amores do noivo com Ignez de Castro ?
A pobre infanta nunca fez valer n'esse ponto o seu contrato nupcial.
Affbnso IV, reconhecendo que nem o casamento nem o compadrio haviam dado
resultado, devia ter-se convencido de que a paixão de D. Pedro pela formosa Ignez era
invencível.
Mas susteve a fogosidade do seu caracter, porque se via melindrosamente collo-
cado entre o herdeiro legitimo do throno e uma fraca mulher mais perigosa pelas cir-
cumstancias do que por si mesma: a situação era diílicil e embaraçante.
46 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Este estado de coisas durou todo o tempo que D. Constança viveu casada, desde
1340 até 1345 ou 1349.
O perigo, durante a viuvez de D. Pedro, tornara se maior. Mas o principe procu-
rava tranquillisar o pae insistindo em que não desposara, nem desposaria Ignez de
Castro. Comtudo continuava a dedicar-lhe o mesmo extremoso aÉFecto.
Passaram mais 10 ou pelo menos 6 annos e a situação não se modificava. Ao passo
que Affonso IV, já com 64 annos, avançava para o tumulo, parecia Ignez de Castro
avançar para o throno.
O successor legitimo de D. Pedro, o infante D. Fernando, tinha 10 annos, era
certamente mais novo que o infante D. João, dos filhos illegitimos de Ignez de Castro
o mais velho, a esse tempo, porque o primogénito fallecêra.
Affonso IV via agora mais de perto a probabilidade de complicações futuras: uma
rainha adorada pelo herdeiro da coroa; uma corte castelhana, absorvente e arrogante;
um herdeiro legitimo espoliado.
Foi então que, ao cabo de i3 annos de lucta comsigo mesmo, achou que a razão
de estado se impunha inadiável, e que a morte de Ignez de Castro se tornara urgente
— para cortar o mal pela raiz.
Convencido do que julgou seu dever de rei, Affonso IV acabou por mandar execu-
tar o que de longe vinha premeditando; e Ignez de Castro foi assassinada.
Em volta d'este trágico acontecimento, a imaginação popular formou rapidamente
uma lenda de galantaria e martyrio, sem lhe penetrar a significação politica. Os poetas
navegaram na esteira lendária do povo, sobrepondo o poema de amor á razão de es-
tado. Ignez é uma cordeira innocente, apenas culpada de ter
subjeito
O coração, a quem soube vencella.
Garcia de Rezende, cujas pisadas Camões seguiu n'este episodio, descreve o ninho
amoroso de Ignez de Castro para salientar a crueldade de desfazel-o e ensanguental-o:
Estaua muy acatada,
como princesa seruida,
em meus paços muy honirada,
de tudo muy abastada,
de meu senhor muy querida.
Mas se as ideias do tempo absolviam, como é certo, o adultério e o escândalo pu-
blico, também, segundo ellas, devemos admittir a razão de estado tal como era compre-
hendida no século xiv.
Alexandre Herculano, remontando-se a essa época para perder de vista a nossa,
disse, e com razão, que a morte de Ignez de Castro fora um «crime patriótico».
O que é evidente é que a lenda passional resiste e subsiste, tal como foi creada
pelo povo e alimentada pelos poetas ; resiste e subsiste apesar de contrariada ou des-
mentida em muitos dos seus pormenores.
No Minho, onde maior distancia tornou menos funda a impressão da lenda, Ignez
de Castro não é a pomba ou cordeira dos poetas, mas o typo da mulher impudica e en-
redadeira.
Mais ainda. E' certo que Ignez de Castro não foi assassinada junto á actual Fonte
dos Amores, mas no Paço de Santa Clara, que a Rainha Santa mandou erigir a par do
A EXTREMADURA PORTUGUEZA 47
antigo convento d'aquella invocação, no arrabalde de Coinnbra *. Em i355, no logar
d'esta Fonte, apenas existiam uns moinhos pertencentes aos padres de Santa Cruz *.
Assim, as pedras encarnadas, que, vizinhas da Fonte actual, dizem tintas do sangue
de Igne^, e as raizes filamentosas e ruivas que passam por ser os seus cabellos arrepel-
lados no aíBictivo transe, completam na imaginação popular a lenda de que foram as la-
grimas da victima que deram o nome a uma quinta, e os seus amores a uma fonte, que
até ao século xvi se denominava apenas Fonte Nova.
A Fonte dos Amores, a que Luiz de Camões se referia, ficava na Quinta do pom-
bal, junto ao antigo mosteiro, que abastecia de agua por um cano do mesmo nome da
fonte. E i8 annos antes dos Lusiadas, outro escriptor, para explicar aquelle nome, re-
corria a diversa ficção poética, aliás menos bella^.
Comtudo, a lenda continua a ver na Quinta das Lagrimas a Fonte dos Amores de
Ignez de Castro, junto á fonte os cabellos e o sangue da victima, e crê que pelo cano ali
existente mandava D. Pedro as suas cartas dentro de barquinhos de cortiça, como se
elle precisasse escrever a quem facilmente podia visitar no paço de Santa Clara.
Os altos cedros que dão tanto caracter de melancolia á Fonte que hoje vemos na
Quinta das Lagrimas, são arvores relativamente modernas em Portugal, onde esta es-
pécie botânica foi introduzida no fim do século xvii *.
Quanto ao pormenor pittoresco dos cabellos, lembra nos contar, a propósito, o
seguinte facto histórico: quando em 1810 os francezes violaram em Alcobaça o tumulo
de Ignez, e até mutilaram o nariz da estatua lavrada horizontalmente sobre o mausoléo,
foram encontrados em bom estado os cabellos da pallida don^ella, rainha posthuma,
depois adquiridos em parte por algumas senhoras portuguezas, e em parte levados ao
Rio de Janeiro, onde, na occasião em que o conde de Linhares os estava mostrando a
D. João VL uma forte rajada de vento os arrebatou dispersando-os ^.
Mau fado perseguiu Ignez de Castro, nos amores, na morte, nos filhos, e até nos
cabellos.
O que é certo é que a lenda da desditosa Ignez teve em Portugal differentes focos
de irradiação, como um vasto drama que se fosse desenrolando em muitos palcos.
Em Bragança, o supposto casamento ^; junto á Guarda — como logo contarei — o
deporte da equitação; em Coimbra, o assassínio trágico; em Santarém, a morte violenta
de Pedro Coelho e Álvaro Gonçalves; em Alcobaça, os dois túmulos; na Lourinhã o
idillio amoroso, cheio ainda de mysterio mas já de ternura, como vamos ver pela lenda
recolhida no próprio logar.
Segundo tenho podido averiguar, foi em 1862 que José Joaquim Roque Delgado,
então administrador do concelho da Lourinhã, pela primeira vez fez saber em publico,
no Almanach de Lembranças^ que na freguezia de Moledo d'aquelle concelho existiam
as ruinas de um palácio em que viveu D. Ignez de Castro, e onde muitas vezes fora vi-
sitada por D. Pedro; que a uma légua de distancia d'este palácio, na freguezia de S.
Lourenço dos Francos, havia uma ponte chamada de D. Pedro; que nas proximidades
do palácio tinham apparecido dous braceletes de ouro, um dos quaes rendeu i44íJ)OOff réis;
* No paço de Santa Clara é que Ignez de Castro residia, cf. Fernam Lopes. Foi assassinada á porta
d'este paço, cf. Coimbra glorhsa, manuscripto da B. N. de Lisboa. Coelho Gasco, nas Antiguidades de
Coimbra, também diz que foi no paço, sitio do Culgo.
2 Viagem dos imperadores do Brapl em Portugal, pag. 197.
3 Dr. Ribeiro de Vasconcellos, D. Isabel de Aragão, I, pag. Jií-22i.
* Archivo Pittoresco, III, pag. igi.
5 Interessante artigo do sr. Simões de Castro no Almanach das Senhoras, de 1872 ou 1873.
* Provas da Hist. Gen., 1, 275.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
finalmente, que no mesmo palácio se conservava um pedestal ' — que parecia ter sido de
alguma estatua gigantesca— e que n'elle havia uma inscripção indecifrável, bem como as
armas da primeira casa reinante em Portugal.
Era em verdade muito interessante este filão, mas nem Almeida em 1866, nem
Pinho Leal em 1874, nem Baptista em 1876 fizeram mais do que repetir, ás vezes copiar,
aquella vaga indicação, contentandose com isso.
Vamos por nossa parte dizer quanto nos foi possível apurar. -
Transportemo-nos, para isso, á semi-selvagem região que, situada entre os conce-
lhos da Lourinhã, de Peniche e Óbidos, 6 kilornetros distante da costa do mar, tem o
nome de Cesarêda.
Nery Delgado suppõe que este onomástico é uma derivação de César, pois que,
segundo a tradição local, foi aqui estabelecido um arraial durante o dominio romano;
Leite de Vasconcellos suppõe que Cesarêda venha de cicereta (ciceraj ou de cerasela
(cerasus) e que o suffixo signifique ajuntamento.
Deixemos Leite de Vasconcellos a debicar estas ervilhas ou cerejas etymologicas,
e passemos adeante.
Segundo as suas relações orographicas, a Cesarêda pode considerarse como extre-
midade de um contraforte da serra de Monte Junto dirigido para noroeste.
Mas, sob o ponto de vista geológico, deve tomar-se como um centro de elevação
independente, com bem definida caracterisação jurássica: representa o planalto de uma
colina, circumscripto ao norte e poente pelas duas importantes bacias da Columbeira
e do valle de S. Bartholomeu.
Toda esta região da Cesarêda offerece ao observador o resultado patente de gran-
des e repetidas perturbações que o solo soffreu em diflerentes épocas geológicas.
O sr. Nery Delgado, cujas informações acceitamos na sua mesma forma litteraU
estudou algumas das notáveis grutas d'esta região, a saber : Casa da Moura, kilometro
e meio ao sueste da aldeã da Serra de ElRei; Lapa Furada^ a pequena distancia e a
susuéste da pyramide da Cesarêda; e Cova da Moura, que domina a planície de S. Bar-
tholomeu a uns 40 ou 5o metros de altura. ^
Toda a Cesarêda tem, aproximadamente, 12 kilometros de extensão e 8 de largura.
Na linha peripherica ficam as aldeãs de S. Bartholomeu, Reguengo Pequeno, Fon-
tellas, Reguengo Grande, e Pena Secca, do concelho da Lourinhã; Pó, Olho Marinho,
Columbeira, Amoreira, Roliça e Zambujeira dos Carros, do concelho de Óbidos; Serra
de El-Rei, do concelho de Peniche.
Esta região é apenas frequentada por caçadores, em cujo numero já tem figurado
el-rei D. Carlos.
No interior existe uma única povoação, o Moledo, que penetra a uns Soo metros
talvez, da peripheria.
A freguezia deste nome fica, pois, em plena Cesarêda, enterrada entre penhascos,
a ponto de que algumas de suas humildes casas teem como parte integrante da parede
a rocha natural.
Os caminhos são escabrosos e agrestes — apenas carreiros de cabras.
No século XIV, muito mais do que hoje, o povo de Moledo, essencialmente fragoeiro»
vivia como ignorado n'este rincão montuoso, solitário e difficilmente acccssivel.
• D'eBte pedestal ninguém hoje, em Moledo, sabe dar noticia.
^ Com o valioso auxilio do sr. Arthur Gonçalves, illustrado secretario da camará da Lourinhã;
e dos rev."" Jacinto F. Ferreira, parocho em Moledo, e Costa L.eal, parocho em Serra d'El-Rci.
' Noticia acerca ias grutas da Cesarêda, Lisboa, 1867.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
49
Actualmente, as casas são caiadas, mas de longs apenas se lhes distingu em os te-
lhados, tal é a barreira de rochedos que as entaipam.
Junto á povoação, pelo norte, abre-se, como agradável parenthesis, uma veiga,
limitada de uma parte pela estrada de Lisboa, e de outra parte por um sinuoso se bera
que limpido ribeiro.
N'esta veiga houve outr'ora um palácio que o povo crê ter sido magnifico, posto
que os indivíduos mais velhos da localidade digam ter apenas conhecido uma singela
moradia, aproveitada do resto da antiga residência.
No archivo da parochia ou na mão de particulares não existe documento algum
que se refira ao «Paço de D. Ignez».
O logar, não despiciendo, mas ermo, e de áspero ingresso, devia convidar receosos
amantes a irem esconder ali o seu clandestino ninho de amor.
O infante D. Pedro conhe-
cia-© pelas frequentes excursões
venatorias que fazia na Cesarêda,
quando estava em Serra d'El-Rei,
onde Affonso IV, segundo a len-
da, mandara erigir um paço des-
tinado principalmente a casa de
caça e concomitantemente a aviá-
rio.
Falemos já d'este paço, dei-
xando para logo o palácio de Mo-
ledo.
A Serra de El Rei constitue
uma freguezia do concelho de Pe-
niche; mas por amor da lenda de
Ignez de Castro seja-nos permitti-
do dizer agora o que deveria ser
dito quando tratarmos d'aquelle
concelho. E' tarefa que fica arru- 204 - tira uu ...L„ut.uu
mada.
Deste palácio deu Sousa Viterbo uma dupla noticia : documentada quanto á no-
meação de alguns dos seus paceiros e a ter havido ali um viveiro de pavões ; impres-
sionista, recordando o que do mesmo palácio pudera vêr n'um passeio das Caldas
da Rainha a Peniche.
«Antes de chegar á Athouguia — diz Viterbo — observamos que as casas que
bordam a estrada apresentavam vestígios de materiaes pertencentes a alguma construcção
importante. Mais além um muro grandioso debruçava se imponente sobre o nosso ca-
minho. Era um resto dos paços reaes da Serra da Athouguia, que hoje são propriedade
particular, tendo sido vendidos, cremos nós, depois de finda a lucta entre constitu-
cionaes e miguelistas. Quando regressámos de Peniche, apeámonos e visitámos de
passagem a casaria que resta e onde ha ainda algumas janellas e portas interessantes.
Nos jardins descobrem-se azulejos, que forravam canteiros». '
Pelos vestígios do antigo paço da Serra da Athouguia (ou d'El-Rei em razão
do paço) vê-se que a construcção devia ter sido grandiosa.
Hoje apenas existem as paredes do palácio e umas abobadas, que lá dizem ser de
' Dicc. histórico e documental dos archilectos portugueses, vol. II, pag. 520.
VOL. II
5o EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
um castello; toda a área outr'ora abrangida pelo palácio e suas dependências foi appli-
cada á cultura de trigo, milho, batata, etc.
Um terreno que teria sido jardim ou tanque revela algum d' estes destinos pelos azu-
lejos que ainda revestem as paredes.
Toda a propriedade pertence actualmente ao sr. dr. Faria, de Barcellos, que a
herdou de seu tio José Diogo da Fonseca Pereira, de Peniche.
As ruinas do paço estão situadas, junto da estrada de macdame que conduz a Pe-
niche, ao poente do moderno logar da Serra d'El Rei; e d'ellas se avista um lindo pano-
rama marítimo sobre aquella villa.
A antiga povoação era onde agora se chama Serra Pequena e existe uma capella
de Nossa Senhora do Amparo.
Deslocou-se, para se aproximar do paço real e viver ali tranquilla e contente gra-
ças aos privilégios que lhe foram concedidos e que se estenderam a todo o velho con-
celho de Moledo, hoje extincto.
Era natural que os vizinhos de um paço real gosassem regalias excepcionaes ; mas
o facto de tornal-as extensivas aos habitantes de Moledo, sendo attribuido a D. Pedro,
fdz suppor que essa concessão era um laço estreitado entre o príncipe e o povo por
algum motivo especial, que não parece difficil descobrir.
Um d'esses privilégios da povoação de Moledo consistia em não ter que dar
recrutas.
Ainda agora os seus habitantes se ufanam d'essas antigas regalias, que foram
extinctas pelo regimen constitucional; e algumas vezes, immobilisados na sua rude igno-
rância, querem fazel-as valer, coitados ! — illusão que pouco lhes dura.
Diz a tradição que do chamado castello da Serra de El-Rei se avistava o Moledo,
o que não parece crivei.
Nenhum documento do archivo parochial faz menção do paço, nem das proprieda-
des a elle annexas.
Por que seria que o infante D. Pedro estendeu ao Moledo os privilégios excepcionaes
de que gosavam os vizinhos do paço na Serra ?
Porque Moledo fora um retiro amoroso de D. Ignez de Castro, a quem, segundo
a lenda, D. Pedro mandara aqui edificar um palácio, onde a mantivera escondida,
como precioso thesouro de belleza e ternura.
E provavelmente por conveniência de ter do seu lado os camponezes do Moledo
emquanto o mysterioso idillio durou, conseguiria D. Pedro que a elles se tornassem
extensivos os privilégios dos habitantes da Serra.
Assim, confiadamente, poderia D. Pedro, estando no paço da Athouguia com o fim
apparente de caçar, fazer de dia ou de noite, sem receio de uma denuncia ou surpresa»
o caminho entre a Serra e o Moledo.
Assim entregava elle, não menos confiadamente, á guarda dos camponez.s seus
amigos a pessoa da linda Ignez, por cuja segurança elles olhariam com dedicação
quando o príncipe estava ausente.
Nos camponezes confiava, pois.
Mas ali mesmo se arreceava dos espiões do rei, e só d'esses. Era preciso acaute-
lar d'clles o doce segredo que D. Pedro escondia na alma. Os camponezes da Serra e
do Moledo não falariam, gratos ao príncipe, ainda que fossem interrogados. Mas po-
diam falar aos olhos de espiões hábeis as pegadas do cavallo que D. Pedro montava.
Por isso, o príncipe, quando vinha ao Moledo, tomava a precaução, segundo ainda hoje
se conta na Serra, de mandar ferrar ás avessas o seu ginete.
O palácio encantado de Moledo tomou na tradição o nome de tPaço de D. Ignez».
No momento em que escrevo (abril de 1906) apenas existem d'este palácio os se-
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
guintes indícios: um muro que veda a propriedade; no logar do edifício signaes evi-
dentíssimos de ter sido a parede revestida de azulejo; e restos da antiga calçada que li-
gava o Paço com a igreja matriz, incluindo uma ponte de lages assente em dois pegões
sobre o ribeiro que limita a cerca pelo sul.
Perto e dentro d'esta cerca vê-se ainda uma fonte, com idêntico azulejo, a qual, po-
rem, vai sendo destruída pelo povo, sempre na crença de encontrar algum thesouro es-
condido.
Esta crença é principalmente alimentada pelo facto, aliás verdadeiro, de haverem
sido achadas antes de i852 — quando se procedia a umas excavações — duas manilhas de
A. TENTATIVA
SíIHANAHIO INDEPENDESTE, iJTTERABIO E NOrxCIOSO
J^rroR TTPÒOBAPinA
SUBfl Felipfí iíBÍfS iicUo.hA.^ .^ u.lwiMt»!
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yniilili^riíuciilu ijc^m luralnl .<J ,
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II ipsi p firiiii>:inicíilii (lo> r^|)»:l|ta«
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miiigos Fia .Mil<-(l<;lojjafiW (k .-inajá !
firiicco ^'iltuUiiitfnle n^a uMiuu.
265— Fac-sitnile do periódico A Tentativa
ouro, que foram estupidamente vendidas a um ourives de Lisboa, para derreter, sem
que se pretendesse investigar sobre o seu valor histórico.
As ultimas pedras do Paço de D. Ignez foram dispersas não menos estupidamente.
Algumas aproveitaram-n'as na construcção de uma adega.
Outras transportaram-n'as para a aldéa do Turcifal de Cima — logar comprehendido
na freguezia da villa da Lourinhã— onde continuam evidenciando a sua nobre origem :
destroços de janellas e portas em ogiva, bem trabalhadas.
Entre as pedras que não saíram da freguezia de Moledo, algumas ha que servem
de apoio aos abrigos das eiras e que eram outr'ora destinadas, a exemplo das que exis-
tem na villa de Athouguia da Baleia, a formar trincheira no recinto onde D. Pedro
corria touros.
Em nenhuma das pedras desviadas do Paço se encontra qualquer lettra ou data '.
i Em Moledo a única inscripção, que se nos depara, nada tem com o Paço de D. Ignez. Lê-se na
porta do antigo celleiro dos dízimos, e diz:
SEe=S^-IOAM=i629
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A quinta do Paço tem um magnifico laranjal e uma vinha que são fechados pelo muro.
O Paço devia ser no sitio em que se vê hoje o laranjal.
Em princípios do século xix a «singela moradia», que era resto do Paço, estava
ainda de pé e n'ella residiam os seus proprietários, morgados Pestanas, que por este
motivo foram chamados — do Paço — como actualmente o são os seus descendentes.
Hoje a quinta pertence a José Soares, residente no logar de Olho Marinho, con-
celho de Óbidos.
Faz pena que se deixasse cair ao abandono o Paço de Moledo, e que todas as
suas pedras se dispersassem, incluindo as que formavam um banco, onde, diz a lenda,
Ignez de Castro vinha sentar-se para esperar D. Pedro, junto ao regato que deslisa
n'uma extrema da propriedade.
Aqui sim, aqui em Moledo supponho eu que Ignez de Castro permaneceria mais
tempo do que em outro logar; que este seu retiro amoroso duraria por uns dez, doze ou
quinze annos talvez, salvas aquellas constrangidas ausências a que D Ignez de Castro
era forçada para seguir as mobilisações da corte, sempre errante n'essa época.
Contou-me uma vez o mallogrado Manuel da Assumpção ter descoberto que no
disiricto da Guarda — em Jarmello — havia um penedo com o nome de Ignez de Cas-
tro, porque ali subia ella para montar no seu palafrem.
Também o contou a Thomaz Ribeiro, que a esta tradição se referiu numa das
notas ao poema O mensageiro de Fe^ (pag- '97)-
Por minha parte alguma cousa pude apurar também sobre a lenda de Jarmello. •
Na Guarda, como em Coimbra n'esse fatal janeiro de i355, estaria Ignez de Castro
por accidente; que a sua residência habitual e predilecta parece-me ter sido Moledo.
E' que ha tantas e tão intensas tradições incidindo sobre esta localidade.. .
Ainda vou referir mais duas, para reforçar o meu dito.
Saindo de Moledo em direcção a Lisboa pela antiga estrada que passava junto ao
Paço de D. Ignez, encontra-se na freguezia de S. Lourenço dos PVancos ou Miragaia,
dentro do mesmo concelho, uma ponte denominada de — D. Pedro.
E' de tijolo, com um só arco, de volta abatida. Já não tem vestígio algum de cor-
tina. Ameaça completo desmoronamento. Não tardará muito a cair — e deixal-a-hão
cair com certeza.
• o Jarmello são duas freguezias do actual concelho da Guarda, S. Pedro e S. Miguel. Antigamente
foi concelho, e hoje nem vilia é. Diz a tradição que D. Pedro a mandou arraiar e salgar, certamente
depois do assassínio de D. Ignez, por ser a terra onde Diogo Lopes Pacheco, um dos implicados n'aquelle
acto, tinha soljr e domínio.
Quanto ao solar, apenas restam as ruinas de um casarão ensilveirado.
Conta-se que D. Ignez estivera no Jarmello, e que ali cavalgava o seu palafrem subindo a uma
pedra por isso chamada depois pedra de montar.
Esta pedra tem sido muitas vezes removida pelos pastores, crentes era que debaixo d'ella ha
dinheiro enterrado.
N'uma lage, que está um pouco distante da pedra d", n.ontar, mas que talvez outr'ora estivesse
perto d'ella, ha ou houve uma inscripção que dizia :
Adeus, vilIa de Jarmello,
Adeus, pedra de montar,
Emquanto o mundo fôr mundo
Cinco reis has de pagar.
Isto parece alludir a um foro de 3 reis que a camará cobrava da Coroa por aquelle penedo, talvez
para perpetuar a honra da serventia que elle tivera.
Também na Guarda se diz ainda hoje que D. Ignez tinha a garganta tão transparente, que se via
passar a agua na occasião de bebel-a.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
Passa sobre a ribeira — da Lourinhã — a uns 5oo metros do logar da Ribeira de
Palheiros, junto do casal das Quintas.
Por que se chama de D. Pedro esta ponte?
Por que elle a mandara construir, diz a lenda. Era o seu caminho quando estava
em Torres ou em Lisboa e queria vir ao Moledo. Algumas vezes, no inverno, a ribeira
desbordaria, e a passagem seria incommoda para D. Pedro e ainda mais para o seu
querido povo d'estes Jogares, que lh'o representaria talvez.
Na freguezia de S. Lourenço dos Gallegos, Soo metros ao poente do logar de S. Bar-
tholomeu, existem os casaes do Mosteiro, que tiram seu nome de um extincto convento
de frades gracianos, cuja cerca era constituída por parte dos terrenos pertencentes hoje
á Quinta da Fonte Real.
Diz a tradição popular que o Rei Cru, como ali geralmente designam D. Pedro I,
atravessando um dia a Cesarêda, quando do Paço de Moledo se dirigia para o da Serra
d'El-Rei, veio ter áquelle convento e ali bebeu agua da fonte da cerca.
Não foi preciso mais para que a fonte ficasse sendo real.
Esta fonte está actualmente tapada, todavia o seu nome perpetuou-se na quinta.
Tem a freguezia um logar chamado Paço. Mas nos livros parochiaes mais antigos
é sempre graphado Passo. Só pelo meado do século xix (".842) foi que um parocho
começou a escrever — Paço. Parece, porém, que deverá ser Payso, isto é, ponto de
passagem da Cesarêda para a Serra d'El Rei.
Não serão todas estas tradições uma verdadeira surpresa para a maior parte dos
leitores ? Creio bem que sim.
Penso que os amores de D. Pedro com Ignez de Castro, anteriores, segundo a ver-
são de Ferreira e outros, ao casamento com D. Constança, começariam pouco depois de
ter sido posto de parte o projecto de casamento com D. Branca de Castella.
Ora o casamento de D. Pedro com D. Constança realisou-se em 1340, quando elle
tinha 20 annos. Suspeito que D. Ignez era algum tanto mais nova. De então até i355,
data da tragedia, Moledo seria um retiro quasi permanente, porque nenhum outro offe-
receria maiores condições de tranquillidade e segurança.
Quando Ignez foi morta, tinha D. Pedro 35 annos.
Pois tão longo e tão dedicado idillio conjecturo que viu decorrer em Moledo as
suas melhores horas de felicidade recôndita, envolvido no doce mysterio dos que se bem-
amam e não querem saber do mundo para nada.
Aqui fica reivindicada para a província da Extremadura uma boa parte d'esse fa-
moso drama passional, que tanto commoveu os corações portuguezes, e ainda hoje os
impressiona romanescamente.
A nossa sentimentalidade meridional vai até ao ponto de não ver quanto era facil
de exaltarse a compleição amorosa de D. Pedro I e arrebatado o seu génio.
Ficamo-nos a pensar que o amor a D. Ignez de Castro absorveu doloridamente o
resto da sua vida.
Pois não ha tal. Dois annos depois da morte de Ignez, uma D Thereza Lourenço
deu a D. Pedro um filho, que foi o Mestre de Aviz, e que veio a reinar em Portugal
com o nome de D. João I.
Isto foi depois... Antes, pelo amor de Deus! teve D. Pedro por manceba Beatriz
Dias, que Fernam Lopes menciona de passagem, e, o que foi pêor ainda, deuse a pra-
zeres menos desculpáveis, como faz suppôr o cruel supplicio imposto a Affonso Madei-
ra, seu escudeiro dilecto, a quem o príncipe muito amou, escreve o velho chronista,
mais do que se deve df{er.
Antes ou depois, creio que depois, foi pai de uma bastarda, que no seu testamento
diz ter sido creada no mosteiro de Santa Clara de Coimbra, e cuja mãe se ignora.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Nós temos natural tendência para a sensiblerie amorosa, e por isso acceitamos de
bom grado todas as lendas de amor, de que a historia portugueza anda inçada.
Se lhe tirarmos essas lendas, a nossa historia fica para nós sem poesia.
Por isso eu, que me conheço e que nos conheço, gastei tanto tempo a falar de Ignez
de Castro; e foi com o maior interesse que procurei colligir todas as informações pos-
síveis a respeito das tradições galantes de Moledo.
Eu não sou peor nem melhor que os outros portuguezes.
Ora pois. Confesse o leitor que estava longe de suppôr que no concelho da Louri-
nhã se lhe depararia um logar onde D. Pedro emboscou a sua ardente paixão por Ignez
e segredou ternas palavras incendidas.
Escrevi segredou, e comtudo deveria dizer — gaguejou - porque D. Pedro, segundo
informa Fernam Lopes, era muito gago.
Mais uma dcsillusão, ó românticas patrícias minhas.
E ponho aqui ponto para não aguar mais a lenda. Prometti ; quero cumprir.
Moledo fica a 7,7 kilometros da villa da Lourinhã, a 7 da estação do Bombarral, e
tem uma escola.
IV
Torres Vedras
A VILLA E OS SEUS ARREDORES
M 1888 passei pela primeira vez em Torres Vedras a caminhio do
Varatojo, que precisava visitar por causa do estudo biographico
de Frei António das Chagas. *
Vi então a villa n'um relance, e consignei n'iima chronica de
viagem esta succinta impressão: «Boas casas, grandes adegas,
homens rolando pelas ruas cascos de pipa. Uma praça com coreto:
o rocio elegante. Um magnifico chafariz gothico, denominado dos
Canos. Uma ig;reja com uma bella porta de lavores. Sobre o outeiro, as ruinas do famoso
castello. O Passeio da Várzea com o seu sombrio arvoredo de choupos e faias». ^
Mal diria eu, n'esse tempo, que ainda teria de escrever mais de espaço sobre a villa
de Torres Vedras; que eu, homem do norte, havia de coordenar a monographia da pro-
víncia da Extremadura, longa tarefa que nenhum homem do sul tentara ainda. ^
Mas pois que assim é, sirvam-me aquellas poucas linhas de 1888 como ponto de
partida n'uma visita menos precipitada a Torres Vedras.
A praça que tem o coreto é o Largo de D. Carlos.
O magnifico chafariz dos Canos constitue, em verdade, um notável exemplar de
estilo gothico. Consta de um pavilhão pentagonal, da fonte propriamente dita e de dois
tanques, sendo o inferior manifestamente mais moderno que o resto da construcção, at-
tribuida á iniciativa da infanta D. Maria, filha d'el-rei D. Manuel, o que não é ponto as-
sente.
' Vida mundana de um frade virtuoso.
2 Chronicas de viagetn, pag. 112.
' Pelo que respeita parcialmente a Torres Vedras, quero lembrar que um poeta nosso contemporâ-
neo cantou esta villa : o sr. Ramos Coelho no seu livro Lampejos (1896).
56 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Um aqueducto, desenrolando-se na extensão de três kilometros, abastece este cha-
fariz monumental.
Uma igreja com bella porta de lavores é a de S. Pedro, antiquíssima, de três na-
ves, tecto de madeira.
A porta, voltada ao occidente, estilo gothico, tem figuras e ramagens muito inte-
ressantes.
Suppõe-se que a mandou fazer, a julgar pelo brazáo que a encima, D. Catharina,
mulher de D. João III.
S. Pedro era uma das quatro antigas freguezias da villa : hoje está-lhe annexada a
de Santiago, sendo a sede da parochia em S. Pedro.
Santa Maria, a matriz, ficava outr'ora dentro da primeira cerca de muralhas do
castello, d'onde o sobrenome que sempre tem conservado. Foi-lhe reunida a freguezia
de S. Miguel.
As igrejas de S. Pedro e Santiago estão edificadas no coração da villa.
População das duas freguezias actuaes : S. Pedro, 3.833 habitantes; Santa Maria,
3.o56.
Alem das igrejas parochiaes e de algumas ermidas, conta mais a villa de Torres
Vedras a igreja da Graça, em poder da irmandade do Senhor dos Passos, achando-se
hoje estabelecidas no antigo convento as repartições publicas; e a da Misericórdia, com
o hospital contíguo.
A irmandade dos Passos costuma realisar apparatosamente a respectiva procissão.
A imagem do Senhor sai na véspera á noite, em camarim fechado, do templo da
Graça para a igreja de S. Pedro, a fim de no dia seguinte se organisar o préstito reli-
gioso.
N'esta procissão é a corporação dos bombeiros voluntários torreenses que faz a
guarda de honra.
A misericórdia de Torres Vedras foi instituida em 1320; o seu actual compro-
misso é de 1877.
A receita annual d'esta santa casa eleva-se a 4:700^000 réis. •
Sobre o outeiro as ruínas do castello.
Apenas existe a cerca exterior, com uma única porta, e algum vestígio do antigo
palácio dos alcaides-móres.
Tanto a ruína do castello como a do palácio foram causadas pelo terremoto de 17S5.
Não é hoje possível esquadrinhar a certidão de idade do castello.
Os romanos já encontraram povoação, e decerto a fortificaram de novo. Os godos
denominaram-n'a — Torres Velhas — certamente por a acharem bem defendida com
muralhas e torres.
Toda a villa estava amuralhada e ao correr da cerca tinha três portas de que ape-
nas se conservam os nomes.
Affonso Henriques tomou o castello aos mouros, e provavelmente o mandou restaurar.
O mesmo fizeram na successão dos tempos el-rei D. Fernando e el rei D. Manuel.
Tendo pertencido o senhorio de Torres Vedras á Casa das Rainhas, a começar em
D. Beatriz de Gusmão, segunda mulher de D. Affonso III, e tendo sido sempre esta
villa muito visitada pelos nossos antigos reis, devia haver aqui paços reaes, e sim os
houve.
Mas, os paços velhos, onde solemnemente foram recebidos alguns embaixadores,
ficavam perto do castello, no bairro chamado de Carcavellos.
' Costa GooJolphim, As Misericórdias, pag. 25o.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
5?
Outros, os 710V0S, no logar que depois foi destinado a açougue.
Tudo isto o tempo levou.
Mas ficou a memoria de haver Torres Vedras sido uma villa fidalga, com palácios
de reis e magnates, e ruas, postoque estreitas e tortuosas, ornadas de prédios com bra-
zões de armas e até com nomes aristocraticamente medievaes — como por exemplo a
Rua dos cavalleiros da espora dourada.
No principio do século xix a guerra contra os francezes damnificou muito a villa.
Foram cortadas as madeiras do bello arvoredo que ensombrava as estradas e o
Passeio do Jardim, junto do qual corre o rio Sizandro, pelo que houve de replantar-se
este Passeio em 1821.
E já agora direi que o outro passeio da villa é o da Várzea, a que me referi em
266 — Um aspeclo da villa
1888, sendo para notar que Torres Vedras possua em duplicado uma regalia que falta
absolutamente em muitas outras povoações.
Do passado d'esta antiga e nobre villa apenas falam hoje os monumentos, algumas
quintas, e as paginas da historia.
O presente absorveu o passado Ceei tttera cela.
Torres Vedras modernisou-se, comprehendeu a vida pratica do nosso tempo, fez-se
um importante centro vinhateiro, e se já não rodam pelas suas ruas os coches dos Pe-
restrellos, dos AlarcÓes, dos Telles da Silva, ouve se rolar cascos de pipa, trabalhar o
tanoeiro, apregoar o vendilhão.
A linha férrea de oeste contribuiu poderosamente para esta vitalidade económica.
Uma estação serve a villa, á qual está ligada pela nova Avenida Ignacio Casal Ri-
beiro, onde, desembarcando, se encontra logo á mão o Hotel Avenida, cuja diária é de
800 a lífooo réis, sendo gratuito o transporte dos hospedes para as thernrias dos Cu-
cos.
Outros nomes vieram modernisar a designação das ruas, a saber: Serpa Pinto,
Mousinho d' Albuquerque (antiga Corredora), Djas A^eiVa (proprietário do estabelecimento
dos Cucos), Sa}itos Bernardes (proprietário da Fonte Nova), Paiva de Atidrada, etc.
Se das ruas passarmos para outras innovaçõcs progressivas, temos muito que re-
gistar.
i8 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O espirito humanitário do nosso tempo, desenvolvido tanto pela iniciativa individual
como pelo impulso de collectividades, tem lançado em Torres Vedras solidas raizes.
Mencionaremos em primeiro logar o Asylo de S. José, para inválidos do concelho,
benemeritamente fundado por uma torreense, D. Maria da Conceição Barreto Bastos,
fallecida em 21 de maio de 1901.
Este Asylo está situado a um kilometro da villa, em local pittoresco e sadio.
Santo António dos Pobres é outra instituição de beneficência, creada ha meia dú-
zia de annos, sem rendimento próprio, mas amparada pelas esmolas dos devotos d'aquelle
santo.
E' dirigida por uma commissão de irmãos da Ordem Terceira do Varatojo.
Tem por fim soccorrer a pobreza não só da villa como das freguezias limitrophes.
Alem de outros donativos, distribue aos indigentes, todos os mezes, 900 pães de kilo.
Ha também em Torres uma associação de soccorros mútuos, denominada 24 de
)ulho de 1884.
O principio associativo, tão útil no que respeita á assistência publica, não o é por
certo menos no tocante á defesa dos interesses locaes, especialmente agrícolas.
Sob este ponto de vista fundou se no concelho uma cooperativa com o titulo de —
Liga agrícola da região de Torres Vedras.
Também o principio associativo aqui tem produzido bons resultados debaixo ainda
de outro aspecto — o do recreio indispensável como distracção ás preoccupações da
vida quotidiana.
D'esta necessidade resultaram, na corrente do progresso moderno, o Casino de Tor-
res Vedras, o Grémio Artístico Commercial, a sociedade anonyma empresaria do thea-
tro, a Philarmonica Torreense e a Fanfarra União Torreense.
No attinente a instrucção, devemos mencionar as escolds officiaes de instrucção
primaria, e a de fomento agricola ; escolas e collegios particulares, incluindo o convento
do Varatojo e o do Barro.
Actualmente publicam-se no concelho dois periódicos : A Vinha de Torres Vedras,
que é o mais antigo, pois começou em i883; e a Folha de Torres Vedras, que appa-
receu em 1899, teve uma interrupção, e reappareceu em 1902, sendo distinctamente
redigida pelo meu presado amigo e antigo discípulo Silvério Botelho de Sequeira — até
outubro de igoS — continuando desde essa época sob outra direcção.
Tem havido mais : Jornal de Torres Vedras (i885); A Semana (i88ò); Vo^ de Tor-
res Vedras (1887); Gaveta de Torres Vedras (1893). Todos estes deixaram de existir.
Ha na villa agencias bancarias, de seguros de incêndios e animaes, de encommen-
das para Lisboa, de publicações e annuncios e de seguros de vida.
O commercio, em todos os ramos da sua actividade, tem aqui uma importante
laboração.
Alem do trafico permanente nos estabelecimentos da villa, fazem se três grandes
feiras: de S. Vicente, a 22 de janeiro (gado suino) ; a de S. Pedro, a 29 de )unho-, ea
Feira Nova no 'ò.° domingo de agosto.
F^unccionam uma fabrica de moagens, propriedade de Joaquim Pedro Marques, e
três caldeiras de distillação.
Ha uma photographia, uma typographia e papelaria, três lojas de ourives e três
de confeiteiro, uma vaccaria, varias casas de hospedes alem dos hotéis da Avenida e
dos Cucos, etc.
— Então, perguntará talvez o leitor, não nos diz mais nada da historia antiga de
Torres Vedras ?
E eu apresso-me a responder :
— Ah ! leitor amigo, a historia antiga está dita c redita por outros ; o que eu prin-
A EXTREMADURA PORTUGUEZA Sg
cipalmente desejo é dar a impressão da vida moderna nas localidades de que falo. Quer
que lhe venha dizer ainda que D. Affonso III deu foral a Torres Vedras, e que D. Ma-
nuel o reformou em i5io? Que o infante D Pedro, durante a sua regência, aqui reuniu
cortes em 144 1 ? O que importa isso a quem vem hoje ou quer vir a esta villa? a quem
pelo menos pretende fazer alguma idea do que é actualmente esta povoação? Leitor pio
e não pio, resigne se : de historia antiga apenas os traços precisos para ligar o presente
ao passado, e n'um ou noutro ponto uma correcção a fazer, uma falsidade a corrigir.
— Mas a historia moderna de Torres Vedras — replicará o leitor com certa impor-
tância académica — acho eu que não começou no dia em que o sr. veio a esta villa pela
primeira vez.
— A minha modéstia não permitte sui)pôr tanto. . .
— Pois bem, n'esse caso, retroceda pelo menos ao principio do século xix, fale-nos
das famosas linhas de Torres no tempo da terceira invasão franceza, e depois não
esqueça os episódios militares das luctas constitucionaes.
— Tem V. Ex.* razão, pois que se trata de historia moderna. Vamos a isso sem
propósito de maçar, e até, para lhe ser agradável, falarei da Batalhóa de 1868.
— O que é isso de Batalliôa ?
— Logo verá. Comecemos pelas linhas de Torres.
Estas linhas, construídas para defender Lisboa contra o exercito francez comman-
dado por Masséna, garantiam também a segurança do exercito inglez, sob as ordens de
Wellington, porque lhe davam communicação com o mar.
A primeira linha começava nas alturas da Alhandra, seguia por traz da Arruda ao
Sobral de Mont'Agraço, cortava pelo monte do Furadouro até á serra da Mugideira e
ia terminar na foz do Sizandro.
A segunda começava no alto do Quintella, nas costas de Alverca, seguia pela Ca-
beça de Montachique para os altos do Gradil e da Murgeira e fechava ao norte da Eri-
ceira, na foz de S. Lourenço.
A terceira, cujo fim era cobrir em caso de necessidade o embarque do exer-
cito inglez, defendia Oeiras e Paço d'Arcos.
As duas primeiras linhas comprehendiam 12G reductos e estavam armadas com 297
peças de artilharia.
Sobre a villa de Torres Vedras havia no monte de S. Vicente, que se contrapõe ao
do Castello, um forte que tomou aquelle nome e constava de três reductos communi-
cando entre si por pontes levadiças, mas separadas por fossos profundos.
Em ambas as linhas os abalizes ou trincheiras tinham sido formados por enormes
carvalhos e castanheiros arrancados da terra com as próprias raizes por um esforço
verdadeiramente hercúleo.
«Entrelaçados uns nos outros, pareciam obra de gigantes ou de povos primitivos,
e não havia recursos humanos capazes de removel-os em tempo apertado. Estas pali-
çadas de troncos e ramarias, como se não fossem obstáculo insuperável, eram ainda
precedidos, de distancia a distancia, por obras de cintura, que lhes augmentavam as
condições nituraes de defeza, de modo raras vezes visto. Os picos denteados dos mon-
tes, na extensão de mais de uma légua, tinham sido ligados intimamente por uma grande
obra de terra, que em alguns pontos formava muralha de grande altura, no interior da
qual corria em toda a extensão a respectiva banqueis, para o fogo de fuzilariaj. •
Masséna ficou assombrado deante d'esta defesa colossal, que lhe tomou o passo.
Os sessenta mil francezes que trouxera até Torres Vedras não chegavam para
' Fernandes Costa, Memorias de um ajudante de campo, tomo I, pag. 354.
6o
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
forçar a passagem. Esperava o reforço de Soult, e Soult não apparecia. Pedia um exer-
cito supplementar a Napoleão, e não o recebia, porque o imperador precisava reunir
forças na Allemanha. Quiz atravessar o Tejo, posto que com o perigo de dividir o
exercito, ntias os barqueiros da Chamusca queimaram os barcos para lhe não dar passagem.
Finalmente, Masséna teve de desanimar e retroceder.
Comtudo não succederia assim se o marechal Soult houvesse invadido o Alemtejo,
como Napoleão lhe recommendára, e viesse atacar Lisboa pelo lado do sul.
Mas succedsu. por felicidade nossa, que tivemos a gloria de vêr esbarrar as orgu-
lhosas águias napoleónicas, já vexadas no Bussaco, de encontro ás formidáveis linhas
de Torres, quebrando contra ellas o impulso das azas e do orgulho.
D'aqui o exercito francez retirara pela Extremadura para a Beira, e da Beira para
ar^odeD. Cario
Hespanha, sempre com a mesma infelicidade no resultado, mas com alguns actos bri-
lhantes de valor, como o do general Brenier em Almeida.
Todavia o paiz ficava devastado e empobrecido, e a provincia da Extremadura era
das regiões mais prejudicadas pela terceira invasão franceza.
Vamos agora, também de passagem, aos episódios militares dos conflictos consti-
tucionaes.
Nas «luctas caseiras» que se seguiram á «revolução de setembro» e se prolongaram
por quinze annos, Torres Vedras teve um papel importante como theatro da acção.
Foi aqui que, em iSSy, por occasião da ^revolta dos marechaes», Saldanha e Ter-
ceira, com Mousinho de Albuquerque, formaram uma regência provisória, a qual a sorte
das armas mallogrou depois.
Foi aqui que, em 1846, a 22 de dezembro, se feriu uma notável batalha entre Sal-
danha, mantenedor do golpe de estado tramado no Paço, em «D de outubro», e o conde
do Bomfim, interprete da agitação revolucionaria que desde a «Maria da Fonte» lavrava
no paiz e que, tendo partido do povo, não excluiu a acção politica de setembristas e
miguelistas.
O conde do Bomfim havia-se entrincheirado em Torres Vedras, certamente o ponto
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
mais forte das famosas linhas, verdadeiramente inexpugnáveis, como acabamos de vêr.
Pois, não obstante, Saldanha, com uma audácia e bravura brilhantissimas, mal
empregadas n'uma guerra fratricida, tomou os fortes e as pontes e conseguiu levar a sua
artilharia até ás portas do castello, o que obrigou o conde do Bomfim a render-se,
ficando prisioneira quasi toda a sua divisão, mas sendo-lhe reconhecidas pelo vencedor
as honras da guerra.
N'esse mesmo dia, o duque de Saldanha dizia em carta a sua mulher: «Não recebas
parabéns, dá graças a Deus, porque taes feitos, como os de hoje, são superiores ás
forças dos homens, só a mão do Omnipotente os pôde executar.» •
As perdas, entre mortos, feridos e prisioneiros, foram grandes de parte a parte:
Saldanha perdeu 386 homens e 47 cavallos ; Bomfim, 25o cavallos e 600 prisioneiros.
268 — Chafariz dos Canos
«Este desastre — dizia dias depois Manuel Passos— não abala a coragem dos defen-
sores da liberdade».
Entre nós a liberdade custou sanguinolentos embates, pois que uns a queriam
de mais e outros de menos ; e depois que finalmente nos contentamos cora a que
tínhamos, começamos a estragal-a.
Não temos feito outra coisa.
— E agora, leitor amigo, o caso da Balalhóa.
— O que vem então a ser isso ?
— Uma revolta popular que rebentou em Torres Vedras a 9 de fevereiro de 1868.
Foi iniciada pelo povo das aldeãs, que, na manhã d'aquelle dia, se dirigiu em tropel
para a villa, onde queimou todos os papeis da repartição de fazenda como protesto
contra o excesso das contribuições e a severidade dos respectivos funccionarios.
— Uma verdadeira bernarda ?
' D. António da Costa, historia do marechal Saldanha, pag. 5i i.
62 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
— Batalhôa se lhe fieou chamando. E olhe, leitor amigo, que o incêndio da indigna-
ção popular nem com toda a agua do Sizandro poderia ser apagado.
— Ora o Sizandro! Parece querer dar lhe as honras de um Amazonas!
— O amigo leitor está habituado a vel-o deverão, quando vem aos Cucos. Mas olhe
que o Sizandro no inverno tem algumas vezes cabellinho na venta, inunda a villa, espe-
cialmente a baixa, causando grandes prejuízos. Ainda isso aconteceu em fevereiro de
1904. Foi um diluvio.
— Pois no verão, aqui em Torres Vedras, o maior Sizandro que eu conheço é uma
therma dos Cucos.
— Ria, mas acredite. E já que falou nos Cucos deixe-me dar alguma noticia das
aguas medicinaes de Torres Vedras para esclarecimento de outros leitores que não as
conheçam ainda.
— Fale com os outros, que eu vou almoçar ao meu Hotel da Avenida.
— Falarei.
— Adeus; bom proveito.
A villa de Torres Vedras é hoje muito frequentada no verão pela colónia aguista
dos Cucos, importante estação thermal que dista da villa apenas 2 kilometros para
sueste.
Este estabelecimento hydrotherapico, propriedade do sr. José Gonçalves Dias
Neiva, é servido por uma extensa avenida arborisada, e encosta-se a uma collina ao sul
de um ameno valle, por onde corre o Sizandro.
O mar que fica a pequena distancia impregna a atmosphera de evaporações hygieni.
cas, e dos pinheiraes e dos mattos próximos ao valle vem um aroma acre e saudável que
também robustece os pulmões.
Em frente do estabelecimento e ladeando a avenida, que o communica com a es-
trada de Torres, ha dois elegantes chalets que dão hospedagem áquelles forasteiros que
não preferem ficar na villa.
No parque que se desenha deante do estabelecimento está situado o Casino, com
um theatro annexo; e levanta-se um coreto onde aos domingos vai tocar a fanfarra de
Torres a expensas da empresa.
As aguas thermaes dos Cucos são applicadas ao tratamento de todas as manifesta-
ções de arthritismo.
Quando Ramalho Ortigão escrevia em 1876 o livro Banhos de caldas e aguas
mineraes ainda a estação dos Cucos era pouco concorrida, mas já se preconisavam as
suas virtudes therapeuticas, especialmente na cura da gota.
«Ao dr. Brandt, distincto medico, meu amigo, actualmente estabelecido no Porto
— diz aquelle escriptor — ouvi fazer d'estas aguas o maior elogio. Mistress Brandt, pa-
decendo as mais horríveis dores de cabeça e tendo consultado os mais illustres médicos
da Europa, curou se com poucos banhos da Fonte dos Cucos, reconhecendo-se que era
a gota a causa do seu atroz softrimento» .
Ainda então os banhos eram ministrados debaixo de barracas de madeira, em tinas
também de madeira.
Tudo isto impressionou mal Ramalho, que condemnou o logar como impróprio para
um estabelecimento de banhos, postoque aprazível.
O decurso de 3o annos abalou fundamentalmente este conceito pessimista do illus-
tre escriptor.
Os Cucos são hoje uma estação thermal transformada elegantemente á moderna,
e a doçura do clima e o «aprazível» do logar, bem como a eftícacia therapeutica das
aguas que deram saúde a mistress Brandt, não esparavam senão por uma civilisada
moldura, pelo apparato e conforto balnear que obtiveram finalmente.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA 63
Por isso, se o leitor foi aconselhado pelo seu medico a fazer uso das aguas dos Cu-
cos — que teem sido minuciosamente estudadas a partir da analyse realisada pelo dr.
Agostinho Vicente Lourenço até aos relatórios do dr. Justino Freire, actual director cli-
nico das thermas -não duvide um momento em fazer a mala e partir, que não terá mo-
tivo para aborrecer-se da temporada, e é provável que volte curado.
Pelo que interessa propriamente ao regime hydrotherapico não faltam condições
de commodidade e asseio no estabelecimento thermal.
Quanto a hospedagem, também não terá razão para queixar-se aqui ou na villa.
No que respeita a distracções, musica aos domingos, casino sempre e ás vezes thea-
tro não são regalos que enjoem a ninguém.
Passeios tel-qs-ha muitos e interessantes, ao Varatojo, ao Barro, a Pena Firme, a
Runa, ás bellas quintas ou povoações do concelho e ás praias do litoral.
Ainda ha outra distracção que os aguistas dos Cucos cultivam com frequência : vêr
passar os comboios das Caldas e da Figueira na estação de Torres.
Sempre se avista alguma cara conhecida.
Uma vez surprehendi este dialogo :
—Ah!
-Oh!
— Vai p'r'a Figueira ?
— Não. Vou p'r'as Caldas. E o meu amigo está nos Cucos ?
— Estou.
— Gosta?
— Gosto muito.
—Está só?
— Não; estou com minha mulher e meu primo.
A sineta deu o signal de partida.
Um dos interlocutores sorriu se e cumprimentou: era o viajante em transito para
as Caldas; o outro, aguista dos Cucos, lá voltou muito contente para cocar saúde na re-
gião dos supraditos Cucos — que só teem de mau o nome, algum tanto compromettedor.
O estabelecimento dos Cucos costuma abrir no i." de junho.
Também junto a Torres Vedras ha outras aguas medicinaes, chamadas da Fonte
Nova.
E' seu proprietário o sr. António dos Santos Bernardes, e o estabelecimento hydro-
logico foi inaugurado a 24 de maio de iSgS.
Estas aguas, sobre as quaes elaborou um consciencioso relatório o sr. dr. Reis
Santos, são indicadas para affecções gástricas, especialmente estados dyspepticos.
No momento em que escrevo, o estabelecimento da Fonte Nova acha se encerrado,
não sei por que motivo.
Referi-me, ha pouco, ao Varatojo, e ao Barro.
São dois conventos — assim diz toda a gente — nas proximidades da villa.
O do Varatojo, distante d'ella apenas um quarto de légua, foi fundado em 1470
por D. Affonso V, n'aquelie momento histórico de sua vida em que viu desvanecer-se-
Ihe o sonho de reinar em Castella ao lado de sua sobrinha— essa misera e Excelleníe
Senhora a quem eu já dediquei um livro •.
Era intento do rei o professar n'esta casa que fundara e povoou com franciscanos
de Alemquer. Não chegou a fazet-o, mas amou sempre o Varatojo, visitou-o amiudadas
vezes— ainda hoje, roída pelo caruncho, se conserva na sacristia a cadeira em que cos-
í Rainha sem reino, Porto, lí
64
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
tumava sentar-se, e também ainda, no angulo externo do coro, se aponta a janella do seu
modesto aposento.
Frei Fernando da Soledade, na Historia Seraphica, diz que o nome do logar— hu-
milde povoado — e do convento - não menos humilde cenóbio— veio do uma vara do la-
gar feita de um pé de tojo.
Isto, que se crê pouco, não importa muito.
Nascido de uma desillusão, o convento do Varatojo foi sempre ura silencioso e pa-
cifico tumulo de illusÕes mundiaes.
Aqui, durante alguns dias, vieram esconder a sua dòr el-rei D. João II e a rainha
D. Leonor de Lencastre em seguida á trágica morte de seu filho na ribeira de Santarém.
Aqui, em 1680, instituiu a congregação dos missionários apostólicos, precedendo
bulia pontificia e consentimento da Ordem franciscana, aquelle mancebo frivolo, que no
século teve a alcunha de Capitão Bonina,
e na religião o nome de Frei António das
Chagas, varão exemplarmente virtuoso de-
pois de arrependido e convertido.
Em 1888, quando atravessei rapida-
mente a villa de Torres Vedras, corri a
visitar o Varatojo, que era o objecto d'essa
minha viagem.
E colhi um feixe de impressões, que
tenho ainda muito vivas, e vou reproduzir
ao leitor.
Apeámo-nos no principio da encosta,
porque não havia caminho para trem.
E, subindo, chegamos ao largo do
convento, edificio de mesquinha apparen-
cia, enterrado ao fundo de alguns lanços
de escada.
Uma cruz de pedra e um velho cy-
preste dão ao sitio essa ph}'sionomia de tristeza que caracterisa os eremitérios pobres.
Descemos os poucos degraus que dão ingresso para o convento, e entramos no átrio.
A' esquerda, uma capella com o Senhor dos Passos. Em frente, o postigo da roda,
em cujo bordo havia três escudellas vasias com colheres de pau; sobre o postigo esta
legenda: De paupertate nostra frangamus Jesti esurienti panem. A' direita, uma porta
em ogiva com esta simples palavra no topo : Silencio.
Pedimos licença para entrar, e foinos concedida. Recebeu nos o sacristão em ha-
bito de franciscano. Mostrounos a igreja, em cujo altar-mór ha a notar a obra de ta-
lha, o retábulo, os quadros, os azulejos. No corpo da igreja torna-se digno de menção
o altar de mármore, excellentemente trabalhadD, de uma capella lateral. E' obra recen-
te, executada por um conventual.
Como houvéssemos mandado entregar uma carta de apresentação, veio acompa-
nhar-nos um padre franciscano, de habito com capuz, cordão, rosário, e sandálias.
Boa physionomia, alegre e rosada. Falava sem biocos. Quando nos tornou a mos-
trar o altar de mármore, disse para mim :
— Isto é obra feita no convento. Cá trabaihí-se.
P^oi depois mostrar nos o presépio, e chamou a nossa attenção para a figura que re-
presentava um cego tocador de gaita de folies, com borracha de vinho a tiracoUo, fa-
zendo notar a circumstancia de que o moço do cego estava bebendo subrepticiamente
o vinho da borracha.
ento do Ií;irro
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
65
Levou-nos depois á casa dos retratos, onde eu precisava vêr um, e á casa do capi-
tulo, onde copiei a inscripção de unna sepultura.
Oífereceu-nos na casa dos retratos vinho doce, e bolos. Quizemos deixar uma es-
mola para o convento : recusou-a. Perguntamos-lhe se vendiam bentinhos, porque os de-
sejávamos adquirir como recordação. Soniu-se.
— Que os bentinhos que tinham, eram os que pessoas de fora davam aos frades.
Na cerca oífereceu-nos flores, e conduziu-nos até á entrada da matta.
De caminho respondia com boa sombra ás perguntas que lhe faziamos.
Disse-nos que havia uma escola para o sexo masculino annexa ao convento, mas
com entrada independente. *
Disse nos mais que n'essa época eram uns vinte os frades, e que o resto do pessoal
2/0 — Chalets e avepida dos Cucos
orçava por^quinze homens; que no convento não entravam mulheres, mas que na po-
voação havia um recolhimento de irmãs hospitaleiras de S. José com escola para meni-
nas. Acrescentou que viviam pobremente, mas que do seu pouco repartiam com os po-
bres. Mostrou-nos a sacristia, em cujos azulejos, que revestem as paredes, se lêem dísti-
cos metrificados em castelhano. Por exemplo :
Mi coraçon como cera
Se derrite en dulce ardor
Con tu fuego, ay Dios d'Amor,
Si hasta aqui de marmol era.
Estes dísticos devem ser composição de Frei António das Chagas, que versejou gon-
goricamente em portuguez, e que no século xvu reformou o instituto do Varatojo,
depois de ter vivido uma vida galante de militar aventuroso. -
' Em novembro de 1907 foi inaugurada no logar do Varatojo uma escola primaria, edificada por
subscripçio publica.
E' a melhor de todo o concelho de Torres Vedras.
Tem o edifício 10 amplas janellas.
A sala mede 17 metros de comprimento, 9 de largura, e 4,S de altura.
2 Vtdci mundana de um frade virt.iOso, Lisboa, 1890.
VOL. II 9
66 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
N'aquella simples quadra, que de industria preferimos, está todo o drama da con-
versão de Frei António das Chagas.
Na igreja, no claustro e na cerca encontramos alguns camponezes, uns imberbes,
outros velhos, orando como em extasi ou lendo livros mysticos. Um d'esses livros, cujo.
titulo pudemos ler, denominava-se— Dei^oçiío das Chagas de Chnsto.
E ao cabo de uma visita de hora e meia, saímos do cor; vento do Varatojo com a
mesma impressão que poderíamos trazer ha duzentos annos.
Parecia que o tempo se havia imm.obilisado no passado !. . .
Aqui tem o leitor, substancialmente, o que é o convento do Varatojo.
Reuniu se n"elle um grupo de homens que rezam e trabalham, que ensinam a ler
as creanças, que missionam pelas províncias, que nada pedem, e apenas acceitam para
seu sustento as esmolas que lhes mandam de longe ou de perto; que, n'uma palavra,
fizeram da Vé o ideal da sua vida, obscura mas não mysteriosa, porque de par em par
abrem a porta da sua casa a quem deseja observal-a.
Ora a fé em Deus é a única virtude verdadeiramente respeitável na terra; que a fé
nos homens chega ás vezes a ser uma tonteria de espíritos crédulos.
A Historia da fundação do real contento e seminário de Varatojo foi escripta por
Frei Manuel de Maria Santíssima, e publicada no Porto em dois volumes, 1799- 1800.
Na igreja fazem-se todos os annos duas festas, que são muito concorridas : a Santo
António e S. Francisco d'Assis.
O convento do Barro, a 2 kilometros de Torres Vedras para o sul, é hoje a prin-
cipal casa da ordem dos jesuítas em Portugal.
Foi fundada em 1670 pela infanta D. Maria, filha de el-rei D. Manuel, e pertenceu
aos frades arrabidos.
Em i833, como todos os outros conventos masculinos, foi vendido em praça.
O arrematante conservou-o em seu poder até iSd/, anno em que o ultimo marquez
de Vallada lh'o comprou.
Pouco depois a propriedade do convento, da igreja e da matta foi adquirida pelo
padre Carlos Rademaker, para uso dos )esuitas, os quaes transformaram o edifício e
n'elle estabeleceram um collegio semelhante ao de Campolide.
A entrada no estabelecimento é publica.
Aulas, camaratas, refeitório, casa de banho, enferm.aria, tudo revela meticuloso as-
seio e cuidado.
O ensino é ministrado com aquella segurança e competência que caracterisa todos
os collegios de jesuítas.
O Barro contrasta, em sua abastança, com a simplicidade frugal do Varatojo.
Eu gosto mais do Varatojo por isso.
Mas reconheço que não ha melhor professor do que o jesuíta.
E agora deitem me fogo se quizerem. Eu deixar-me-hei arder, que estou disposto
para tudo.
Na igreja do Barro venera-se uma preciosa imagem de Nossa Senhora dos Anjos,
a que se faz uma festa com arraial.
O convento da Pena Firme, a 8 kilometros da villa, sobre a costa do oceano, foi fun-
dado em 1226, e era de frades agostinhos calçados.
D'este edifício, que pertence ao sr. Francisco Avelino Nunes de Carvalho, restam
apenas as paredes.
Mas na igreja, ainda coberta, exerce se o culto em determinadas occasiões.
Agora, leitor amigo, para acabar de contenial-o com algumas tinturas de historia
local, deixe-me dizer-lhe ainda qualquer coisa da exiincia grandeza heráldica de Torres.
Sir Arthur Wcllesley, o famoso general em chefe dos exércitos alliados na guerra
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
67
peninsular, foi agraciado pelo governo portuguez com o titulo de marque? de Torres
Vedras, por decreto de 17 de dezembro de 181 1, sendo já conde do Vimeiro desde
maio d'esse anno.
No tempo dos Filippes houve o titulo de conde de Torres Vedras, que parece ter
sido creado logo no principio d'aquelle governo, em favor de descendentes de um fi-
dalgo hespanhol que viera para Portugal em i5oo com sua mãe, camareira da rainha
D. Maria, segunda mulher de elrei D. Manuel.
Chamava-se elle D. João de Alarcão e casou com uma neta de Ruy Gomes Alva-
renga, que passa por ser o primeiro alcaide-mór de Torres Vedras.
271 — Copa do estabeiecinienlo Ihermal dos Cucos
Pelo seu casamento, veio D. João de Alarcão a ficar investido nos bens da casa da
mulher e na alcaidaria que andava na familia d'ella.
Foi elle que mandou edificar o palácio do Castello, onde passou a residir, largando
então a casa do Patim, na baixa da villa, que era do sogro.
Um dos seus descendentes, D. Martim Soares de Alarcão e Mello, 6." alcaide-mór
de Torres Vedras, duas vezes resistiu ao Prior do Crato D. António, que da primeira
lhe confiscou os bens, e deu o titulo de conde de Torres Vedras ao seu valido Manuel
da Silva Coutinho, o qual morreu degolado em Angra do Heroísmo.
Da segunda vez, que foi quando D. António voltou com a armada ingleza, oppoz-
Ihe o alcaide-mór tão forte resistência, que o infeliz pretendente nunca mais tornou a
dizer — Torres Vedras, mas sim Torres Traidoras.
D. Martim teve um neto que se chamou D. João Soares de Alarcão como o pai, e
que depois da Restauração acolheu-se a Castella, onde continuou o titulo de conde de
Torres Vedras e recebeu o de marquez do Turcifal.
Diz Madeira Torres na sua monographia que este foi o «primeiro e ultimo marquez
de Turcifal»; mas pela Historia Genealógica (tomo IX, pag. 328) vê-se que uma sua fi-
lha, D. Marianna de Alarcão e Noronha, continuou o marquezado, e que os dois titulos
seguiram na linha dos Alarcões já então entroncados com os Velascos.
68 EMPRE2A DA HISTORIA DE PORTUGAL
Os bens dos AlarcÕes em Torres Vedras e a alcaidaria-mór foram doados, depois
de 1640, á família dos Gamaras Coutinhos, condes da Taipa.
— Agora, diz-me o leitor, acho que já tem cumprido o seu dever.
— Pois agora, replico eu, não hei de deixar de lembrar-lhe, para minha vingança e
seu castigo, aquella referencia de Camões :
Já lhe obedece toda a Estremadura,
ObiJos, Alemquer, por onde sôa
O tora das frescas aguas entre as pedras
Que murmurando lava, e Torres Vedras.
Com esta sonora pitada de Lusíadas deve V. Ex.* ficar satisfeitíssimo, e eu também.
II
O CONCELHO
Torres Vedras é o centro de uma das mais importantes e productivas regiões vi-
nhateiras da província da Extremadura.
A natureza e accidentes do solo contribuem para a variedade dos typos, mas dis-
crimínam-se especialmente três :
Typo fraco, originário dos terrenos sêccos e arenosos.
Typo bastão, procedente dos varzidos.
Typo fino ou superior, que se cria nas collinas, e alguns entendedores comparam ao
vinho generoso do Douro.
Os vinhos de Torres que no commercio gosam de maior credito são os de Dois
Portos, Caxaria, Garmões, Ordasqueira, Matacães e Calvel.
Nas tabernas de Lisboa o torreano em geral — mais ou menos puro— é muito pro-
curado pelos piteireiros de profissão.
António Augusto de Aguiar, nas suas Conferencias, disse em 1876a respeito dos pro-
cessos de vinificação na região de Torres :
«A proximidade do oceano, o relevo do solo, bastante montanhoso, influem no cli-
ma, difficultando, em alguns pontos, a maliíração da uva, se não na realidade, para que
ella possa produzir vinho de pasto, como eu imagino e desejo que façam, pelo menos
na apparencia, por isso que é um pouco difficil chegar á maturidade forçada, que se
exige para vinhos de lotação.
«E d'aqui resulta, que a despeito do excellente terreno de vinha e da sua regular
e por vezes abundante producção, os vinhateiros, querendo aproximar-se das percenta-
gens saccharinas mais elevadas, e sobretudo das cores mais intensas, puxam pelas ore-
lhas á maturação, por meio de diversos artifícios».
Vinte e quatro annos depois, em igoo, dois professores do Instituto Agronómico de
Lisboa escreveram no Porlugal au point de vue apricole:
«A mais notável região pela quantidade de vinhos que produz c incontestavelmente
Torres Vedras. Ahi se colhem vinhos de valor intrínseco um pouco variável, mas na
maior parte bem equilibrados, e com larga acceitação tanto no mercado nacional como
nos extrangciros. Os vinhos afamados de Turcifal, de Calvel, de Runa, de Dois Portos,
bem como os de Enxaras, de Matacães, e da Ribaldeira caracterisam na generalidade
um typo mais ou menos uniforme, a que se dá o nome commum de vinho de Torres e
que tem um largo consumo em Lisboa.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
h
«N'outro tempo, anteriormente á invasão da phylloxera, a região vinicola de Tor-
res Vedras era a mais importante de todo paiz quanto á producção de vinhos de mesa
— vinhos tintos principalmente — e era com o stock de vinhos d'esta categoria que se
abasteciam os principaes mercados do sul.
«Hoje, a zona de Torres Vedras, postoque reconstituída, não chegou ainda a estado
de fornecer a quantidade de vinhos que produzia antes de i883i>.
Todavia, em 1904, ouvi calcular em 3o:ooo pipas a producção annual de todo o
concelho.
Estes algarismos demonstram eloquentemente a importância, a riqueza vinicola da
região torreana, aliás também fértil em hor-
taliças e fructas.
Assim, as numerosas quintas do conce-
lho representam um alto valor agrícola, não
só sob o ponto de vista ampelographico,
mas também da pomologia geral.
Vamos enumeral-as, sem comtudo as
distribuirmos pelas suas respectivas fregue-
zias; mais facilmente poderemos d'este modo
formular um rápido inventario.
A quinta do Calvel, que foi do conde
de Farrobo e é hoje do sr. António Agosti-
nho da Silva Henriques, com uma pittores-
ca vivenda e frondosa matta, produz Soo
pipas annualmente.
O professor Ferreira Lapa comparou
este vasto domínio vinicola aos celebres cha-
teaux de Médoc, que illustram a obra de
Franck.
A quinta de Charnixe, do sr. Joaquim
Gomes de Sousa Belford, abrange uma su-
perfície total de i3o hectares, cuja principal
cultura é a vinha.
Possue uma adega de vastas dimensões:
70 metros de comprimento por g de largura.
Teera sido feitas largas replantações com cepas americanas, especialmente Riparias
e Rupestris.
A quinta das Lapas tem todo o caracter de grandeza nobre: entrada monumental,
palácio com larga escadaria e ampla varanda, comquanto o edifício pareça ter ficado incom-
pleto e por isso desharmonico ; jardim com alegretes e bancos revestidos de azulejos ; matta
frondosa, sombreada de arvores colossaes, entre ellas o «sobreiro dos quatro irmãos» —
assim chamado porque o tronco se quadrifurcou, e três medronheiros de dimensões ex-
cepcionalmente gigantescas.
Esta quinta foi dos marquezes de Penalva (Telles da Silva) e é hoje dos condes de
Tarouca, seus herdeiros.
Aqui falleceu, a 27 de outubro de igoS, a ultima marqueza de Penalva.
Dentro da matta nasce uma fonte de aguas férreas.
Quinta da Ermígeira, dos viscondes de Balsemão.
Quinto da Chapoceira, que era da condessa de Camaride.
Quinta da Boa Vista, de José Eduardo César — Quinta de Bolores, de Emydío Ri-
beiro Pereira— Quinta da Certa, de F. Dias Sarreira— Quinta das Covas, de António Au-
272 — Pórtico da igreja de S. Pedro
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
gusto Cabral — Quinta das Fontainhas, de António Rodrigues Moraes e Manuel Fran
cisco Marques — Quinta do Hylarião, de Rufino José Garcia da Silva — Quinta de José
Accursio, de Francisco Avelino Nunes de Carvalho — Quinta de Maria José, do mesmo.
— Quintas do Prior e da Rosa, dos herdeiros de D. Bernardina Fivelim— Quinta da Ri-
gueira, de António Marques da Trindade — Quinta da Gallegueira, de Moura Borges.
— Quinta da Maceira, do dr. Justino Xavier da Silva Freire — Quinta da Piedade, de
D. Maria da Luz Pinto — Quinta das Barreiras, do conde de Bertiandos — Quinta de
Bello Jardim, de Sebastião Trigoso — Quinta do Franco, de António Baptista — Quinta
do Paço, de D. Ricarda Botto Pimentel — Quinta da Gloria, de João Paulo Martins —
Quinta d' Alem, de Francisco Maria Bacellar — Quinta da Almoinha, da Liga Agrícola
Torreana — Quinta do Barreiro, de Manuel Ferreira de Carvalho — Quinta da Carrasca,
de D. Luciana Rodrigues Penalva — Quinta da Charneca, de António Bandeira — Quin-
ta da Conceição, de António Marques dos Santos — Quinta do Hespanhol, de João Pe-
restrello de Vasconcellos — Quinta do Pisão, * do conde de Azambuja — Quinta da
Torre, dos herdeiros de Augusto Potch — Quinta da Matta, dos herdeiros de Mathias
Innocencio da Matta — Quinta do Juncal, - de Sebastião Trigoso — Quinta da Macheia,
de José Gonçalves Dias Neiva — Quinta do Arneiro Velho, de Manuel Correia — Quinta
da Messejana, de Nuno Gorjão — Quintas das Pontes e de Paio Correia, de D. Maria Au-
gusta de Moura Borges — Quinta do Pisão, '•> de Ignacio Lopes Franco — Quinta das
Pederneiras, do dr. Barros e Cunha— Da Granja, de António de Sampaio— Quinta do
Retiro, do mesmo proprietário — Quinta da Ponte, de José Gonçalves Dias
Neiva — Quinto do Ulmeiro, de Francisco Duarte da Silva — Quinta do Alfayate, de
João Anastácio de Carvalho Carneiro — Quinta da Areia, de José Duarte Barreto de
Pina — Quinta de Fez, de Carlos Ahrends — Quinta da Viscondessa, que foi da famí-
lia Bataha Reis e hoje é do Ministério das Obras Publicas — Quinta da Melroeira, da
viuva Vasconcellos — Quinta da Estrella, de Manuel Reis— Quinta da Rocheira, de
José Raul Serrão Barbosa de Araújo — Quinta de Valle de Gallegos, de Francisco Chi-
choro — Quinta do Ulmeiro, de Francisco Alberto Bastos — Quinta de Almiara, de
Francisco dos Santos Bernardes — Quinta do Infesto, dos herdeiros do dr. Luiz Antó-
nio Martins, etc.
Por este interessante inventario, que aliás procuramos tornar o mais succinto possí-
vel, se conhece evidentemente a riqueza agrícola do concelho de Torres Vedras, repar-
tida pelas i8 freguezias de que elle se compõe, e que são as seguintes, alem das 4 que
a villa comprehende :
S. Domingos de Carmões com i.i^6 habitantes. Chamava-se outrora S. Domingos
dos Clamores, e pertenceu ao extincto concelho da Ribaldeira. Compõe se de sete loga-
res. Tem mercado de peixe todos os domingos. Possue duas escolas, para ambos os
sexos.
Nossa Senhora da Luz da Carvoeira, com 1.946 habitantes, tem 9 logares, um dos
quaes é a Panasqueira, muito lembrada no theatro de assumptos saloios.
Deve o nome ao facto de ter minas de carvão na sua área.
Possue uma escola mixta.
Nossa Senhora da Luz dos Cunhados (vulgarmente *A. dos Cunhados») com 2.3o 1
habitantes.
Comprehende 6 logares.
' .Nd lieguezia de Dois Portos.
* A' qua! foi encorporada a antiga quinta do Mosteiro. Vide mais adeante a noticia sobre Matacães
' Na freguczia do Ramalhal.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
Abrange uma faixa de litoral na extensão de 8 kilometros.
Na praia de Porto Novo funcciona uma armação de pesca, valenciana.
Tem escola official para o sexo masculino e uma associação de soccorros mútuos
Monte-pio de Nossa Senhora da Luz.
No logar da Maceira recommendam-se as caldas chamadas da Maceira do Vimeiro,
que são boas para o tratamento de dermatoses.
A principal industria d'esta freguezia consiste na exploração de cantarias e fornos
de cal.
S. Pedro de Dois Portos, com 3.49b habitantes, 12 logares, uma estação de cami-
nho de ferro, e uma escola.
DE TOiES rEDRAS
ií-^
27S — Fac-simile do Jornal de Torres Vedras
Occorre logo perguntar: qual seria o motivo do onomástico Dois Portos? Debalde
consultei a tradição popular.
Ouvi sobre o assumpto o meu velho amigo dr. Marques Barreiros, que é proprietário
n'um dos logares d'esta parochia chamado Caxaria, ' e que me respondeu com a se-
guinte hypothese muito verosímil:
«As minhas propriedades, e grandes terrenos em volta — valle e serranias — estiveram
outr'ora debaixo das aguas do mar: encontramse por aqui muitos mariscos e conchas
encrustados em rochas.
«Dois Portos fica em pequena elevação á beira d'um valle ou ribeira, que outr'ora
foi lago que abrangia toda a ribeira até alem de Runa, onde a fechava um monte que foi
cortado, dando-se evasão ás aguas, e tornando-a cultivável, como aconteceu ao grande
valle de Villa Pouca de Aguiar que certamente conheces.
' O dr. Marques Barreiros falleceu em Lisboa a 9 de maio de 1907. A sua casa da Caxaria compõe-
se de grandes propriedades, que por não serem conjuntas não teem tido o nome de quinta.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
«Nada se sabe sobre isto, senão o que se conhece pela inspecção do local, mas em
relação a Villa Pouca de Aguiar a tradição auxilia a observação.
«Em Dois Portos não ha tradição.
«Convergem dois valles a Dois Portos, o que vem de Runae o que vae na direcção
de Sirol.
«Parece-me que quando aquillo era um lago, Dois Portos era porto dos dois valles,
e d'ahi o nome de Dois Portos.
«Próximo d'ali, mais elevado, fica o logar da Ribaldeira, que pelo nome indica
— Ribas—, ou sitio de velhacaria, oriundo de — ribaldo? —
«Inclino me ao primeiro caso, e a crer que tudo deriva das aguas que ali forma-
ram lago por muitos annos.
«Tudo aquillo proveio de erupção vulcânica, e o foco lá está ainda nos — Cucos —
a dois kilometros de Torres Vedras, onde ha aguas thermaes, petróleo, etc. e grandes
montes vulcânicos, ou procedentes de vulcões.»
Se não foi isto, resta-nos tomar a palavra —jcor/os — no sentido antigo, como sino-
nyma dos dois valles que convergem ao logar, e constituiam portas ou entradas do
monte.
O logar sede da freguezia é uma rua-estrada, onde se alinham casas a um e outro
lado, como succede em tantas outras povoações do sul, e algumas do norte.
Foi essa estrada, que conduz de Lisboa a Torres Vedras e tem a designação de
71 A, a causa de se agrupar aqui um povoado.
O logar da Ribaldeira era antigamente villa e sede do concelho do seu nome, extincto
por decreto de 24 de outubro de i855.
Aqui teve a rainha D. Beatriz de Gusmão, segunda mulher de Affonso III, uma
quinta, que doou á Ordem de Santiago.
O dr. Thomaz de Carvalho, lente da Escola Medica de Lisboa, escriptor e académico,
possuia na Ribaldeira uma casa e quintal, onde costumava passar os mezes de verão.
Por sua morte legou esta propriedade a D. Leonor Climaco de Almeida com a obri-
gação de sustentar uma irmã d'elle testador.
A Ribaldeira fica entre dois Portos e Runa.
Organisou-se ali uma sociedade musical, com o nome de— Philarmonica da Ribaldeira.
E funcciona um forno de cal, pertencente a Daniel da Motta.
O logar da Patameira tornou-se notável pelo seu antigo morgado, que foi instituído
por D. Martim Affonso Pires da Charneca, arcebispo de Braga, o qual falleceu em Lis-
boa no anno 1416.
Era coisa muito para vêr-se outrora todo este domínio senhorial com seus muros
e ameias, matta, fontes, jardins e ermidas.
Um filho do arcebispo, chamado Affonso de Miranda, alcaide-mór de Torres Vedras,
foi o primeiro administrador d'este vinculo.
Os filhos dos prelados só podem consolar-se de não ter mãe authentica quando os
pais os criam. .. para morgados da Patameira.
O logar da P^eliteira é uma linda aldéa que, no dorso da serrania, surge d'entre
pâmpanos cortada pelo rio Sizandro.
Estancia deliciosa para veranear: frescura de arvoredo e agua; ares puros e re-
confortantes; convivência com alguns moradores illustrados e famílias em villegiature ;
passeios a localidades próximas ou que o caminho de ferro aproxima; commodidade de
um apeadeiro que serve a povoação entre as estações de Pêro Negro e Dois Portos.
• Mon. Lus., lomo V, pag. 468,
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
D'antes, quando a viagem era difficil, já para aqui vinham descansar no estio algu-
mas pessoas distinctas, taes como o illustre pintor Francisco Augusto Metrass e Luiz
Augusto Palmerin, o Beranger portuguez.
Agora, graças ao seu apeadeiro, a Feliteira recebe mais avultado numero de vera-
neantes que n'esta paragem passam o tempo desenfadadamente e levam uma boa dose
de saúde quando se retiram saudosos.
Torna-se preciso um hotel, e mais algumas casas para alugar.
A estrada do Sobral á Feliteira, já estudada, deverá ser muito vantajosa para a
povoação, que tem estaçãj postal e vai ter uma escola.
Quem o diria ha trinta annos !
Voz de Torres Vedras
A ivila'-<;í">.:"l"liiiifi- Titf:
trariioelypographiada " "^^
< Voz JetorrebVedras-
sâonariKidaMiscriíui;^ t,. r
.ilia i]." 1. onde se r»'('i> -'(Jr-n'
'firai assimiatiiras. aii- _{'''~
nii!i''los, *; quacs<nier:j '^ "'
ouiraapalilii-ações.
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1.1 nir- '1-. íifH v^
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274 — Fac simile da-Vb; .ie Torres Vedras
Falhou, e foi pena, a tentativa de um club e de uma tuna, mas quem teima, vence,
e a Feliteira parece disposta a teimar patrioticamente.
No Furadouro, outro dos legares da freguezia de Dois Portos, ha pedreiras de excel-
lentes mármores, d'onde se extraiu grande parte dos que foram empregados na consiruc-
cão do Asylo de Runa.
Finalmente, o logar chamado Ribeira de Maria Aâbnso, que em 1894 contava 34
fogos segundo o Di''cionario Postal^ tem a recomm<.ndal-o a sua especialidade de vi-
nnos brancos muito elogiados pelo professor Aguiar em 1876.
O mesmo professor lastimou que a falta de mercado para estes vinhos induzisse os
proprietários dos terrenos, em que elles se criavam, a substituir as uvas brancas pelas
castas tintas.
Ha aqui uma capella de Nos-^a Senhora dos Anjos, que possue alguns quadros es-
timáveis, e pertence a D. Uelphina Ramalho.
Faz-se o Mez de Maria e uma festa em agosto, n'este templosinho.
VOL. II 'O
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A freguezia de S. Lucas da Freiria ou Freiria dos Chapéus, com i.6g3 habitantes,
está situada sobre uma pequena ribeira que vai confluir com a do Gradil
Comprehende ao todo 9 logares e tem uma escola mixta.
Da freguezia de Matacaes, com i.SgS habitantes, é orago Nossa Senhora da Oli-
veira.
Para explicar o seu nome, conta a tradição que os mouros, rechaçados pelas hos-
tes de AfFonso Henriques, foram por estas perseguidos ao grito de Mata cães, — mata
que sáo perros.
A lembrança do successo daria origem ao onomástico do legar em que elle se foi
desenrolando.
Procuraram os mouros fazer se fortes num outeiro — onde havia uma mesquita
— que por isso se ficou chamando Monte dos mouros. Tanto dentro da mesquita fde
que ainda hoje se indica o sitio na matta da quinta do Juncai) como fora d'ella, a car-
nagem nos mouros foi tamanha, que tingiu de vermelho o ribeiro Golez, desde então
denominado — Rio de sangue. '
Matacaes dista da villa de Torres Vedras quatro kilometros para sueste, e da esta-
ção de Runa um kiiometro.
Comprehende 9 logares, três dos quaes com a mesma desinência : Ordasqueira,
Sevilheira, Zurragueira.
Fntre a Ordasqueira e o logar sede da parochia fica ao occidente o monte do Cal-
vário, com uma capella do Senhor Jesus d'esta invocação, ao qual se faz uma concor-
ridissima romaria, no mez de abril.
De Matacaes vai todos os annos um cirio á festa da Nazareth. Pinheiro Chagas refe-
re-se a este cirio no livro Fora da terra :
«Pois a mim, o que mais me agradou, foi o cirio de Matacaes. E não foi por ser
Matacaes, a pátria d'aquelie alho, que Leoni reproduzia com tão cómica ingenuidade :
Em Matacaes, na minha aldeã
Diz toda a gente á bocca cheia. . .
«Não foi por isso, foi porque o cirio de Matacaes. o primeiro que eu vi entrar, é
um verdadeiro círio, conforme com a tradição. Pequeno, constando talvez de uns vinte
homens todos a cavallo, traz na frente um tocador de gaita de folies. Brilham pela sua
ausência os caleches, e os romeiros montam em excellenies machos, alguns d'elles ador-
nados com um luxo maravilhoso, mas arreiados á portugueza, com o seu aspecto caracte-
rístico e nacional. Os outros cirios, os cirios pomposos, trazem philarmonicas, e a do
cirio das Caldas tocava, ao entrar na Nazareth, a Filhj da Senhora Auíiot.*
N'esta patriótica Matacaes, duas vezes patriótica, por se ter desembaraçado dos
mouros de um modo seguro— matandoos — e porque conserva no seu cirio a clássica tradi-
ção dos genuínos círios naciunaes, ainda ha a ferir uma terceira nota de patriotismo,
a de preparar cidadãos úteis á pátria em duas escolas officiaes — para ambos os sexos.
Alem disto, que já não seria pouco, tem Matacaes outro predicado que a recom-
menda á consideração publica, se devemos acreditar nos livros.
Houve aqui uma quinta chamada do Mosteiro, porque os eremitas de Santo Agostinho
junto a ella quízeram edificar um convento seu, ideia que aliás abandonaram em razão
de os contrariar a falta de agua.
I Talvez porque n'estes sitlos houvesse grande quantidade de pedregulhos, com que o povo, auxi-
liando os soldados, lapidnria os mouros— o que í possível acontecesse também em outros logares — se di
ainda o nome de matacão a uma pedra de arremesso.
A éXtreMadura portugueza
7^
Ora essa quinta doou-a el rei D. Manuel a Gil Vicente, o famoso poeta dos autos,
o qual n'ella viveu retirado quatro annos, trabalhando na coordenação das suas obras, e
n'ella falleceu.
A quinta do Mosteiro pertencera á familia de Gil Vicente até quasi ao fim do sé-
culo XVII ; depois foi encorporada no vinculo do Juncal. *
Dito isto, podem os auctores de comedias e scenas cómicas saloias zombar á von-
tade de Matacães. . . que vale mais do que elles.
A freguezia de Santa Suzana do Maxial, com 2.192 habitantes, dista de Torres Ve-
dras 10 kilometros, e 3 da estação do Ramalhal. '
Ôomingo, 25 ca março de ISSâ
DE
Mitor,G.A.DEriliuH!iEDO Diríttor,THEO»OR9 Dê COiilfi Adffliuistatlw, H,
ASSIOKATT3KÍÍ
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KMUO, \n 1 .i|:WM5Si:v,', . " ANNCKCIOS
lu^BsuiilIP.IÍJf.aBSilc-Tí/niWias _ j _ ■ _ _ti|«i»B, íbmMo ira içi i.
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putoSú cuitittlv (ib iiiiiis r.iííi.idos
progeclos. cnli-cmostram-se a..-- m-^is
puras inlcnç/n-:'. cscurfam-w a-sum-
pws do maior intíresse c aclualiriiitl'^
^Jinalmr-HtK. aS£ jurando. Dltreotlí-
Batalha Eeis
i.nií. li.it .It.j !<-!■ .-.c:^-iu.1o o '■ Tada^líu-po a
275 — Fac-simile da Follia de Torres Vedras
Parece que os fundadores da igreja parochial foram cruzados francezes que auxi-
liaram Affonso Henriques na conquista de Lisboa.
O logar sede da parochia está situado junto ao rio Alcabrichel.
Comprehende mais 7 logares, em alguns dos quaes também se nota a desinência
eira, muito vulgar nas povoações saloias — taes são os de Ermigeira, Ereira e Lobagueira, ^
este ultimo banhado por um regato, que nasce na falda do monte de S. Matheus.
Ha duas escolas para ambos os sexos.
Na Ermigeira está situada a quinta do visconde de Balsemão.
A freguezia do Espirito Santo de Monte Redondo tem 887 habitantes, duas esco-
las, e vários fornos que fabricam telha e tijolo.
' Visconde de Sanches de Baena, Gil Vicente, '8^4; Theophilo Braga, Gil Vicente e as origens do
theatro nacional, 189S
2 Antigamente dizia-se Lobagueira dos Lobatos, talvez em razão do appellido da familia que pri-
meiro povoou este log.ir.
j6 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Alem do logar do seu nome. comprehende outro, o das Lapas Grandes.
Não passe aqui o leitor sem visitar a quinta dos condes de Tarouca.
E se tiver sede em Monte Redondo, beba a agua da fonte, que é excellente.
A fre'guezia de Nossa Senhora da Conceição da Ponta do Rol, cora 1.167 habitan-
tes, situada no valle do Sizandro, deve á necessidade de ter uma ponte sobre este rio
a remota origem do seu nome.
Diz se que, passando por aqui um dos nossos antigos reis, alguns moradores já
então aldeados lhe requereram que mandasse fazer uma ponte sobre o Sizandro para
maior commodidade delles.
O monarcha prometteu que sim.
Nd despedida o povo instou por que se não demorasse o cumprimento da promessa.
E o rei socegou os dizendo:
— Vai na ponta do rol.
D'aqui, segundo a lenda, o nome d'esta freguezia que comprehende ao todo 7 to-
gares, só um com o suffixo eira : Gondrozeira.
Ha uma escola parochial.
A este do logar brota uma nascente de agua férrea.
A freguezia de S. Lourenço do Ramalhal, a Jois kilometros da estação do seu nome,
fica junto ao rio Alcabrichel, na estrada de Torres Vedras a Lisboa, e conta 1.671 habi-
tan es.
Comprehende 4 logares, e tem escola mixta.
A freguezia de S. João Baptista de Runa, com uma população de mais de i.ooo al-
mas, é servida pela estação do seu nome, e tornou se notável por estar n'ella edificado o
Real Asylo dos Inválidos Militares.
O logar de Rana, sede da parochia, situado n'uma planície amena, não desdiz da
pittoresca paizagem que em geral caracterisa o concelho de Torres Vedras.
O no Sizandro, com boa sombra de arvoredo, interpõese ao Asylo e ao logar; e a
linha férrea passa junto a ambos.
Do alto das Lombas gosa se um largo panorama, dentro do qual se destacam tanto
a povoação como o Asylo, e muitos outros logares e quintas n'um gracioso conjunto
de belleza campestre e vida rural.
A infanta D. Mana Francisca Benedicta, a ultima das quatro lindas filhas d'elrei
D. José, foi a funjadora do Asylo de Runa.
Tinha pouco mais de trinta annos de idade quando em 1777 casou com o príncipe
D. José, seu sobrinho, em cuja cabeça devia pousar um dia a coroa de Portugal.
Este príncipe, comquanto adolescente de 16 annos, era dotado de singulares pren-
das de intelligencia, e desde a puerícia manifestara por sua tia D. Maria Benedicta
uma carinhosa alíeição.
A formo.sura da infanta e a superioridade de um luminoso talento que a illustra-
va justificavam plenamente a terna predilecção do príncipe, não obstante a differença
das idades.
El rei D. José, três dias antes de morrer, quiz assistir ao casamento da filha com o
neto, apressando esta alliança talvez por conhecer não só que a inclinação d js dois era
irresistível, mas também, provavelmente, que a herdeira do throno, espirito irresoluto e
frágil, em breve careceria de um firme ponto de apoio no bom juízo de uma nora que era
ao mesmo tempo sua irmã e seria uma excellente conselheira tanto do marido como da
sogra.
Durou apenas onze annos e meio a união conjugal dos dois esposos felizes, por-
que a morte ceifou em flor a existência do príncipe no dia 11 de setembro de i788.
D. Maria Benedicta ficou profundamente fenda por este golpe inesperado, e como
A EXTREMADURA PORTUUUEZA
11
que absorta na intima visão saudosa que divinisava a memoria do seu querido morto,
esse gentil e talentoso rapaz que lhe dera toda a ternura amorosa da mocidade e que
mais tarde lhe poderia dar um throno e uma coroa de rainha.
Na amargura da sua viuvez pensou a princeza D. Maria Benedicta em procurar um
duplo lenitivo n'uma empresa que ao mesmo tempo fosse um voto de saudade e um
instituto de beneficência.
Lembrou-se então, com o acerto peculiar a um claro entendimento, de fundar um
Asylo onde fossem recolhidos os inválidos do exercito como amparo á sua velhice e
doença depois de haverem bem servido a pátria.
i nNBi DE TOR
"iw^riTBãasrw^^F
radorás d'esta regid
7.11 INNO vmu, luod Fiiati«ti BinjMt. Tom
Qflintâ feira. 28 de Setembro de lílOíi
MoT,rr.lrli,fc.| '«"■•"610
OS IDUBOS^
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1» n.uiW í ."rn, ,
27^ - FacsKtiile dojiornali.i Vinha de Torres Vedras
Para este effeito, comprou a princeza em 1790, junto a Runa, a quinta denominada
Alcobaça e outros terrenos adjacentes.
Começaram os trabalhos da construcção; e em 1807, quando a familia real emigrou
para o Brazil, estava feita uma boa parte do edifício.
A princeza viuva mandou d'ali avultadas sommas para a continuação da obra;
mas pode calcular-se quanto na sua ausência seria mais frouxa a actividade dos operá-
rios e a vigilância dos olheiros.
Em 1821, quando a familia real regressou, o edifício ainda não estava acabado,
pelo que a augusta fundadora ordenou que se empregasse a maior diligencia para se
não demorar a inauguração.
Finalmente, a 25 de julho de 1827, dia em que a princeza completava 81 annos
de idade, foi aberto o Asylo com 16 inválidos, um tenente, três sargentos e 12 cabos.
Todavia nem então, nem ao tempo da morte da fundadora que succedeu dois an-
nos depois, estava concluído ainda o zimbório da igreja, cujo remate se ultimou pos-
teriormente com menos largueza de subsidio do que seria preciso para harmonisal-o com
3 amplitude do edifício.
7» EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Compõe-se este de três andares com a igreja ao meio, e forma um quadrilátero de
99 metros de frente por 68 de fundo.
Na fachada do sul comprehendia-se o palácio que a princeza reservou para si, e
que por sua morte ficou deshabitado mas não desguarnecida de moveis e louças '.
O edifício, sem ser monumental como o de Mafra, denuncia, porém, como elle o
tom pesado e monótono da época ; e também como eile tem uma igreja sumptuosa,
ainda que o seja menos, a qual divide a fachada principal e é prejudicada pela mesquinhez
do zimbório.
Entre as ricas alfaias do templo merece especial menção a bella custodia de prata
dourada, com innumeras pedras preciosas, cujo desenho foi traçado pela mão da prin-
ceza fundadora.
Entrase para o Asylo por uma extensa avenida, de 170 metros de comprimento,
orlada de arvores e roseiras, no topo da qual, em frente da igreja, se ergue sobre um
ped<;sial de mármore o busto de el-rei D. Pedro V em bronze, * inaugurado a 21 de
dezembro de 1879.
Tem este busto uma historia que se conta rapidamente.
Alguns officiaes do exercito residentes no Porto lembraram se de, em homenagem
á memoria de el rei D. Pedro V, promover uma subscripção, com cujo producto não só
ampliassem a dotação do Asylo para nelle ser recebido o possivel numero de praças do
ultramar, mas também a celebração de uma missa annual por alma do chorado monar-
cha, e a erecção do seu busto no recinto do estabelecimento.
Estas resoluções foram approvadas por carta de lei de i de s tembro de 1869.
A direcção do Asylo recebeu o producto da subscripção: ins.ripções no valor no-
minal de liíuoo^S^ooo reis e 28íp6.ô reis em metal.
A princeza fundadora dispendeu na construcção do edifício a somma de 6oo:oooírooo
reis, e legou lhe todos os seus haveres, incluindo as joias.
A desdmortisaçáo dos bens de mão morta fez que o Asylo tivesse de pôr em pnça
algumas propriedades rústicas (com excepção do pinhal de Monte Redondo, que lhe
fornece lenha e madeira) as quaes prop iedades eram dotação sua.
Um dos arrematantes foi o conselheiro João Gualberto de Barros e Cunha. (iSSi).
A imperatri Amélia, viuva de D. Pedro IV, subsidiou em sua vida com donativos
annuaes a manutenção do Asylo, cuja administração a fundadora entregou por disposição
testamentária ao ministério da guerra, o qual cobra hoje todos os rendimentos d'aquelle
hospício militar no valor de 4:000^000 reis, mas inscreveu no seu orçamento de des-
pesa as verbas de 4.'b!Í2.r'Ooo (vencimento dos empregados e pré das praças inválidas) e
de 9:o62C?ooo reis (custeio de mantimentos, conservação, expediente, etc.) que fazem
face ás exigências do funccionamento normal do Asylo.
Tanto sobre este instituto como sobre a vida da princeza fundadora recommendo
ao leitor a Descripção do Real Asylo de Inválidos Afilitar-es em Runa (Lisboa, 1882)
pelo meu amigo snr. major Escrivanis, a quem ainda tornarei a referir me quando falar
de Cascaes; e o Elogio hislonco da princesa D. Maria Francisca Benedicí a, P&r'\s, i836.
A freguezia de Runa comprehende mais os logares de Monte de Rei Grande, Mon-
te de Rei Pequeno, e Penedo, e parece ter-se constituído ha mais de três séculos com
alguns parochianos de S. Pedro de Torres Vedras.
A sua principal industria são fornos de cal.
' Na estrada de Runa, próximo aos Cucos, ha uroa lapa rodeada de arvoredo silvestre, que se cha-
ma Gruía da frince^a, por ser o paitseio predilecto da lundddora do Asylo, quando no verão vinha
residir n'este palácio.
> Foi fundido em Lisboa no Arsenal do Exercito.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
Tem escola ofiBcial, e duas particulares.
Ha feira a 29 de setembro.
A freguezia de S. Pedro da Cadeira conta 3.912 habitantes, e fica um kilometro ao
sul da margem esquerda do Sizandro.
Abrange um litoral de 12 kiiometros, com dois portos, um na Assenta e outro pró-
ximo a Cambellas, ambos accessiveis a pequenas embarcações de pesca.
Está comprehendida n'este litoral a linda praia de Santa Cruz, ao sul da qual des-
emboca o Sizandro no sitio denominado Foz d'Areia.
Santa Cruz— antigamente Santa Cruz de Riba-Mar— parece ter sido outr'ora sede
de parochia.
Na época balnear é hoje muito concorrida, principalmente desde que por iniciativa
do ^^. António Palha de Figueiredo Rego se construiu uma estrada de Torres a esta
praia. Antigamente a viagem fazia-se pelo areal em carro de bois ou a cavallo. Tem
esta povoação ruas e praças, e um hotel que se denom.ina Havane\. Fora d'aquella
época, a maior parte das casas conserva-se fechada. Mas no dia 3 de maio. ou no do-
mingo seguinte, vem aqui muita gente do concelho fazer merendas, e ha descantes e
bailaricos á beira-mar, por motivo da festa da Vera Cruz na pequena capella de Santa
Helena.
A praia é bella e espaçosa, e tem um penedo isolado notável pela sua grandeza : é
conhecido pela designação de Penedo do Guincho *.
A igreja parochial da freguezia de S. Pedro da Cadeira é antiga; crê-se datar, pelo
menos, do século xiv ou xv.
Comprehende esta freguezia vários logares e casaes; perto de um d'estes, o de Po-
voral, rompe uma nascente que revolve a areia com violência e vai depois formar uma
ribeira affluente do Sizandro.
Ha escola para o sexo masculino.
Toda a freguezia é muito abundante de hortaliças, que abastecem o mercado de
Torres Vedras.
A freguezia de Santa Maria Magdalena do Turcifal, com 2.734 habitantes, está si-
tuada na estrada de Torres Vedras a Lisboa.
Dista da cabeça do concelho 7 kiiometros, para o sul.
Quanto á etymologia do seu nome (que os antigos graphavam Trucifal) não me
atrevo a reproduzir a versão das «Memorias parochiaes de i755», tão disparatada a acho. •
A igreja parochial, que substitue a antiga, foi concluída em 1755.
E' de uma só nave, mas ampla, e toda de cantaria.
Comprehende esta freguezia, ao todo, 8 logares.
Tem duas escolas, para ambos os sexos; medico e pharmacia.
Faz :>e aqui a feira chamada do Matto, no ultimo domingo de agosto: é de madei-
ras e junco.
A freguezia de S. Mamede de Ventosa, com 3. 171 habitantes, dista de Torres
Vedras 7 kilomeiros para sudoeste.
O logar que é sede da parochia está situado um kilometro a oeste da ribeira do
Gradil
A freguezia comprehende mais 20 logares.
Tem escolas para um e outro sexo.
> As praias do concelho de Torres, contando do norte para o sul, são: Ribamar (uma parte), Porto
Novo, Santa Rita, Santa Cruz, Foz d' Areia e Assenta.
Em Porto Novo funcciona, desde maio de 1902, uma armação valenciana.
' Veja-a o leitor, se quizer, no vol 8, pag. iS;, do Archeoljgo Português.
8o EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Fica dentro d'esta freguezia a qtiinta de Charnixe.
O concelho de Torres Vedras, com unna população total de 35 : 5G7 habitantes»
faz parte do districto adnninistrativo de Lisboa.
Ecclesiasticamente pertence ao Patriarchado.
A villa é sede de uma comarca de 1.* classe.
Sobre o concelho e villa compoz Manuel Agostinho Madeira Torres, que foi prior
de Santa Maria do Castello, uma monographia, a qual sahiu primeiro nas Memorias
da Academia e depois em separata.
Ha duas edições. Tenho a 2.*, que é de i8(3i.
Não foi este o único torreense cujo nome ficará lembrado. Outros filhos illustres
tem tido o concelho de Torres Vedras.
D. Pedro, conde de Barcellos, bastardo de el-rei D. Diniz e auctor do famoso No-
biliário, se não nasceu aqui, estava ligado a Torres Vedras pelos laços maternos,
pois que sua mãe Dona Garcia Froyas era natural da villa. •
Aqui nasceu uma princeza, D. Leonor, filha legitima de el rei D. Duarte, que foi
imperatriz da AUemanha pelo seu casamento com Frederico IIL
Aqui nasceu (1743) Roque Ferreira Lobo, auctor da Historia da feli\ acclamaçâo
do senhor rei D. João IV.
Passando em silencio outros homens distinctos nas armas, nas lettras ena politica,
nascidos n'este concelho, mencionarei, por motivo especial, o conselheiro João Gual-
berto de Barros e Cunha, que foi deputado em muitas legislaturas e ministro das
obras publicas em i'^77, sob a presidência do então marquez de Ávila.
Nasceu em Runa. Era orador e escriptor.
Creio que por ter casado com uma senhora ingleza adquiriu hábitos inglezados. Na
camará, quando não falava, lia o Times. Os seus adversários políticos chamavam-lhe
Barros and Cunha.
Encontrei-o muitas vezes a jantar em casa do nosso commum amigo conselheiro
Augusto César Cau da Costa, e por isso o tratei muito de peto. Homem intelligente
e instruído, agradava na conversação. Publicou o i." volume de uma Historia da li-
herdade, em Portugal, assumpto que merecia maior desenvolvimento, e vários opúscu-
los políticos.
O filho, doutor em philosophia, honrame também com a sua amizade.
• É não, como Innocencio julgou, natural de Sacavém, onde aliás tinha propriedades como em
Torres, porque a sua família er.i rica e distincta.
-^^^^P
V
Sobral de MonfAgraço
ARECE que o primitivo núcleo de povoação n'este iogar, em terreno
alto, bem arejado mas agreste, tivera o nome de Monte Agraço,
e foral concedido por D. Manuel a 20 de outubro de iSig.
A própria denominação antiga dá a conhecer a aspereza do
sitio : Monte muito agro ; agraço.
E d'aqui se pode inferir a vida rude dos seus primeiros habi-
tantes ; portanto, a falta de elementos de prosperidade e progresso.
Assim, pois, a povoação estacionava, em vez de progredir.
No anno de 1712, segundo se vê do Padre Carvalho, já se lhe dava o nome de
Sobral de Mont' Agraço, mas a população constava apenas de sessenta vizinhos.
Era uma aldéa, com pouco mais de meio cento de fogos, que n'este sentido toma-
remos a palavra vizinhos; uma pequena freguezia rústica, com sua igreja parochial,
certamente pobre.
Creio que seria uma só familia a propulsora do maior desenvolvimento agricola
d'esta povoação, e dos primeiros benefícios materiaes que ella recebeu.
Refiro-me aos morgados do Sobral.
Joaquim Ignacio da Cruz Sobral, thesoureiro mór do erário régio em 1768, insti-
tuiu aqui um morgado, e foi o primeiro senhor do Sobral de Mont' Agraço por diploma
de 18 de abril de 1771.
Ficou pois annexo ao morgado o senhorio da povoação^ mercê esta confirmada por
outro diploma no fim do anno de 1777, com a clausula de que a successão poderia rea-
lisarse em qualquer parente até ao segundo grau, comtanto que o legatário adoptasse
o brazão e appellido de Sobral.
Resta averiguar se este nome viria da familia á povoação ou da povoação á familia.
Mas sabendo nós que em 1712 já a povoação se chamava Sobral de Mont' Agraço,
e que um irmão do i." morgado, ao qual foi concedido brazão, se chamava José Fran-
cisco da Cruz Alagôa, ' propendemos a crer que da povoação tomaria aquella familia
' Ainda hoje uma lagoa de prata figura no brazão dos Sobraes.
VOL. 11
8i EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O nome de Sobral, por se dizer — os Cruz do Sobral, os morgados do Sobral, os se-
nhores do Sobral, etc.
Fallecido o i." senhor do Sobral em 1781, succedeulhe seu irmão Anselmo José
da Cruz Sobral, que deixou um filho e uma filha.
O filho, 'i." morgado, foi o desembargador Sebastião António da Cruz Sobral.
A filha foi D. Joanna Maria da Cruz Sobral, 4." senhora do Sobral, a qual casou
com Geraldo Venceslau, filho de Hermano José Braamcamp, ministro do rei da Prús-
sia em Lisboa.
Geraldo Venceslau Braamcamp foi o i." barão de Sobral.
Succedeu-lhe n'este titulo o seu primogénito, Hermano José Braamcamp, 5.° senhor
do Sobral, par do reino, i." visconde de Sobral em i838, e i." conde de Sobral em
1844.
Foi casado com uma senhora franceza.
Sua filha primogénita desposou Luiz de Mello Breyner, que foi ">.." conde de So-
bral, e era irmão do i." marquez de Ficalho.
D'este casamento nasceu Hermano José Braamcamp, 3." conde de Sobral, a quem
já nos referimos no i." voi. d'esta obra. Vide (Almeirim). •
Os senhores do Sobral residiam em Lisboa, onde exerciam altos cargos, mas ti-
nham aqui solar (ainda hoje de pé na praça da villa), visitalo iam com alguma frequên-
cia, acompanhados de parentes e amigos; melhorariam as culturas, realisariam festas
campestres, protegeriam os habitantes pobres, e penso que, sob o inHuxo d'esta famí-
lia rica e poderosa, começaria a povoação a animar se e a prosperar no século xviii,
posteriormente ao Padre Carvalho.
Toda a gente sabe que á sombra de mosteiros e solares se fundaram ou desenvol-
veram dezenas de povoações.
Esta seria uma.
Dado o impulso, Sobral de Mont'Agraço foi medrando.
O que é certo é que Baptista, na sua Corographia moderna, dizia em 1876: «N'es-
tes últimos annos tem prosperado de um modo admirável a villa : está muito limpa,
com boas lojas e excellentes propriedades tanto urbanas como ruraes». *
No principio do século xix a guerra com os francezes demoraria um pouco o des-
envolvimento da povoação, não só porque a construcção das famosas linhas de Torres
Vedras, que passavam aqui, distraíram da agricultura lodos os braços válidos, mas
também em razão dos próprios destroços da guerra.
A primeira d'aquellas linhas dividia se em três districtos, desde Alhandra até á
foz do Sizandro.
O 2." districto comprehendia o Sobral de Mont'Agraço, e apoiava-se no forte da
serra do Urneiro, hoje em ruinas, o qual ficava ao sul e a pequena distancia da povoa-
ção.
Mas, depois da guerra, os habitantes de todos os logares da Extremadura com-
prehendidos nas linhas de Torres trataram de reparar contentes as avarias da campa-
nha, porque foi justamente n'essas linhas que o exercito de Masséna viera esbarrar,
sem conseguir rompelas.
O patriotismo orgulhoso e a alegria próprios dos vencedores fizeram que cada habi-
tante tomasse ainda mais gosto á sua terra e á sua casa.
O concelho do Sobral, com uma pequena população de 5.701 habitantes, compõc-
' Sobre as familias Sobral e Rraamcamp, veja-se Braomcnmp, Hrasõcs, 1.' vol , pag. 114, nota.
' Vol. IV, pag. 39a.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA 83
se apenas de 3 freguezias : a do Salvador, cabeça do concelho; a de Santo Quintino e
a da Sapataria.
A primeira comprehende a villa do Sobral de Mont'Agraço e vários logares.
A villa era até agora apen; s servida pela estação de Dois Portos, da qual dista
pouco mais de 5 kilometros; e por carreiras de diligencia á passagem dos comboioscor-
reios, custando lõo reis cada logar; — ida e volta 240 reis.
Mas ultimamente foi o Sobral beneficiado pela construcção do apeadeiro da Feli-
teira entre as estações de Pêro Negro e Dois Portos — pois que o Sobral é vizinho da
Feliteira.
Tem a freguezia uma população total de i.^yi habitantes; e a sua producção agri-
cola abunda em vinho, cereaes, fructas e legumes, como acontece em rodo o concelho.
Também representa um valor considerável a creaçao de gados, e a caça.
277 — Vista geral ao Sobral de MonfAgraço
Como já dissemos, na praça da villa está ainda de pé o palácio dos senhores do So-
bral, tendo annexa a igreja que o completa, e que seus illustres proprietários cederam
para os actos parochiaes.
Por debaixo do altar mór conservase com grande veneração a múmia de Santa Au-
rélia e a de um menino, que são advogados contra os partos difficeis e perigosos, mo-
tivo pelo qual concorre aqui durante todo o anno, especialmente no dia da festa, gran-
de numero de mulheres, a fazer ou cumprir promessas.
A praça, que se chama de Serpa Pinto, está arborisada e tem um coreto.
Alem do palácio dos senhores do Sobral, ha n'ella outro bom prédio, também apa-
laçado, de que é proprietário Manuel Pedro Cardoso.
Depois da festa de Santa Aurélia, nenhuma outra inspira mais interesse aos povos
do Sobral e dos arredores que a de S. Firmo, em cuja procissão se encorpora um carro
de bois vistosamente enfeitado e florido.
Tem a villa escolas para ambos os sexos, um Club Sobralense, um Theatro Sobra-
lense onde representam amadores, uma pharmacia, um medico, duas hospedarias — a da
Macieira e a do Cadoce — , varias casas de pasto, dois talhos, três alquilarias, etc.
Faz-se mercado no i." domingo de cada mez, e feira a i5 de agosto.
A freguezia de Santo Quintino, cu)0 orago é Nossa Senhora da Piedade, conta
3.182 habitantes, e dista 3 kilometros da cabeça do concelho, para sueste.
A igreja parochial, um lindo exemplar manuelino, merecia ser conservada como
monumento nacional.
g^ EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Na fachada recommendam se a porta ogival bem como dois medalhões, um dos
quaes representa el-re, D. Manuel, e outro parece que um busto de mulher, mas nao se
sabe ao certo quem seja, por estar muito apagado.
No interior, aos lados da capella-mór, ha outras duas que com ella commumcam
por arcaria aberta. O tecto, de madeira pintada, é sustentado por elegantes artezoes
A freguezia de Santo Quintino comprehende, alem do logar do seu nome, vanos
outroVenfre os quaes menaonaremos Aimargem, Freir.a, Martim Aâonso, Monfahm,
Seramena; e n'elles muitos casaes e não poucas quintas. ■
Sma d'estas, em Monfalim, pertence aos viscnndes da Asseca, que todos os annos
aqui fazem na sua capella uma funcção religiosa.
Monfalim era morgadio da casa Palmella. . d i n„
D. Filippe de Sousa Holstein, decimo quarto filho do ..^ duque de Palmella,
teve o titulo de marquez de Monfalim. . , . o ^-Ar^^rim
Os principaes agricultores do Aimargem são: António de Jesus Branco d Amorim
José Dias e José Moreira, da Freiria, Alberto Gomes de Carvalho e Anton.o da S.Iva
Rocha: de Martim Affonso, António Joaquim Pipa Júnior e Joaquim Anton.o Pipa , de
Monfalim, o dr. Luiz Emilio Vie.ra Lisboa e Faustino José de Moraes; de Seramena,
^"'°Ha umT^etcola do sexo feminino na sede da parochia; e outra do sexo masculino
no loear do Aimargem. ^ . „ . ■
Em I de novembro faz-se no logar de Santo Quintino um feira; e no i. domingo
depois do dia de Santo António outra feira, cuja especialidade sao fructas.
A freguezia da Sapataria tem por orago Nossa Senhora da Purificação, conta ..208
habitantes, dista 7 kilometros da cabeça do concelho e 3 da estação de Pêro Negro, j
Qual terá sido a origem do nome Sapataria ? > ^ u
Uma versão local diz que por haver aqui muitos sapos-como em verdade ha -se
chamou á povoação Saparia, e que depois este onomástico se corrompeu em Sapataria^
Tal versão parece inacceitavel, e apenas a damos por ser de caracter popular; tanto
mais que em antigos prasos se lê sempre Sapataria e nunca Saparia.
Alem do logar sede da parochia, comprehende a Sapataria mais 9, ura dos quaes
é Pêro Negro.
Pcro Negro! Que bello titulo para um solau deixaram escapar das mãos os poetas
"'"Srmfconstír então se descobrisse ou sequer phantasiasse a lenda do heroe
d'este logar, algum Pedro saloio, certamente, mais africano e mulatão, por phenomeno
atávico, do que os outros seus conterrâneos- phenomeno que muitas vezes se repete nas
povoações saloias, onde quasi sempre ha «um negro».
Este da Sapataria ficou celebre onomasticamente.
Comprehende a freguezia as quintas do Espirito Santo, Flores, Moita, Arcipreste
'""ultima, pertencente aos herdeiros do dr. Ferraz de Maced. , que foi lente da Ks
cola Medica de Lisboa, teve antigamente o nome de Casal do Sizandro, porque est(
rio nasce de uma fonte aqui perto.
Ha na Sapataria uma escola otíicial para o sexo masculino.
No logar de b. Martinho faz se uma feira a 1 1 de novembro
O con-elho do Sobral de Monf Agraço pertence administrativamente ao distncto .k
Lisboa, judicialmente á comarca de Torres Vedras e ecclesiasticamente ao Patnarchado
VI
Arruda dos Vinhos
villa da Arruda dos Vinhos fica i 2 kilometros a noroeste de Villa
Franca de Xira.
Está situada n'iim fértil valle, que ao sul e poente é contorna-
do por montes em cujas faldas vegetam as vinhas, que deram fama
á povoação ; e ao norte e nascente por um riacho — Pipa ou Cachoei-
ras — que, atfluente do Tejo, pequeno tributo lhe paga no verão,
mas que no inverno se torna caudaloso.
Nas suas margens, muito arborisadas, ha pittorescos recortes; citarei, por exemplo,
o trecho próximo á quinta da Venga, propriedade do sr. José Pato Moniz.
A fundação da Arruda é anterior ao principio da monarchia, porquanto D. Affonso
Henriques doou aos freires da Ordem de Santiago o castello da Arruda ; * e esta doação
foi-lhes confirmada por Sancho I. '^
No reinado de Affonso III, por consenso dos freires, estava a villa da Arruda em
poder da rainha D. Beatriz de Gusmão, a qual, sendo viuva, lh'a devolveu; mas D. Diniz
tratou de fazer escambo com a Ordem de Santiago e d'ella obteve a mesma villa, que
offereceu á Rainha Santa. '
Todavia parece-nos que não permaneceu na Casa das Rainhas, pois que em Fernam
Lopes achamos noticia de que, no reinado de D. João I, era o mestre de Santiago, Ruy
Freire, quem cobrava as rendas da Arruda. *
El-rei D. Manuel deu foral a esta povoação em i5 de janeiro de ibij.
A Arruda dos Vinhos contém alguns edificios interessantes, a começar pela igreja
matriz, de três naves, com um lindo pórtico, e boa obra de talha no altar-mór.
Este ternplo foi fundado pelo povo, e tem sido restaurado em varias épocas ; creio
que a mais moderna foi 1875.
' Vide i." vol. d'esta obra, pag. ç.
^ Idem, idem.
3 Mon. Lu5., V tom., pag. 468, 2.' col.
' Chronica d'ilrci D. Joc.o I, cap. CXX K.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O hospital da Misericórdia, tam-
bém fundado pelo povo, parece datar
de 1 574, posto não haja certeza d'isso,
porque o exercito francez destruiu o
archivo d'esta Santa Casa.
E' um edifício de um só andar,
com seis janellas de sacada, levantado
sobre nove arcos.
Tem duas enfermarias, cuja mé-
dia annnual de doentes está calcula-
da em 3q,2.
O capital nominal da Misericór-
dia é de aoioiocP^oo réis. *
A respectiva irmandade possue
um templo privativo.
Os paços do concelho estão em
edifício próprio, e de regular appa-
rencia.
Do que a Arruda se pode orgu-
lhar é do seu chafariz pomposo, alto,
largo, adornado na cimalha com pi-
lastras e outros ornatos, no frontão
um escudo de armas. As bicas, jor-
rando de uma arca, despejam a agua
sobre um amplo tanque.
Este chafariz erguèse na Praça.
Os duques de Aveiro tiveram na
Arruda um palácio, que derruiu.
O Passeio Publico é um agradá-
vel recinto, para o qual se entra por
um portão de ferro.
Arvores frondosas entretecem os
seus ramos em abobada sombria
A' rua Direita conflue o maior
movimento commercial e transito de
vehicuios com que se anima a villa.
A Arruda gosa as vantagens de
um solo fecundo e de um clima salu-
berrimo.
Tem importante producção de
vinhos cobertos e encorpados, e é
mimosa de boas fructas.
Funcciona na villa uma escola
Conde de Ferreira, além de outras
para ambos os sexos.
Ha um theatro, uma associação
de bombeiros voluntários; duas socie-
' Costa Goodolphim, .li Mifcricor-
dii3s, pag. a35.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
87
dades de recreio, Grupo Dramático e Club Arrudense (este ultimo com bibliotheca); duas
sociedades musicaes —Gn/f o de amadores (com orchestra) e Grupo de philarmonicos.
Acham-se estabelecidos na villa
representantes de agencias bancarias
e de s.guros ; uma agencia de publi-
cações — cáspite! — ; casas de hospe-
des e de pasto ; varias lojas de com-
mercio ; duas modistas ; um medico ;
uma pharmacia, três alquilarias, etc.
Contam-se sete exportadores de
fructas, e um consignatário de vides
americanas.
Entre a estação da Alhandra e a
Arruda faz se um serviço regular de
diligencias, a 240 réis cada logar ;
preço de ida e volta, 400 réis.
A villa e mais os logares da
Matta, Carrasqueira, Quinta da Ser-
ra, bem como numerosos casaes e
quintas, constituem a freguezia de
Nossa Senhora da Salvação com
2.287 habitantes.
Como principaes funcçóes reli-
giosas na Arruda dos Vinhos deve-
mos mencionar as da Semana Santa, - y - chafiri^
que sempre costurriam attrair aqui
muita gente do concelho e dos arredores; e a do orago, a i5 de agosto, com arraial e
outros ruidosos festejos. Faz se na villa uma feira, de 24 a 27 de julho.
Pelas cabeças dos montes ao sul da Arruda e do Sobral [Vide Sobral de Mon-
fAgraço) corriam desde Alhandra as
celebres linhas de Torres Vedras.
Na freguezia de Nossa Senhora
da Salvação está comprehendida a
quinta de Monte Godel, que foi solar
da nobre familia Gamboa e Liz, e
que ainda no século passado era co-
nhecida pela «Casa do Capitão-Mór
da Arruda».
Duas palavras a respeito d'esta
familia.
O titulo de barão da Arruda foi
concedido por decreto de 8 de agosto
de 1845 a Bartholomeu de Gamboa e
Liz, antigo capitão-mór da mesma
villa e n'ella proprietário.
Este Gamboa seguiu a magistra-
tura, foi par do reino, e falleceu em
março de 1870 com 92 annos. Seu pai também fora capitão-mór da Arruda onde nasceu,
casou e morreu.
O filho primogénito do 1." barão chamava-se António de Gamboa e Liz, foi bacha-
Hospital da Misericórdia
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
rei em direito, exerceu cargos administractivos e judiciaes, e succedeu ao seu progenitor
no pariato, mas não no titulo.
Falleceu em 1878, sem geração.
Teve mais cinco irmãos, três varões e duas senhoras, uma das quaes casou com
o 5." conde da Cunha.
A famiha Gamboa e Liz extinguiu-se em 1881 com a morte do 6.* filho do i." barão.
E a «Casa do capitão-mór da Arruda» passou a pessoa estranha á familia por dis-
posição testamentária d'aquelle ultimo representante dos Gamboas.
Finalmente, villa pequena, cabeça de um concelho pequeno — cuja população total
é de 5.61 5 habitantes a Arruda dos Vinhos tem vida, movimento e riqueza agricola ;
281 — Passeio Publi-o (entrada)
alem d'isto é beneficiada por estimáveis condições de salubridade publica ; e nem sequer
lhe faltam tradições de famílias illustres.
Um adagio tópico, de caracter satyrico, diz: Da Arruda nem mulher, nem mula, nem
vento, nem casamento».
Mas não se desconsole a Arruda, que fica em boa companhia com os de Almoster
e outros povos attingidos por idênticos ditados. ,
Completa-se o concelho com mais três freguezias, que são: S. Lourenço de Arranho,
com 1 .443 habitantes; S. Miguel das Cardosas, com 733; e Santiago dos Velhos, com i .o52.
O logar de Arranho, sede da parochia, está situado em terreno elevado e desco-
berto, e dista da cabeça do concelho 7 kilometros para sudoeste.
Comprehendc esta freguezia mais 17 logares, alguns dos quaes com nomes curiosos,
como Outeiro das Doidas, Adorarcos, Camondes; vários casaes, sendo um o das Man-
cebas, e 3 quintas— Arção, Alcobella e Paço, esta ultima de Joaquim Ferreira da
Encarnação.
Ha uma escola parochial, mixta.
A freguezia das Cardosas tem a sua sede sobre rochas altas.
E' sitio muito lavado dos ventos. Gosa de purissimos ares.
Alem do logar principal, que dista da Arruda 4 kilometros para sueste, a freguezia
comprehende mais 10 logares -um d'elles chama-se— Não Ha— , vários casaes, e as quin-
tas do Outeiro, Palmeira, Matto Sobral e Sardinha.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
Ha uma escola parochial, tnixta.
A freguezia de Santiago dos Velhos fica 7 kilometros a sudoeste da Arruda.
Alem do logar que é sede da parochia, comprehende mais 6 logares e vários casaes-
Também aqui ha uma escola parochial mixta.
Os concelhos da Arruda dos Vinhos e de Sobral de Mont'Agraço, na sua quali-
dade de concelhos pequenos e vizinhos, teem mais ou menos estado sempre em compe-
tência no interesse de se arredondarem um á custa do outro.
Assim, extincto em i855 o concelho do Sobral, foi engrandecer o da Arruda.
Em 187Õ, quando Baptista publicava a sua Corographia Moderna, faziam parte do
concelho da Arruda, alem das íreguezias actuaes, as de Santo Quintino, Sapataria è
Sobral de Mont'Agraço, que hoje compõem o concelho d'este ultimo nome.
Actualmente, o da Arruda tem, comosabemos, 5. 5i5 habitantes, e o do Sobral 5. '/õr,
mas esta pequena differença arithmetica é compensada ao concelho da Arruda por ter
uma freguezia a mais que o do Sobral.
São, em todo o caso, dois pequenos concelhos, talhados á faca no Ministério do
Reino, para resolver divergências locaes e contentar a politica de campanário.
O concelho da Arruda pertence administrativamente ao districto de Lisboa, judi-
cialmente á comarca de ViUa Franca de Xira, e ecclesiasticamente ao Patriarchado.
W!l
í83— Pórtico da igreja matrií
VII
Mafra
o REAL EDIFÍCIO
E não fosse «o real edificiot, como aqui se diz em Mafra, a «villa
velha» passaria despercebida ao viajante, enterrada n'uma tristo-
nha «cova», d'onde parece ter-lhe vindo o nome: Mahfara, • ou
Mafara, como se lê em alguns documentos.
Quem hoje, na avilla nova», que se agrupou junto ao convento,
estando na Praça enfia o oihar pela rua da Boa Vista ou pela
rua Serpa Pinto, vê lá em baixo os restos da povoação antiga, que
já viria da época romana, e teve um castello de que nenhuns vestígios sobrevivem, a
não ser qualquer referencia escripta e uma recordação onomástica. -
Mas ainda está de pé a igreja outr'ora parochial, pequena e singela, com as suas
portas ogivaes, os seus azule)os mosarabes, as suas duas arcas tumulares, a qual
alguns dizem haver sido mesquita, — opinião impugnada por Estacio da Veiga.
E já que citei este nome, devo recommendar ao leitor, caso se interesse mais pelo
passado do que pelo presente, a leitura das Antif^uidades de Mafra (Lisboa, 1879), me-
moria em que aquelle minucioso archeologo estudou as épocas préhistorica, romana e
árabe dentro do concelho a que somos chegados.
A igreja teve no século xiii um parocho que depois subiu ás mais altas dignidades
ecclesiasticas, incluindo a máxima.
Foi Pedro Julião, natural de Lisboa, filho do medico Julião Rebello, que ascen-
dendo ao sólio poniificio tomou o nome de João xxi.
Junto e fronteiro á igreja ficava o paço —relativamente moderno — do marquez
' Frei João de Sousa, Vestígios da língua arábica.
2 Refiro-me á rua chamada de Traj -ao- Castello, que atravessava da rua do Meio para a rua do
Paço do Marquez.
ç,2 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
de Ponte do Lima. Tão junto que, segundo se diz, de uma das janellas costumava o
fidalgo ouvir missa.
Lord jBeckford visitou no século xviii este palácio do então visconde de Ponte do
Lima, e a quinta. È da quinta que fala, qualificandoa de magnifica, no gosto ita-
liano; refere-se ás suas abundantes fontes, e a uma extensissima avenida de pinheiros.
Nada d'isto existe já.
Quanto ao palácio, vou dizer o estado em que o encontrei no estio de 1899, quan-
do passei um mez em Mafra :
fAchando a porta aberta, entrei. Percorri todas as casas; estive no quarto do
marquez, que tinha alcova e fogão. O rodapé de azulejo está menos mal conservado
ainda. Passei á capella, onde encontrei um retábulo em barro, que seria fácil restau-
rar, e alguns santos mutilados, apeados no chão. Depois, pensando na decadência das
famílias illustres, metti caminho abaixo, tomando gosto á solidão do sitio.» '
Actualmente pertence este arruinado palácio ao alquilador Gato.
Aqui está o que foi e o que é a «villa velha», que Sancho I doou ao bispo de Silves
D. Nicolau, e jaz enterrada lá em baixo n'uma cova.
Quem se aproximar d'ella, descendo pela rua da Boa Vista para voltar pela rua
Serpa Pinto, ou vice-versa, terá feito a volta dos tristes, como aqui se diz, tão melan-
cólico e solitário é o sitio d'essa antiga povoação quasi totalmente abandonada.
A «villa nova» surgiu como consequência do convento-palacio fundado por D. João V
no Alto da Vela, onde provavelmente houve outr'ora alguma atalaya que lhe legou o nome.
De um lado está o «real edifício» com os muros da sua ampla Tapada, e do outro
a linha dos prédios que á sombra d'elle se foram construindo.
Uma explanada de honra '-^ acompanha toda a frontaria do monumento, e em
frente da igreja, que o divide symetricamente em duas partes iguaes, riscou se uma
Praça, moderna e modesta, com seu contorno de casas, — da qual partem para a «villa
velha» as duas ruas que já nomeamos.
A Mafra actual é isto, uma ruaestrada (estrada de Lisboa a Torres) e uma Praça.
D'esta estrada sai em certa altura um ramal quí leva á Ericeira.
Pode dizer-se com inteira verdade que a «villa nova» é o convento-palacio e só elle
— mole gigantesca, enorme, suffocante, que parece opprimir nos o peito quando olha-
mos para ella, levantando a cabeça.
Lembram se da boa phrase de Herculano? «Mafra é uma semsaboria de már-
more.»
Pois não é outra coisa.
Na presença d'este colosso dominante e absorvente, nenhum proprietário se atre-
veu a fazer a t iste figura de edificar um prédio pretencioso.
Pelo que resulta que todas as casas de Mafra, ainda as melhores, nada teem de
notável, e todas ellas parecem humildes.
Confesso francamente que, tendo transitado muitas vezes por esta villa e permane-
cido aqui, de uma vez, trinta dias consecutivos, nunca me pude familiarisar com o aspe-
cto grandioso, mas esmagador, do «real edificio»— Kscurial portuguez — monumentalmente
monótono e pesadão, cheio de sombra e frieza; que nunca o pude supportar nas linhas
do seu vasto conjunto, nem mesmo quando o carrilhão repica festivamente e lança do
alto alguma onda de vida sobre esta mansa e soporifera villa de Mafra.
' Impressões compiladas no livro Sem passar a fronieira.
' Cbama-sc Largo do real edificio.
A EXTREMADLRA PORTUGUEZA
04 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Quem desconhecer a historia da fundação do convento não perceberá a razão
por que o dissipador D. João V escolheria este sitio, a que faha largueza de paizagem
e horizonte.
Logo veremos como isso foi.
Por agora digamos que a actual viila de Mafra seria qiiasi morta, apesar dos mui-
tos íourisles nacionaes e estrangeiros que por amor do «real edificio» a visitam, se não
estivesse estabelecida em parte d'elle a Escola Pratica de Infantaria, como já em tempo
estivera o Real Collegio Militar.
Ao frade e ao donato succedeu o official e o soldado.
Mas nem todos os frades gostavam de estar em Mafra.
A este respeito conta-se uma anecdota do tempo d'elles.
Quem então recebia a correspondência postal eram umas senhoras, a cuja casa os
destinatários iam procurai a.
Tinha acabado de chegar um frade novo, que foi ver se haveria carta para elle.
— Então, snr. frei José, perguntou uma das senhoras, que tal lhe parece a nossa
villa?
— Minha senhora, respondeu elle, sempre é uma terra que principia por Ma.
A resposta não agradou e o frade recebeu em troca este epigramma :
— Qual! O peor que elia tem é acabar em Fra.
Todos gostam da sua terra, ainda que seja feia. Mas sem os frades, Mafra nunca
teria passado de ser a «villa velha» enterrada n'uma baixa, como no fundo de um poço.
A Escola Pratica de Infantaria está para o «real edificio» na proporção de uma sar-
dinha para a guela de uma balea. Cabe na cova de um dente. As repartições, as ca-
sernas e as casas dos officiaes ficam n'urna algibeira do convento e, diga-se a verdade,
estão bem installadas.
Os officiaes oriundos do norte do paiz, quando aqui chegam para fazer tirocínio,
sentem cahir-lhes a alma aos pés. A maior parte d'elles, se não receassem deshonrar
Marte, chorariam de nostalgia.
E eu, quando alguns me fizeram essa confidencia, senti vontade de chorar com elles.
Os toques de clarim, o transito de soldados e a convivência com os officiaes dão
alguma apparencia de vida a Mafra, — mas só apparencia.
O resto é o pequeno commercio local e a passagem de carroças saloias.
Eu, quando aqui me demorei mais, ia depois de almoço ler para o Cerco, que é
um terreno ajardinado e umbroso, na antiga quinta dos frades; depois de jantar conver-
sava com alguns officiaes na Casa Havave\a do sr. Taveira Pinto-, e ás dez horas da
noite recolhia a casa sentindo ainda na escuridão o peso do «real edificio» sobre mim.
Quando El-Rei vem caçar a Mafra, então muda um pouco de figura a vida da villa.
O carrilhão repica, e a Real Philarmonica Mafrense ou a Real Fanfarra toca durante o
jantar de sua magestade. E' um alegrão para a terra.
Fora d'isto, apenas ha algum espectáculo n'um theatrinho do convento, a passagem
do ci'io da Prata Grande, no verão os pic-uics que vem fazer na Tapada a colónia bal-
near da Ericeira; e duas vezes por anno, no 3." domingo de julho e a 3o de novembro,
feira de dois e três dias.
A freguezia da villa— orago Santo André— é populosa, conta 4.79.] habitantes de
ambos os sexos.
Cabeça de concelho e de uma comarca de 2." classe, a villa inclue ni sua popula-
ção o respectivo pessoal administrativo e judiciário, slem do elemento militar. Mas a
maior parte dos habitantes é saloia, improgressiva, sem embargo de ser este um dos con-
celhos da Extremadura melhor dotados na sua sede com escolas do instrucção primaria.
Ha uma, —Conde de Ferreira, —na Praça; ha duas particulares; c ha no convento
A EXTREMADUKA PORTUGUEZA 9^
a Escola Real, fundada por o Senhor D. Pedro V e por elie pessoalmente inaugurada
no dia 9 de dezembro de i855.
O illustrado monarcha, logo no principio do seu reinado, quiz fazer sentir á nação
que os palácios sumptuosos deviam, abrigar as escolas, porque os ricos devem proteger
os pobres.
Assim procedeu no palácio de Mafra, e um anno depois em Lisboa junto ao das
Necessidades.
Creio bem que D. Pedro V sentiu pejo de ver inútil este soberbo casarão de Ma-
fra, que tanto dinheiro custara, e que para nada servia já.
Metteu-Ihe dentro uma escola, escolheu professores, mandou imprimir compêndios
á sua custa, distribuia prémios aos melhores alumnos e até lhes dava fatos completos.
ElRei D. Luiz continuou a proteger a escola.
Não obstante, o saloio, faltando lhe o estimulo do premio pecuniário em que D, Pe-
dro V tinha pensado ', prefere a agricultura á instrucção, o que elle quer na familia
são braços que o ajudem, não olhos que lhe leiam gazetas ou livros.
Periódicos hebdomadarios tem aqui havido alguns, que n'um dado momento servi-
ram illusões patrióticas ou paixões politicas, mas que em breve desappareceram n'um
meio adverso á lettra redonda.
O Remanso durou de março a maio de 1857; a Ga\eta do cjmpo viveu de janeiro
de 1866 a junho de 1867; em 1887 começou o Jornal dé Mafra e ainda no mesmo anno
o Mafren',e que duraram um pouco mais; era 1890 appareceu o Echo de Mafra\ em
1893, o Conselho de Mafra, que era redigido pelo dr. Alves Crespo; em 1896 sahiu o
i." numero da Folha de Mafra, que reproduzimos em fac simile; em 1898 fundou-se o
Correio de Mafra, mas já lá vão todos.
Agora publica-se o Clamor de Mafra, jornal livre e independente, que vai em
pouco mais de ^o números, e de que é proprietário e redactor principal o advogado
Agostinho Albano d?. Costa Carvalho.
Vamos á fundação do convento-palacio, de que tanto se tem escripto — até em
verso.
O auctor da Gaticanea, poema em decassylabos pareados, cuja acção é uma tre-
menda batalha imaginaria entre cães e gatos no Largo do real edifício, achou meio de
nos dar uma rápida impressão da grandeza do monumento n'estes e outros versos :
Elle tem quatro frentes, ou fachadas,
Com janellas tão grandes, e rasgadas,
E feitas com tal arte, que por bellas
Hum pórtico parece qualquer delias.
Em duas ordens postas em redondo
Tão bella perspectiva vão compondo,
Que na primeira vista o pasmo ordena.
Que nem as louve a voz, nem pinte a penna.
Tal comprimento tem qualquer dos lados,
Que os grandes Ganzarrões mais alentados.
Vistos d'tiu n'outro extremo mais, ou menos,
Cachorrinhos parecem mui pequenos -.
' De seis a oito libras, se os alumnos eram pobres.
' O auctor, que pretendeu seguir o exemplo da Batrachomyomachia, mal attribuida por alguus a
Homero, chamava-se João Jorge de Carvalho, e viveu no século xviii. Da sua biographia nada pôde apu-
rar Innocencio; e eu não fui mais feliz.
96 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
El-Rei D. João V havia tres annos que desposara D. Maria Anna de Áustria, e não
tinha ainda um filho legitimo para lhe succeder no throno.
Isto preoccupava o algum tanto, pela razão dynastica, e dava pesar á rainha.
Certo dia um leigo arrábido, com fama de milagreiro, que ia ao Paço da Ribeira
pedir esmola, foi ouvido por um dignitário da corte sobre este caso e instado para inter-
ceder pela sua resolução junto de Santo António.
O leigo respondeu que a rainha teria filhos se fizesse uma casa ao Santo — isto é,
um convento. Aproveitou-se logo o conselho, e marcou-se terreno no sitio onde hoje
está a basílica da Estrella era Lisboa.
FOLHA DE MAFRA
■ IM l'l' i|.|' I • \' II' ■ I M IH'Jil<l') !• A'.l-Í<ii|A
I..IW. ,1.1 1(.-.,1 h.lill.^l.l ); m .l.,i. AnlonW) .1... n. :■
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ruijiA íiKMM'ii\ ;. i
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í&t — Pac-simlle d> Folia de M.ifra , „ . _ J
Mas o visconde de Villa Nova da Cerveira — cuja familia reuniu depois o marque-
zado de Ponte do Lima— que tinha em Mafra a sua quinta, habilmente interveio no sen-
tido de se edificar o convento n'esta villa.
Isto já elle o havia tentado, mas levantaram-selhe ditficuldades; agora a occasião
era propicia e o visconde não a perdeu. Entendeu-se com os frades arrábidos, e o leigo
acabou por indicar o sitio de Mafra '.
Fez-se o milagre. No fim do anno de 171 1 nasceu a infanta D. Maria Barbara.
Os maliciosos da corte diziam á bocca pequena que o milagre não o fizera Santo
António ou o leigo, mas siin este dito do duque de Cadaval a D. João V: tque. ..
que.. . que trabalhasse a rainha para ter filho, — que era obrigada a isso; e de contra-
rio lhe podia succeder mal.»
Um franciscano, desdenhando a efficacia do arrábido, fez um calenihour na presença
do rei dizendo: Bastava, meu senhor, um padre nosso com boa devoção *.
• Sigo, muito pela rama, a versão já por mim adoptada no livro As amantes de D. João V.
' Tradição oral de .Mafra.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
O caso é que a rainha aqueceu de vez e D. João V também.
Vieram mais quatro filhos, sendo um d'elles D. José, e o rei entendeu que já era
tempo de cumprir a promessa.
Encommendou o risco do convento ao architecto allemão João Frederico Ludewig *
que tinha sido educado em Roma, e estava residindo em Lisboa -; e ordenou as neces-
sárias expropriações que importaram em 358oooo réis.
Esta cifra mostra que a intenção do rei era modesta a principio; mas não tardou
que o génio perdulário d'esse monarcha o levasse a ampliar as primitivas dimensões do
projecto, pelo que foi preciso fazer novas expropriaçójs, no valo- de i2:842-:fooo réis.
Conta-se que era então proprietária do Casal do Abbade (de que ainda hoje se vêem
2S5 — A Pi-aia do Peixe na Ericeira
as ruinas n'uma collina da segunda Tapada) uma velha que não queria deixal-o expro-
priar.
D. João V foi pessoalmente ao Casal para demover a velha a entrar em ajuste.
Ella teimou na sua. O rei procurou convencêl-a dizendo :
— Vende-me o casal, que eu te darei um barrete cheio de peças.
A velha calou-se durante alguns momentos, e por fim respondeu :
— Não me queira vossa magestade tomar o Casal, que eu sou capaz de lhe dar. . .
dois barretes cheios de peças '.
A primeira pedra do edificio foi lançada a 17 de novembro de 1717.
Gastaram-se i3 annos na construcção da igreja, á qual faltava ainda o zimbório
quando foi sagrada a 22 de outubro 1730, anniversario natalício do rei ''. Mas o convento,
com 3oo cellas, estava bem mais incompleto; só em 1735 se concluiram as obras da
fachada.
1 Ou Ludovici, como elle assignava depois que casou com uma dama romana.
- Sobre este architecto ve]n-se—Ap->ntjmeiitos íicera da bio^'raphia do notável ar.hiiectn da basi-
Uca real, palácio e convento da villa de Mafra pelo visconde de Sanches de Baêna (Lisboa, 1881).
' Tradição oral de Mafra.
* Sobre a solemnidade da sagração escreveu uma memoria Frei João de S. José do Prado. Thomaz
Pinto Brandão compoz uma silva sobre este assumpto; e também deixou uma descripção de Mafra
voi,. 11 i3
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Parece que todo o edificio custara perto de 34 milhões de cruzados. Termo mé-
dio, trabalhavam diariamente nas obras 20.000 operários. Para cortar a montanha do
sul gastavam-se cada dia 400 kilogrammas de pólvora. A Casa Real empregava mais de
1.200 bois em conducções, e os proprietários eram obrigados a prestar auxilio em gado
ou dinheiro. Havia um movimento constante de mil carros. As madeiras vinham do
Brazil. Os mármores vinham de Pêro Pinheiro, e alguns foram puxaios por ?o, 40 até
100 juntas de bois. Carregadores de pau e corda nãi havia menos de 420. As arreca-
dações, camaratas do pessoal, enfermarias, cocheiras e curraes occupavara barracões
enormes, a que se dava o nome de «Ilha da Madeira», tão vastos eram. Um força mi-
litar de 7.000 homens de cavallana e infantaria exercia a policia desta grande cidade
de occasião.
Que loucura ! que loucura ' lord B3'ron fulminou-a violentamente no ChilJe Harold
comparando Mafra ao esplendor com que a prostituta de Babylonia fazia esquecer a sua
vida de orgia.
Murphy aprecia com extrema severidade o plano do architecto Ludewig. Licknowsky
suavisa esta opinião, pondo de parte a questão technica, e attendendo apenas á grandeza
pomposa do edificio. Beckford desbarreta se deante da igreja — elle, um opulento lord
inglez dotiblc de artista — confessando que nunca viu tal variedade de bellos mármores,
e que o pórtico lhe fez lembrar o de S. Pedro em Roma.
Ora a igreja é effectivamente o que ha de melhor em todo o edificio de Mafra.
A começar no pórtico onde 14 estatuas de mármore de Càrrara — eu adoro es-
pecialmente a de S. Bruno — occupam outros tantos nichos, o visitante reconhece que
está dentro de um templo verdadeiramente notável pela sumptuosidade sem exageros, e
pela belleza da unidade architectonica, a um tempo rica e simples, como Raczynsk
notou.
As cores variegadas dos mármores, de origem nacional— com excepção do que fo
empregado nas estatuas; as pilastras caneladas, os baixo-relevos, os florões, os retábu
los, os candelabros, a abobada, o pavimento de xadrez, os órgãos e, sobretudo, o zim
borio, que viajantes illustres teem classificado um dos melhores da Europa, recommen
dam a igreja de Jlafra á admiração de nacionaes e esirangeiros.
Na sacristia, onde a variedade dos mármores continua, e onde o estilo é elegante
mas sóbrio, mostram nos as ricas alfaias— paramentos e frontaes — bordados a retroz;os
castiçaes, as lanternas, os thuribulos e navetas—excellent. mente trabalhados em bron e.
Diz-se ter confessado U. João V que as alfaias lhe custaram tanto dinheiro como
o edificio todo.
O carri hão compõe se de 114 sinos, que foram fabricados em Antuérpia.
Também se diz que tendo o el-rei encommendado, lhe observaram que não custa-
ria menos de 400:0007000 reis, ao que elle respondeu de prompto : tNão julguei que
fosse tão barato; quero dois.»
No convento ninguém deixa de ver a magestosa sala dos actos, a casa do capitulo
desenhada em ellip-^e, o rtfeitorio, a cozinha, a enorme livraria, numa palavra, todas as
vastas dependências d'este vastissimo empório monástico.
Sentese a gente cansada, estonteada, m^ida, depois de duas horas de visita ao real
edificio, e chega a ter saudades da sua modesta casa ou— até I— do seu pequeno quarto
de holel.
Da varanda do zimbório avista-se ao sul toda a serra de Cintra, o castello da Pena,
e ao occidente, n'um fundo de campinas, o oceano, que fica a 6 kilometros de distancia,
não obstante Alexandre Dumas haver tido a phantasia de conceder a Mafra um porto
de mar.
O palácio real desdobra a sua extensa linha de salas cm toda a frente do edificio
A ESTREMADURA PORTUGUEZA og
na extensão de 220 metros. Uma infindável galeria ou corredor— onde o infante D. Mi-
guei se divertia largando touros ' emquanto D. João VI acompanhava os frades no can-
tochão— tem por limites os torreões lateraes, que são aposentos d'el-rei, o do norte, da
rainha, o do sul.
Nos terraços, que correm sobre o palácio e o convento, costumam os monarcas
atirar aos pombos, que ali fazem creação.
O signal de alarma é dado por um chocalho, que vibra dentro dos pombaes e põe
em fuga os pombos alvoroçados.
Contíguo ao edifício fica o jardim, com um lago e o antigo jogo da bola : era recinto
da cerca monástica e por isso se chama ainda O Cerco.
Depois segue-se a Tapada Real escalonada em três divisões, toda murada, com 20
kilometros de circuito, descendo sobre o Gradii; —muito abundante de volataria
e de caça grossa — o veado e o porco montez.
No meio da Tapada ha um palacete, chamado O Celebrédo^ que serve para des-
canso e refeições.
Fica no fundo de um valie e é banhado por uma estreita ribeira.
El Rei D. Carlos costuma ir de carruagem até ao Cdebrêdo, sitio magnifico para
espera.
Sua magestade apease ahi. Os ciçadores. de antemão dispDstos em circulo, vem
apertando o cordão, batendo a caça, logo que El-Rei chega. O senhor D. Carlos espera
nos azerves a passagem dos veados. Não atira ás gamas, e não gosta que os outros ca-
çadores o façam.
Quem percorre a Tapada em carruagem, o que é permittido a todos os visitantes,
pôde por seus próprios olhos certificar-se da grande copia de veados que ali ha; mui-
tas vezes acontece irem correndo em ar de folia adeante dos trens ou saltarem de um
para outro lado da carreteira, por susto ou folgança. Fora da Tapada, quem desce em
carruagem pela linda estrada que de Mafra conduz ao Gradii, vê dezenas de cervcs
empoleirados nos rochedos, como a espreitar curiosos o que se passa extra-muros.
Visto o real edificio está vista Mafra, e para vêr bem o real edifício aconselho como
vademecum a interessante memoria * do meu fallecido amigo Joaquim da Conceição Go-
mes, reimpressa em successivas edições.
Quero ainda registar duas notas.
Primeira, que o titulo de conde de Mafra foi concedido em i836 a D. Lourenço
José Xavier de Lima, filho do i.° marquez de Ponte do Lima; e em 1870 a Francisco
de Mello Breyner, gentil-homem da camará de El Rei D. Luiz e b.° filho do 1." conde
de Ficalho.
Segunda : que no rés do chão do real edificio, entre a igreja e o torreão
esquerdo, habitou algum tempo, por concessão da Casa Real, o notável pintor Vieira
Lusitano, e que ali falleceu, a 22 de agosto de 1774, a sua beila e adorada mulher ^.
Finalmente, uma indicação útil : para vir a Mafra pela linha de oeste, desembarca-
se no apeadeiro que dista da villa 9 kilometros e tem o nome d'ella. Ha diligencias a
200 réis cada logar. Antes do apeadeiro desembarcava-se na estação da Malveira.
Quem estiver em Cintra, ou quizer vêr primeiro Cintra, facilmente encontra ali um
trem para Mafra.
Chegando aqui, pode escolher um de três koteis: o do Moreira, o do António
Duarte, e um novo, que se estabeleceu recentemente.
' A ultima corte do absolutismo em Portugal, pag. 277.
2 u monuT.ento de Mafra, descripção minuciosa d'este edificio.
3 Amores de Viiira Lusitano (Lisboa, 1901) por Júlio de Castilho, pag 23o.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A ERICEIRA
Agora a caminho da Ericeira, que das 14 freguezias. de que se compõe o concelho,
é, depois da villa de Mafra, a mais conhecida — graças á sua linda praia de banhos.
Como que precisa a gente alijar o peso do «real edifício» e refrescar o espirito, can-
sado de tanta grandeza, na aragem fresca do mar.
Sabe bem, pois, tomar um trem oú a diligencia, e fazer este percurso de 19 kilo-
metros por um ramal de estrada que segue para noroeste cortando pinhaes e se anima
de vez em quando com alguns logarejos, taes como a Sobreira e o Seixal, d'onde
saltam creanças em camisa, pedindo— cinco reis 'mor Deus.
Aqui vê-se uma eira, alem uma olaria— em todo
o concelho fabrica se muita louça de barro ' ; ali
um telhado que fumega, além um moinho-de-vento
que trabalha.
O resto é pinheiral, e de certa altura por deante
o largo e bello espectáculo do mar, que se aproxima
cada vez mais, sem que ainda se veja a povoação.
Finalmente, o trem desce por uma calçada, em
cujo topo a gente se despede dos moinhos-de-vento,
e entramos na Ericeira, parando justamente no cora-
ção da villa — o antigo largo do Jogo da Bola, hoje
Praça da Princeza D. Amélia.
A impressão é boa. Casas de regular apparen-
cia; algumas até com tal ou qual pretensão na platiban-
da. Lojas de commercio. Bancos e arvores. Conver-
gência de varias ruas, que da Praça irradiam tanto
para o bairro do sul como para o do norte.
Esta Praça é, digtmolo assim, o «peixe frito»
da Ericeira; o ponto de reunião ao anoitecer. E, quan-
do ha musica - ou festejos, o seu logar é este.
Eu gosto muito da Ericeira, achoa uma linda praia, comquaton ella não satisfaça
os mais exigentes. E assim como eu tenho razão, elles não deixam de a ter também.
Faita-lhe um bom club, falta lhe um theatro foflrivel, porque o theatro e o club são
bastante maus para serem apenas supportaveis. Faltamlhe bons hotéis, apesar de ha-
ver dois. Falta-lhe variedade de passeios. Falta-lhe, mais que tudo, essa efficaz
iniciativa, que não é politica nem eleitoral, mas apenas patriótica, e é essa a que vale,
porque jamais sotfre intermittencias nem amuos.
Mas, a paizagem maritima é encantadora, e a vida calma e singela.
Assim como ha dois bairros ha duas praias de banhos.
A do sul é a elegante, se bem que burgueza ; e a mais concorrida. Ficamlhe á
ilharga as Fumas, que são poiso vespertino dos oceanóphilos.
A do norte é a popular; a mais pacata e modesta.
-Entrada da Ericeira, indo por Mafra
' Barro branco e vermelho. E' a chamada «louça de Mafra»
' \ da Fanfarra Ericci^ense.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
N'um ponto central entre estes dois extremos da villa erguem-se alterosas ribas —
arribas como aqui se diz -tendo a um lado a ermida de Santo António; ao sopé d'ellas,
lá em baixo, cava-se o pequeno porto dos pescadores, pequeno e difficil, onde os catraios
— focinhadas segundo a expressão local — vêem varar impetuosamente na areia.
Chamase a este porto Ribeira ou Praia do peixe, por ser effectivamente onde o
peixe é descarregado e lotado — operações a que o espectador assiste de cima sem
ser obrigado a qualquer incommoda aproximação com as pescadas e os robalos.
No bairro sul, os passeios habituaes, de tabeliã, são as Furnas e a estrada de Cin-
tra; no bairro norte a ermida de S. Sebastião.
E a estes passeios se limitam normalmente as tardes da Ericeira, exceptuando os
dias consagrados a pic-mcs na Tapada de Mafra e a burricadas á Foz '.
Eu gostava da Ericeira pela Ericeira e por isso, depois de passar a manhã traba-
lhando, deixava-me ficsr de tarde n'um banco do Jogo da Bola, ao ar fresco, a conver-
sar com os outros banhistas inamomiveis.
A rua commercial por excellencia é a do Correio, onde entre outras lojas avulta a
do fallecido António Bento -o Grandella da Ericeira.
Ao fundo d'esta rua fica a igreja parochial, que foi restaurada no século xviii,
e cujo orago é S. Pedro.
De todas as casas que formam a povoação trezentas sío alugadas aos banhistas,
que não precisam trazer mobília, mas apenas talheres e roupas brancas.
Tal é a villa da Ericeira considerada como praia de banhos na sua physionomi^
moderna.
Melhoramentos materiaes, poucos, a não ser a Avenida, o mirante contíguo á nas-
cente das aguas medicinaes de Santa Manha, o ajardinamento de uma nesga de terra
no Forte desmantelado, e a conclusão da estrada de Cintra, que esteve muitos annos
parada.
Mas onde se construiu um club ? um hotel ? um theatro ? para substituir o que n'este
género existe— e não é bom.
Onde ha um estabelecimento de banhos quentes, salgados e doces ?
As pittorescas ribas desmoronam-se com os temporaes, e a questão de segural-as
tem sido sempre uma bandeirola eleitoral. Faz se hoje alguma coisa, que o inverno
desfaz. N'ibto se anda ha muitos annos.
A Avenida — pomposa antonomásia — é a antiga praça do Conde da Ericeira, onde
a família d'este titulo, por tantos motivos illustre, tinha uma residência.
' A três kilometros da Ericeira. E' a foz do rio da Senhora do O' do Porto, nome aqui dado á ri-
beira de Cheleiros.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O leitor sabe de certo quanto esta boa raça d» Menezes * se assignalou nas lettras
— homens e senhoras— especialmente o 3." conde, auctor da Historia de Portugal Res
taurado.
Sobre as ruinas da residência do Conde da Ericeira na praça do seu nome, es-
crevi em 1889:
«N'esta praça, dentro de um muro fechado, conservam-se ainda de pé as ruinas do
paço dos condes da Ericeira, as paredes de uma casa, nem grandiosa nem grande, com
duas janellas por fachada. O Occidente, no seu numero de i5 de outubro de 1878, re-
produziu em gravura as ruinas deste palácio, mas, no decurso de onze annos, o aspe-
cto das ruinas modificou-se pela maior devastação do tempo. Desappareceu toda a cal
da parede e, pelas janellas despidas de caixilhos, vê se o ceu azul —este bello ceu azul
da beira mar.
«Eu supponho, com o auctor do Portugal antigo e moderno, que o paço do conde
da Ericeira não chegou nunca a concluir-se. Mas se chegou, o que resta de pé é apenas
um dos corpos do edificio. Fidalgo tão qualificado como foi D. Luiz de Menezes, gene-
ral, deputado da junta dos três estados e vedor da fazenda, não podia accommodar,
n'aquelle pequeno edificio, que lhe sobreviveu, a sua família e criadagem.»
Já ouvi dizer na Ericeira a pessoa illustrada que D. Luiz de Menezes escrevei a ali o
•Portugal restaurado.
Não é provável que o fizesse longe da sua bibliotheca de Lisboa.
Hoje creio que este edificio seria apenas uma dependência balnear do solar provin-
cial sito na freguezia de Santo Izidoro.
A praça do Conde da Ericeira — Avenida como os ericeirenses dizem vaidosamente
— não tem horizonte, nem melhor panno para mangas, e comtudo já aqui se realisou a
mais animada batalha de flores que tenho visto em Lisboa ou na provincia.
A villa tende a crescer moderadamente para o lado de Cintra, onde se vão construin-
do alguTiS prédios novos, incluindo uma fabrica de moagem, mas o que falta, repito, é
iniciativa patriótica para melhoramentos públicos.
Tendo perdido a sua autonomia municipal, porque a Ericeira foi cabeça de conce-
lho até iò55; tendo visto desapparecer as gerações nobres que lhe deram prestigio e
evidencia; a Ericeira vive hoje exclusivamente da concorrência de banhistas que são, na
definição memorável do fallecido ericeirense Jorge Fialho: «Um mal necessário »
São intrusos, é certo; mas deixam bom dinheiro na terra, e é d'isso que ella vive.
Entre as praias da Extremadura, a Ericeira tem sido uma das mais celebradas na
litteratura.
Nicolau Tolentino disse n'uma epistola ao marquez de Ponte do Lima:
Conira o mal que me tem feito
Raivosos caniculares
Me offrece a fresca Ericeira
Seus claros, sadios mares
Mendes Leal aqui se inspirou para compor a bella poesia Maré ma^num.
Depois d'esies, escreveram sobre a Ericeira Júlio César Machado e Palmeirim; Pi-
nheiro Chagas aqui localisou a acção do seu romance Tristezas d beira-mar; ultima-
mente o sr. Gabriel Pereira publicou em opúsculo uma rápida monographia d'esta villa.
Elle não me cita, mas citoo eu a elle. Tudo se passa entre amigos, sans rancune.
' O titulo de Conde da Ericeira toi concedido a D. Diogo de Mmezes em 1C22
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
io3
Pelo que me respeita, inseri no livro Sem passar a fronteira uma pa-te da longa se-
rie de folhetins escriptos aqui^ interessei a Ericeira no entrecho da novella O Segredo
de uma alma; e creio ter sido o primeiro que, toTiando por base um bello trabalho his-
tórico de Martins Dantas, romanceei a vida de um d'es'es famosos impostores que se
inculcavam D. Sebastião. — Refirome ao «rei da Ericeira», cuja corte de contrabando
pude, não sem alguma pertinácia, surprehender ainda nos seus últimos vestígios tradi-
cionaes.
Um anno deime a revolver a papelada da Misericórdia, e transcrevi a acta da ses-
são preparatória realisada pelos fundadores em 2^ de dezenbro de 1679.
Folgo de recordar, agora que se desenterrou o pelourinho— que ha dezesete annos
tornei publica a noticia do sitio em que elle estava barbaramente soterrado.
O nome de Ericeira, segundo o Padre Carvalho, derivou da abundância de ouriços
A capella de Sanla Mjrlh
(antigamenle eiriços) do mar, espécie zoológica {echinus escidenlm) que ainda é nume-
rosa nos rochedos da praia quando as aguas baixam.
Mas ouriços do mar em todas as praias do nosso litoral os ha em magna copia; e
assim não deixa de estranharse que dessem a esta praia um nome que não representa
uma especialidade d'ella. Comtudo, são vulgares os casos idênticos com relação aos ono-
másticos locativos tirados de espécies botânicas. Relativamente a espécies zoológicas,
posto sejam menos frequentes os exemplos, mais alguns ha — como Sapos, Sardão^ Sar-
dinha, etc.
Quanto á Ericeira, a tradição c confirmada pelo antigo brazão municipal : um ou-
riço no meio do escudo.
Primitiva povoação de pescadores, é do mar que a Ericeira tem vivido e continua a
viver. Hontem a sua industria era a pesca, a que se encontram, referencias no foral dado
em 1229 pelo quarto Mestre da ordem de Aviz. Hoje, se nos permittem a palavra,
vive da balneação.
A agricultura, em toda esta freguezia, especialmente nos arredores da villa, é mes-
quinha e deficiente. Só conheço aqui duas quintas : a do morgado dos Leitões, que fica
próxima; e a dos Chãos, solitária mas afidalgada, a cerca de duas léguas de distancia '.
Camillo, que não conhecia de perto a Ericeira, localisou aqui uma quinta no Livro de
consolação.
' Na freguezia de Santo Izidoro.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Faz se porem uma feira de fructas a 25 de julho, e a ella concorrem as oatras fre-
guezias do concelho.
Qaanto a costumes populares, poucos ha a notar : os pescadores, como aliás acon-
tece em outras povoações marítimas, repintam e embandeiram os barcos no dia de S.
Pedro; no dia de finados, as creanças fazem o peditório do Pão por Deus;—Q, o que é
mais typico, um pregoeiro clama os annuncios e noticias que lhe incumbem.
Exerce este officio, desde longos annos, o tio Vtctorino ', que rege os seus pregões
com a mão esquerda levantada e o dedo indicador espetado no ar.
O povo da Ericeira, como ordinariamente o das povoações marítimas, é mais ale-
gre que em geral o do interior da Extremadura. As raparigas cantam na Fonte do Cabo^
e ha um núcleo de cancioneiro local ou toponymico; por exemplo:
S. Pedro da Ericeira
E' a minha freguezia.
Não troco o meu S. Pedro
Por S. Lucas da Freiria 2.
A freguezia tem 2.169 habitantes e comprehende mais os logares de Fonte Boa dos
Nabos, Outeirinho, Seixal e Casa Nova.
Hoje vem muita gente á Ericeira por Cintra. A distancia é de 20 kilometros. En-
tre as duas villas fazem-^e três carreiras diárias, a Soo reis cada logar.
Na carreira de Mafra á Ericeira poupa-se apenas - um kilometro e um tostão.
m
AS OUXRAS FREGUEZIAS DO CONCELHO
Falando das restantes freguezias do concelho de Mafra, seguiremos a ordem alpha-
betica.
S. Miguel de Alcainça, 800 habitantes.
Comprehende vários logares, sendo um delles a Malveira, onde se faz mercado de
gado todas as quintas feiras e feira annual a ib de março.
N'outro logar, a Venda do Pinheiro, também ha uma feira no dia de Santo António-
A igreja parochial está no logar de Alcainça Grande, o qual se acha situado na en-
costa meridional de ura monte.
E' de uma só nave e muito antiga fseculo xii ou xiii), mas tem passado por diver-
sas restaurações que a descaracterisaram.
A palavra Alcainça parece significar ^ encontro das mulheres. Pena é que o sr.
Ascensão Valdez, que em i8q5 publicou uma interessante memoria sobre os logares de
Alcainça, Malveira e Carrasqueira, não investigasse a lenda do onomástico.
Ha uma escola.
Freguezia de S. Pedro da Azueira ou de S. Pedro dos Grilhões de Azucira — i.yqS
habitantes.
F(jÍ cabeça de concelho, extincto em i8?5.
Comprehende vários logares.
' Falleceu durante a impressa j d'este livro.
' Freguezia do concelho de Torres Vedras.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
io5
A igreja parochial fica em Azueira de Baixo, n'um valie.
Ha aqui uma industria local : a pyrotechnia.
Quintas desta freguezia : do Carrascal, do Arneiro, do Campo, do Pato, Amarel-
la, das Barras, Nova, do Castello, da Figueira e das Casas Novas.
A Azueira tem escola, pharmacia, uma Philarmonica Recreio Artistico, e feira
a I de novembro. Dista da villa de Mafra 12 kilometros.
Freguezia de Nossa Senhora da Conceição de Chileiros ou Cheleiros — 974 habitantes.
A tradição diz que no tempo dos mouros houve aqui grandes celleiros, d'onde teria
derivado o onomástico.
O logar de Cheleiros foi antigamente
villa e cabeça de concelho; está situado em
uma baixa, por onde corre o rio do seu
nome.
A freguezia comprehende outros lega-
res. Tem duas escolas para ambos os sexos.
Freguezia de Nossa Senhora da As-
sumpção de Enxara do Bispo — 2.164 habi-
tantes. A palavra enxara quer dizer — ma-
tagal, charneca.
A freguezia está situada na aba d'uma
pequena serra, pelo que antigamente se
chamava — da Serra da Enxara do Bispo.
Este ultimo genitivo veio-lhe de ter
sido outr'ora património dos bispos da
diocese de Lisboa.
Comprehende vários logares, sendo
um o de Enxara dos Cavalleiros, que foi
cabeça do concelho, ao qual a Enxara do
Bispo pertenceu.
Ao lado da porta da igreja parochial ha uma lapide, quasi illegivel, e que só vem
mencionada na Chorographia moderna de Baptista.
Quintas d'esta freguezia : do Casal Novo, da Princeza e do Coito.
Ha aqui muitos curtidores.
Escolas parochiaes : uma na sede da parochia e outra no logar de Villa Franca do
Rosário.
Freguezia de S. Domingos da Fanga da Fé, — 1.584 habitantes.
A igreja parochial está situada no logar de Lobagueira ou Encarnação; por isto
chamam também á freguezia — da Encarnação.
Alem d'este logar, a freguezia comprehende mais quatro.
Pertence ella ao concelho de Mafra desde 18 53; antes pertencia ao de Torres Vedras.
Tem escolas para ambos os sexos.
Freguezia de Santo Estevam das Gallés — 1.486 habitantes.
No século xviii fazia parte da freguezia de Santa Maria de Loures.
Comprehende vários logares e casaes. Tem uma escola.
Freguezia de S. Silvestre do Gradil— 848 habitantes.
A estrada que da villa de Mafra conduz ao Gradil desce torneando a Tapada Real.
Ao cabo de uns 10 kilometros talvez, na direcção de nordeste, surge-nos na baixa
o logar do Gradil, sede da parochia, com os seus prédios caiados e os seus arvoredos.
E' logar pittoresco, e concorrido não só por ficar próximo da estrada de Lisboa a
Torres, como também por ser convidativo para veranear.
voL. 11 14
28:)— As Famas da Ericeira
io6
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
290— Uma rua de pescadores na Ericeii
Tem algumas quintas : a de Camarate, a do Horto, a do Desembargador da (famí-
lia Moraes e Sousa) e a de Sant'Anna, que foi da actDZ Rosa Damasceno, uma das
mais encantadoras ingénuas do theatro portuguez, aqui fallecida ás 3 horas da manhã
do dia 5 de outubro de 1904. O funeral realisou-se em Lisboa no dia 7.
Na casa da quinta de Sant'Anna havia um theatrinho mandado fazer pela sua illus-
tre proprietária.
Parece que o logar do Gradil foi outr'ora villa. Tem duas escolas. Faz-se aqui uma
feira de gado suino a 3i de dezembro. A freguezia comprehende mais 6 logares.
Freguezia de Nossa Senhora da Conceição da Igreja Nova— 1.690 habitantes.
Comprehende vários logares, entre os
quaes o de Alcainça Pequena.
A principal industria é a de canteiro.
A freguezia, que dista da villa de Ma-
fra 5 kilometros, tem uma escola.
Freguezia de S. Miguel do Milharado
— 3.162 habitantes.
Depois da de Mafra é a freguezia mais
populosa do concelho.
Comprehende vários logares, sendo
um d'elles a Sobreira.
Ha aqui muitos cesteiros e uma fabri-
ca de moagem a vapor. Escola official,
uma. Teve outr'ora albergaria.
Freguezia do Reguengo da Carvoeira
— orpgo de Nossa Senhora do O' do Por-
to; população 736 habitantes. A igreja de Nossa Senhora do Porto assenta no valle de
Cheleiros, a pequena distancia da vertente septentrional. E' muito antiga, e dá nos a
impressão de haver sido mesquita. Parece que seria reconstruída em 1627, que é a úni-
ca data que n'ella se nos depara hoje.
Foi no alpendre e nos parapeitos do muro circumdante que os últimos guerrilheiros
de Matheus Alvares — o rei da Ericeira— st entrincheiraram no dia em que n'este valle
se feriu a batalha entre elles e as tropas do governo hespanhol. Ha uma escola official.
Freguezia de Santo Izidoro —1.758 habitantes.
Principaes industrias: louça vidrada e fornos de cal.
A capella-mór da igreja parochial é de architectura gothica, sendo moderno o resto
do templo.
Um dos muitos logares da freguezia chama-se Paço de Ilhas, nome que lhe veio
de ter havido aqui um paço, que seria o dos condes da Ericeira, e cujas ruínas, entre
ellas um pórtico em estilo manuelino, attestara grandeza fidalga.
Estacio da Veiga descreve estas ruinas nas Antiguidades de Mafra.
Segundo a tradição local, a próxima ribeira de Paço de Ilhas era outr'ora navega
vel, e o que é certo é que um paredão avariado parece que teria sido cães.
Ha uma escola official.
O concelho de Mafra, que faz parte do districto de Lisboa e do Patriarchado, com-
pleta-se com a freguezia do Sobral da Abelheira, orago Nossa Senhora da Boa Viagem,
população 97Õ almas. Esta freguezia é apenas notável por uma nascente de agua férrea
Tem escola.
População total do concelho— 25.286 habitantes.
VIII
Cintra
AS VILLAS DE CINTRA E COLLARES
ossuE Cintra uma fama europea.
E' o glorious Éden de Byron, quer dizer, o paraíso portuguez
que esmagou a desdenhosa soberba do poeta britannico.
Glorioso Éden lhe chamou : deu-nos o que não podia negar-nos.
Cintra, realmente, reúne um conjunto de circumstancias feli-
zes, que a tornam notável e bella. O seu recorte orographico, as
suas várzeas suaves, a abundância de aguas crystalinas, os largos
horizontes, os palácios magníficos, as quintas de recreio e até o contraste com a semi-
charneca do Cacem — concorrem para tornal-a uma região encantadora, a que bem cabe
o epitheto de gloriosa.
Não é que a belleza da situação e do panorama seja única em Portugal. A nature-
za magnificamente nos dotou com outras bellas regiões, tanto ao sul como ao norte, que
poderiam valer Cintras — se lhes não faltasse o apparato aristocrático dos chalets, dos
palácios, das quintas, do castello da Pena e, sobretudo, a vizinhança da capital.
A 23 kilometros de Lisboa, o que representa em caminho de ferro uma hora de via-
gem, Cintra é para os lisboetas a mais próxima e copada sombra que podem encontrar
no estio ; a mais fresca e pura agua para refrigerarem as entranhas queimadas pela escor-
rencia choca dos contadores ; a mais brilhante manifestação da vida elegante entre ju-
nho e setembro, depois de S. Carlos e antes de Cascaes.
Ha duas coisas que todo o lisboeta aque se prese» ambiciona: um inverno em S.
Carlos, um verão em Cintra. E' chie, é do tom.
Não quer isto dizer que elle admire as companhias de S. Carlos, ás vezes bem
pouco admiráveis; que já encontre novidade em Cintra ou que se não mace um
pouco no caminho.
io8
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Mas, no estio, o lisboeta morre por uma polaina branca e por um chapéo de palha,
e é precisa uma villegiature que justifique a toildíe.
Vai para Cintra, que é a estação da corte ^ mas desde que algumas famílias do
hig-life preferiram o Estoril, o nosso bom lisboeta, sempre por snobismo, vacilla entre
o Estoril e Cintra.
Ora a verdade é que nem tudo são rosas n'uma temporada de Cintra. Em primeiro
logar — uma hora em caminho de ferro, com pó e calor. Depois, chegando a Cintra, um
kilometro até á villa, em carro eléctrico ; ou em trem, se é preciso subir para S.
Pedro— com mais calor e mais pó.
O arrabalde entre a estação do caminho de ferro e o bairro— chamado por sua vez
«villa Estepliania»— tem lindos chalets e jardins, que são de quem são. Mas o lisboeta
segue para deante a procurar a sua casinha modesta, que lhe custa um dinheirão. Janta ;
391 — CasicUo da t'cna
é noite. Depois dá um passeio, durante o qual o grande filé consiste em' cumprimentar
muita gente. Se ha «peixe frito» no pateo do Paço Real, isto é, se toca uma banda re-
gimental, entretem-se a noute até ás dez horas ; se não, conversase n'algum grupo ou
n'alguma botica. Cai humidade, levanta-se nevoeiro, vão todos para casa, ouvir o sus-
surro da serra, cortado de vez em quando pelo rodar dos trens na villa. Pela manhã,
dinheiro para as compras, tabeliã de Gran-Capitão. Em seguida ao almoço um livro e
uma arvore, uma burricada ou uma quinta, quando não é, como para tantos lisboetas,
outra vez o caminho de Lisboa.
N'isto se resume, para os que não andam na grande roda, «a vida elegante* de
Cintra.
Mas, emfim, poder dizer que se está em Cintra é fazer boa figura em Lisboa.
Eu, homem do norte, prefiro o Minho, com boa agua, boa sombra, bonita paiza-
gem — sem palácios e sem conselheiros.
Vejamos agora a villa, tal como ella é na sua feição material.
Como prologo— o Castello dos Mouros sobranceiro á estação do caminho de ferro
sobre um cabeço eriçado de penedos, com as suas bellas ruinas denticuladas.
E' uma linda pagina mourisca da antiga Chintra ou Zintiras.
Os cocheiros offerccem-nos trens, e duas ou três vozes apregoam queijadas — essa
tradicional guloseima de Cintra, cujos principaes fabricantes são a Lapa, a Mathilde, c a
Constância Periquita.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
109
Mas o viajante não quer por ora trens nem queijadas, mette-se no carro eléctrico,
que segue pela avenida José Luciano de Castro, a principal artéria da «villa Estephania»,
e o leva ao centro da povoação, a 20 reis cada logar.
Passamos pelo Duche, que está dentro da quinta do conde de Valenças — antiga quinta
de D. Caetano — e que é um jorro de agua nevada, de que se faz applicação hydrolherapica.
Aqui termina o bairro Estephania.
Vamos entrar propriamente em Cintra, no coração da villa antiga, o qual compre-
hende não só a Praça velha, hoje largo da Princeza D. Amélia, mas também as suas
immediacões.
292 — Palácio real na villa de Cintra
E' aqui, n'esta zona central da povoação, que estão situados o Paço Real, o soi-íi/saHí
pelourinho ', a Misericórdia, os hotéis «Central», «Costa», «Ancora de ouro», varias lo-
jas de commercio, o quartel, e a igreja de S. Martinho, uma das três parochiaes da villa.
A Praça tem passado por algumas transformações, não essenciaes, porque o seu
desenho primitivo e irregular subsiste.
Mas desappareceu, por exemplo, o alpendre que d'antes servia de mercado, haven-
do sido este transferido para um edifício próprio, a pequena distancia do antigo logar.
O Paço Real não tem a fachada principal para o lado da Praça, mas sim apenas o
portão. O que d'esta nobre residência se pode ver de muitos pontos da villa é um con-
junto de edificações de diversas épocas, com algumas janellas lavradas, e duas origina-
líssimas chaminés, que fazem lembrar garrafas de Champagne.
A fachada dá para o interior do pateo.
• O sr. António Cesar Mena Júnior sustentou, em monographia especial, que o pelourinho de Cin-
tra desappareceu vandalicamente em 1854, e que a actual columna teve uma origem e applicação diver-
sas, não ainda definidas.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Quanto á origem do Paço Real, já o visconde de Juromenha, em iSSg, na Cintra
Pinturesca, tinha aventado a ideia de que elle houvesse sido — a pequena Alhambra dos
reis mouros de Lisboa. Mas, depois do excellente texto com que o sr. conde de Sabu-
gosa acompanhou os desenhos de sua magestade a rainha D. Amélia ', parece haver
ficado definitivamente comprovada aquella hypothese.
Desde D. João I até D. Manuel o Paço Real foi reconstituído, e certamente por
operários mouriscos, o que lhe conservou o caracter mosarabe.
Se )á antes d'aquelles reis outros tinham passado pelo Paço de Cintra, depois d'el-
les raros foram os que não contaram aqui horas de folga — com excepção de um único,
Aôonso VI, que n'este Paço encontrou um cárcere duro.
Terei de contentarme com fazer uma ligeira resenha do interior do Paço — a co-
meçar pelas salas tão eloquentes de recordações históricas :
Sala da audiência— uma das mais pequenas e escuras, onde, segundo a versão do
abbade de Castro, bem contestada pelo sr. conde de Sabugosa, D. Sebastião teria reu-
nido o seu conselho para lhe propor a infeliz jornada de Alcacerquibir.
Sala, mais propriamente quarto, de Affonso VI— com uma única janella : foi durante
8 annos o ergástulo do pobre rei desthronado. O ladrilho do pavimento está gasto das
continuas passadas do monarcha, de um lado para outro— como um leão na jaula.
Sala dos cysnes ou dos infantes— que deve aquelle nome ás pinturas do tecto, as
quaes, segundo a lenda, memoram o presente de um casal de cysnes mandado por Car-
los V a el-rei D. Manuel, quando ainda estas aves eram quasi desconhecidas em Por-
tugal.
Comtudo esta sala, a mais nobre e magestosa, foi construída por D. João I.
Sala da galé ou das sereias ou camará do ouro recentemente destinada aos apo-
sentos do sr. infante D. Affonso.
Sala das pegas— a que se liga uma galante anecdota de D. João I, glosada por
Garrett com o titulo As pegas de Cintra.
Sala das armas, dos brazões ou dos veados — na qual estão pintados os brazões de
famílias nobres de Portugal, em numero de 72 *.
Sala de jantar— contigua á sala das pegas.
Sala do banho ou dos esguichos, de origem árabe, postoque o seu revestimento
actual seja do século xviu. A agua rebenta por crivos miúdos em todas as direcções.
Sala dos árabes— nuí-.leo da primitiva edificação mourisca embora posteriormente
reconstruída. Tem um tanque central — com repuxo.
Sala das columnas, das duas irmãs ou de Affonso V — porque este monarcha aqui
nasceu e falleceu.
São dignas de menção especial a capella com o seu bello tapete de azulejos; a co-
zinha, com as duas notáveis chaminés, grandes mesas de pedra, fornalhas, fonte e depo-
sito J'agua.
Ha um interessante annexo ao Paço chamado Corpo manuelino, que foi mandado
construir por el-rei D. Manuel, e conserva as ornamentações características d'cssa época.
Os pateos, os tanques, os jardins completam esta vivenda real, hoje habitada no
verão pela rainha D. Maria Pia e pelo sr. infante D. Affonso.
El-Rei D. Carlos, a rainha D. Amélia e seus filhos veraneam no castello da Pena,
de que mais logo falaremos.
' No livro O Paço de Cintra, in-folio luxuoso f^Lisboa, igoS), com um exemplar do qual fui gentil-
mente brindado.
^ Veja-se a obra, em três volumes, Brasões d.x sala de Cintra pelo sr. Anselmo Braamcamp
Freire.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
Às tres freguezias de Cintra são S. Martinho, que comprehende a villa e é a mais
populosa — com 2.265 habitantes; Santa Maria e S. Miguel, já no arrabalde, com 1.403 ;
S. Pedro, com 2.249, "^^ pendor da serra, e comprehendendono alto ocastello da Pena.
Na freguezia de S. Martinho estão incluídos os palácios e quintas :
a) Da Regaleira, sobre a estrada dos Pisões. Pertenceu aos barões d'aquelle titulo
e hoje pertence ao dr. Carvalho Monteiro.
Os Pisões são um logar agradabilíssimo, onde se unificam, á sahida da villa, os dois
caminhos que conduzem a Collares. Diz-se que de umas antigas prensas, movidas por
agua, receberam o nome. Ha aqui uma cascata, que forneceria o motor. Os Pisões são
um passeio muito concorrido.
h) De Sitiaes, próxima á estrada de Collares. O palácio, constando de dois edifícios
ligados por um arco, forma uma das faces do vasto campo d'aquelle nome '. Quinta e
palácio foram tundados por um negociante hollandez, de appeilido Gildmestre, que os
vendeu depois ao 5." marquez de Marialva. Hoje são propriedades do duque de Loulé.
Dizia-se que n'este palácio fora concluída e assignada a famosa convenção de Cin-
tra em 1808. Lord Byron, no Childe Harold, seguiu esta versão e por isso chamou
mansão ingrata ao palácio de Sitiaes.
Mas um escriptor moderno - provou que a deplorável convenção foi celebrada, con-
cluída e assignada em Lisboa, e ratificada em Torres Vedras pelo general Dalrymple.
c) Do Relógio, na estrada dos Pisões, propriedade que foi de Manuel Pinto da Fon-
seca, Monte- Christo. A casa é no estilo árabe-, a quinta magnifica, com um soberbo
lago de mármore. Pertencem a D. Capitolina Vianna.
d) Da Penha Verde, um kilomeiro a sudoeste de Sitiaes. Fundada pelo grande D.
João de Castro, viso-rei da índia. E' grandiosa e bella. O ponto mais elevado da quinta
chama- se Monte das Alviçaras. Sobre elle foi edificada em honra de Santa Cathirina
uma ermida, cujo panorama é variegado e formoso. Junto de outra ermida, de Nossa
Senhora do Monte, (fundação primitiva) ha duas lapides notáveis, que D. João de Castro
trouxe da índia, tendo cada uma d'ellas uma inscripção em sanscrito. ^ Outras inscrip-
ções, em latim e portuguez, completam o interesse histórico da quinta, cujo proprietário
actual é o visconde de Monserrate.
e) De Monserrate, que no século XVIII pertenceu ao celebre lord Beckford, e
hoje pertence aos viscondes d'aquelle titulo, também inglezes. Palácio dividido em pavi-
lhões sumptuosos. Jardins, pomar, cascata, matta de frondosos carvalhos e castanheiros,
cultura de plantas raras, etc.
Quillardet, escriptor francez que tem visitado a Suécia, a Noruega, Hespanha e
Portugal, disse ultimamente que nunca viu nada mais bello que o parque de Monserrate*.
Taes são as principaes quintas comprehendidas na freguezia de S. Martinho.
Todos os annos se faz n'esta freguezia uma festa de caracter pastoril, romagem se-
melhante ás de Santa Quitéria de Meca, porque a ella são conduzidos os gados para
que S. Mamede, na sua capellinha, os abençoe e livre de moléstias.
Os lavradores de Collares, Mucifal, Azoia, Olgueira, Almoçageme, e das freguezias
* A lenda fabulou que o ecco repete aqui um ai sete vezes, d'onde o diíer-se sete ais, e depois
sitiaes. Outros dão como etymologia — sente ais.
' Alberto Telles, Lord Byron em Portugal, Lisboa 1879.
' Esta inscripção foi em parte traduzida por G. VVilkins, a pedido de Murphy. A sua traducção vem
na Cintra PMures a. O sr. Vasconccllos Abreu também se occuoou da internretação da mesma legenda.
Ultimamente, o sr. João Herculano de Moura sustentou que effectivamente as duas lapides vieram para
Portugal por iniciativa de D. João de Castro; que uma pertenceu ao templo de Somnath— Patane, perto
de Dio; e a outra, provavelmente, ao templo de Elefanta.
* No livro Espagnols et Portugais che^ eux, publicado, ha apenas um anno, em Pariz.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
de S. João das Lampas, Terrugem, Santa Maria do Arrabalde, bem como todos os de
S. Martinho, levam as suas rezes á romaria, obrigam-n'as a dar três voltas á capella
de S. Mamede, onde um padre as abençoa e lhes põe ao pescoço um nastro cor de rosa,
que deve preserval-as de todas as enfermidades.
D. Francisco Manuel, nos Apologos dialogaes, aliude a este costume quando diz:
«vos anda aqui á roda sempre, como gado vacum em torno da ermida de S. Mamede. •
Na freguezia de Santa Maria do Arrabalde mencionaremos as quintas da Abelhei-
ra, Ribafria, Boialvo, Fonte de Longo e Maria Dias.
Na de S. Pedro sobresaem as quintas da Penha-Longa, do Ramalhão e o Real
Parque da Pena.
A da Penha Longa foi convento e cer-
ca de frades jeronymos ; hoje pertence á
condessa d'aquelle titulo. Avista largos e bel-
los horizontes. Tem fontes notáveis, taes
como a dos Adens, da Porca, de Moysés,
do Monge, Gruta das Lagrimas ; extensos
prados de luzerna; jardins, lagos, mattas,
vivenda opulenta.
A sua proprietária fundou e sustenta
o asylo chamado da Penha Longa — para
creanças de ambos os sexos.
" A quinta do Ramalhão, um kilometro a
sueste de S. Pedro, pertenceu á Casa das
Rainhas, c n'ella residiu D. Carlota Joaqui-
na por alguns annos, convertendo-a n'um
foco politico de conspiração permanente.
Hoje pertence á viscondessa de Valmôr.
Junto ao Ramalhão fica o logar de Ra-
nholas, onde a infanta D. Izabel Maria teve
ama quinta, chamada da Infanta, cujo palá-
cio ardeu em parte na noite de 20 de outu-
bro de 1906.
O castello da Pena está erguido sobre
um dos mais elevados cabeços da serra de
Cintra, 3 629 metros de altura. Outros dois cabeços são o do Castello dos Mouros, que
já mencionamos; e a Cruz Alta, um kilometro ao sul do cabeço da Pena, na mesma
altura.
O Castello dos Mouros foi encorporado nos domínios da Pena, e reparado inte-
riormente.
A Cruz Alta oíferece um dos mais esplendidos c dilatados pontos de vista da serra
de Cintra.
No sitio do actual castello da Pena havia um convento, fundado por el rei D. Ma-
nuel muito depois do de Penha Longa, da mesma ordem.
Posteriormente á extincção das ordens religiosas foi adquirido, em 1 838, por el rei
D. Fernando, ao preço de 70oc?'00o reis, que era o da avaliação.
As obras da estrada começaram logo; scguiramse as da restauração da igreja em
1841 -, em 1844 resolveu sua magestade edificar o palácio.
Rei-artista, D. Fernando provou na escolha do local e no plano geral da construcção
o seu fino gosto pelo bello da natureza e da arte. Restaurou o que do antigo pôde sal-
var, como por exemplo a igreja, e fez erigir um lindo palácio acastellado, em estilo
293 — U;n trecho do antigo mercado e cadeia de Ciiilra
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
árabe mixto, digno de rivalisar com os mais bellos castellos principescos de toda a
Europa.
No exterior, as muralhas, as ameias, o torreão, a ponte levadiça, as setteiras evo-
cam a idade-media. A porta principal recorda a Alhambra.
O pórtico allegorico da creação do mundo e o tecto do vestíbulo imitando stalacti-
tes attingem o maravilhoso em artística phantasia.
A torre do relógio, com um mostrador em cada uma das suas faces, é de uma ga-
lanteria de linhas e ornatos que sorri na luz.
O castello avista-se a grandes distancias, quasi sempre toucado pelo nevoeiro da
294 — Fachada do palácio real de Cintra
serra. Forma dois corpos, separados por um pateo descoberto, do qual um dos lados
abre em arcaria, rasgando a paizagem.
El-Rei D. Fernando passava no palácio da Pena os mezes de estio. Depois da sua
morte, o palácio e o parque foram adquiridos pelo Estado como bens da Coroa. A rai-
nha D. Amélia aqui passa o verão habitualmente e só perto do outono é que retira para
Cascaes.
No interior, o palácio da Pena tem verdadeiras preciosidades, assim como a igreja-
O parque harmonisa com o gosto e riqueza do castello. )í' admirável. Especialisa-
remos, como curiosidades interessantes, o lago, a Fonte dos Passarinhos, e o Chalet
de Madame, onde passava a estação calmosa a sr.* condessa de Edla, antes de el-rei
D. Fernando a desposar em 1869.
O marquez de Vallada fez notar quanto as obras do castello da Pena foram edu-
cativas para os operários que n'eilas trabalharam durante annos. * Isto é exacto.
' Elogio histórico de sua mageitade el-rei o senhor D. Fernando, pag. 1 1
VOL. II
1 14 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Depois que el-rei D. Fernando falleceu em 17 de dezembro de i885, o castello, o
parque e suas dependências foram avaliados no inventario em 447:5o6yí>20O réis, com
o desconto de ioo:ooo'?ooo reis, equivalentes aos encargos annuaes da conservação das
mesmas propriedades.
Dentro da freguezia de S. Pedro está comprehendida a Escola Agricola Colonial de
Cintra, que, situada na quinta do Bom Despacho, é dirigida pelos padres missionários
do Espirito Santo, e foi dotada pela condessa de Camaride.
Educa sacerdotes para a evangelisação nas provincias ultramarinas.
A serra de Cintra corre, como sabemos, de Hste a oeste, na extensão de 18 kilo-
metros e, entrando no mar, forma o Cabo da Roca. Antigamente era chamada Pro-
montório Magno ou Serra da Lua, porque os romanos aqui edificaram um templo que
foi consagrado a Cmtia (a lua), d'onde alguns suppõem ter vindo o onomástico Sintria
(Portug. Momim.) e depois Cintra.
Sobejam, portanto, a esta serra extremenha titulos que a recommendam e notabi-
lisam desde a época romana do templo de Cintia, desde o Castello dos Mouros no pe-
riodo da occupação sarracena, até ao castello da Pena em nossos dias.
Povoada outr'ora de conventos e ermidas, a tradição religiosa alliase n'esta cordi-
lheira poética á tradição profana.
Conta a lenda que el-rei D. Manuel andava monteando na serra de Cintra e per-
seguia um veado branco, quando viu alvejar ao longe no oceano nove velas.
Era o regresso da segunda frota que tinha enviado á índia. Por este facto teria
mandado erigir o convento da Pena, no logar onde já antes havia uma ermida.
Também a lenda conta que Bernardim Kibeiro, saudoso da infanta D. Beatriz, aqui
ermava repetindo o nome d'ella ou entalhando-o no tronco das arvores e até, segundo
a versão de Costa e Silva, aqui «terminou em breve os seus dias». '
N'uma das dependências do parque da Pena realisase a i5 de agosto a tradicional
festa de Santa Eufemea, tendo nos últimos annos havido maiores festejos, promovidos
por criados da Casa Real.
A igreja parochial de S. Pedro (S. Pedro de Canaferriro e depois de Penaferrim)
é, como as de Santa Maria e S. Martinho, coeva da fundação da monarchia.
Em \jbb foi destruida pelo grande terremoto. A sua ultima re.stauração data de igoS.
Quanto mais teria eu a dizer de Cintra... mas o que diria eu que não estivesse
já dito — e melhor ?
Os mais iilustres viajantes estrangeiros teem lhe consagrado pelo menos uma pagina
de homenagem: os últimos, que eu saiba, foram o sr. Dé Baroni Leoni (1898) em verso,
e mr. Quillardet (igoS) em prosa.
Dos nossos poetas, o que talvez logrou dar, com maior êxito, a suave e subtil im-
pressão de Cintra foi o grande Garrett; e Cintra pagou-lhe amoravelmente dando o
nome de «Avenida Garrett» á pittoresca estrada dos Pisoes, inaugurando em 4 de feve-
reiro de 189 ) uma lapide commemorativa do centenário natalicio do poeta, collocada no
muro que contorna a quinta de Pedro Gomes da Silva. *
Entre os nossos prosadores, um ha, que foi distincto, ainda que pouco lembrado
hoje: Sebastião Xavier Botelho, a quem Alexandre Herculano dispensou largo elogio.
Possuo delle, em manuscripto. Uma descripção da serra de Cintra e dos Paços Reaes,
que supponho inédita.
Conheço ha mais de trinta annos esta «amena estancia, throno de vecejante prima-
' Veja-se o que a este respeito escrevemos no livro Bisltrijs de reis e priniipes, 1^*90, pag. 67.
2 Um theatrinho insignificante— que não hi outro melhor! — tem o nome de «Alrueida (jarrett» e
pertence á Sociedade União Cintrense.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA ii5
vera.» Conheci-a antes do caminho de ferro, isto é, desde o mallogro do Larmanjat ' até
1887, em que se inaugurou o ramal que actualmente serve a villa. E devo n'este ponto
confessar-me retrógrado convicto: eu queria Cintra tal como a conheci primeiro, na sua
altiva solidão fidalga, no tranquillo mysterio dos seus profundos arvoredos, na paz idil-
lica das suas claras fontes, offerecendo paizagens aos pintores e aos poetas, camellias ás
damas, morangos aos namorados, queijadas ás creanças e ás bonites.
Hoje, em dia de tourada — porque a villa tem, como qualquer outra, o redondel
vulgar de Linneu — enchem-se de turba-multa os hotéis, os que já citamos, e mais o
Lawrence, o Netto e o Nunes; ha por toda a parte um barulho rapioqueiro, uma grita-
ria macabra, que perturba e descaracterisa ; os caixeiros de Lisboa, com o lenço enta-
lado no collarinho, o chapéo sobre a nuca, bebem agua da Fonte da Sabuga sem agra-
decer á natureza tão mimoso brinde ou bebem CoUares e comem queijadas como quem
está a pandigar nas hortas. Foi-se o cachei antigo — de solidão e solemnidade, o que
quer que fosse de dupla tradição mourisca e medieval, de caracter histórico e de placidez
poética, outr'ora tão respeitados aqui e tão imperturbáveis na sua quietude vagamente
saudosa.
Houve no século xiv um conde de Cintra, que foi D. Henrique Manuel de Vilhena.
E na i." metade do século xix houve outro, que foi António da Cunha Grãa Athayde
e Mello, da casa de Povolide.
Este fidalgo nun;a chegou a encartar-se no titulo, e procedeu bem, porque o con-
dado de Cintra parece mais próprio para uma dama. Assim o comprehendeu quem de-
pois o fez recahir n'uma neta do marechal duque de Saldanha.
Na villa de Cintra tem havido, que eu saiba, os seguintes periódicos:
O Saloio^ primeiro jornal d'esta villa, impresso em Lisboa. De outubro de i856 a
setembro de 18D7.
Jornal cie Cintra. Começou em novembro de i885.
Clamor de Cintra. Julho a dezembro de 1887.
Gaveta de Cintra. Fundada em 1889.
Correio de Cintra, que principiou em iSgS, e já acabou.
Jornal Saloio. Começou em 1898. No n.° Sg, de 4 de fevereiro de 1899, publicou
um inédito de Garrett, O impromptu de Cintra.
Progresso de Cintra., que se publicava ainda em 1899.
Echos de Cintra, que julgo ser o mais moderno.
A villa é cabeça da comarca do seu nome (2.* classe).
Tem escolas para ambos os sexos, uma fanfarra e corpo de bombeiros voluntários.
Actualmente está em construccão um edificio destinado a paços do concelho e ou-
tras repartições publicas.
Na Penha Longa e em S. Pedro de Penaferrim ha feiras annuaes de 3 dias: a 1.'
começa a i3 e a 2.* a 29 de junho.
Antigamente ir a Collares era uma festa; hoje... é um carro eléctrico — a ô vin-
téns por cabeça. E' barato, é commodo, mas não é uma parlie de plaisir — como a
burricada de outros tempos.
Pois Collares obriga tanto como Cintra, pelas tradições galantes e lendárias : pode
bem chamar-se-lhe a continuação occidental de Cintra. Não lhe faltam memorias nem
paizagens; nem sombras, nem aguas — e até vinhos macios como estrophes liquidas.
Os rails di tracção eléctrica seguem á mirgem da estrada. Os motores estão ins-
tallados na Ribeira. A linhí passa a pequena distancia de Collares, e continua para a
Praia das Maçãs, qje dista apenas uns três ki.om;tros — mais 80 reis de passagem.
' Tramway a vapor, que viveu o que vivem as rosas.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Collares possue, alem dos seus encantos naturaes e das suas lendas fabulosas, a ri-
queza vitícola e pomifera.
Bebcse muito Collares que o não é, e comtudo não parece mau; mas quando se
bebe o genuino Collares, das boas firmas— António Costa ', Mazziotti, (marca Monte-
Cerves), viuva Gomes da Silva & Filhos, não ha melhor vinho, que melhor saiba e que
menos escalde.
O professor Aguiar, que o considerou verdadeiro typo de vinho de pasto bem dif-
ferenciado de todas as sub-regiões da Estremadura, apenas lhe notou um defeito, a
falta de fliavor, que é como quem diz— transparência loira ou doirada.
Os auctores de Portugal au point de viie agricole também o reputam como per-
feito typo de vinho de mesa, leve, delicado, fresco.
■'g5 - 1'alacio Moiiserrate, em Cintra
Já mais longe dissemos que é uma casta de uva, a Ramisco, que lhe dá o bouquet
especial, e, portanto, caracter.
O entreposto central do commercio vinícola de Collares é o logar de Almoçageme,
d'onde as caixas são expedidas ao seu destino.
Infelizmente a região é pequena: por isso se bebe tanto Collares falsificado, algum
procedente de Torres, segundo Aguiar.
A freguezia de Nossa Senhora da Assumpção de Collares tem 3.8i3 habitantes,
dos quaes 2.o56 são mulheres.
A villa, que deu nome á freguezia, tomouo, dizem uns, de dois collos ou collinas
sobranceiros á várzea. João de Barros conta que uma Dido allemã aqui viera parar de-
pois de viuva e, com licença do senhor do logar, aqui fundara um Castello, dando como
penhor do custo do terreno três collares de ouro, pelo que chamou de CoUir ao castel-
lo. Gabriel Pereira de Castro remonta-se ao tempo dos romanos, conta que um sangui-
nário Phitodemo, terror d'estes sitios, fora morto por Alcides e que depois a vindicta
popular o arrastou com fortíssimos collares.
Fabulas bolorentas e caducas.
A villa é banhada por um rio, que desde a Ponta Redonda á várzea se chama de
Gallamares e da várzea até ao oceano — rio das Maçãs.
' Aniiga marca Francisco Costa.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
"7
Antigamente, segundo a tradição, era navegável e tinha porto aberto por onde en-
travara no mar os pomos que as macieiras sacudiam e elle levava no seu curso: d'ahi
tanto o nome do rio como da praia onde desagua.
Outra fabula. . . talvez.
Na várzea ha uma grande represa ou lago, que serve não só para rega dos po-
mares, aqui tão densos e ferazes, mas também para exercícios de canotage no verão.
O arvoredo, sempre frondoso e basto em toda esta região, deixa cair sua fresca
sombra sobre este lago que constitue um dos mais agradáveis divertimentos de CoUares.
A villa faz-se valer, principalmente, pelo encanto da paizagem, pela graça e utili-
dade da vegetação que lhe serve de moldura
2tK) — Palácio de Seteuís, em Cintr
A Matta, soberbo castanhal do meu velho amigo Mazziotti, é um frondoso bosque.
D'antes também o era o Passeio dos Amores, a seguir á Rua Fria, mas foram-se aos
ulmeiros que o ladeavam e cortaram-n'os, que em toda a parte ha dendroclastas— até
onde os não devia haver.
Ainda assim, a natureza continua a valer mais do que a arte em CoUares.
A igreja parochial nada tem de notável a não ser a antiguidade-, apenas possue al-
guma estimável obra de talha.
Os principaes edifícios da villa são, no alto, a casa Mazziotti e em baixo, ao pé da
igreja, a que foi do dr. Luiz de Almeida e Albuquerque.
A historia de CoUares perde se na noite dos tempos. Sabe-se que a povoação já
existia no tempo dos romanos.
De novo recordaremos que teve castello.
D. Affonso III deulhe foral e D. João I doou-a a D. Nuno Alvares Pereira, A villa
foi cabeça de concelho, extincto em i855.
Algumas lendas piedosas se relacionam com a fundação da ermida da Senhora de
Milides, próxima ao convento de Sant'Anna, que foi de carmelitas calçados; e á funda-
ção da ermida de Nossa Senhora da Peninha, eminente ao mar, sobre um rochedo,
perto do Cabo da Roca.
ii8
EMPREZA DA. HISTORIA DE PORTUGAL
O pelourinho de Collares ainda se conserva de pé, junto á antiga casa da camará.
A i5 de agosto faz-se na matriz uma grande festa em honra de Nossa Senhora da
Assumpção.
No arraial costumam tocar a banda dos bombeiros voluntários de Collares e algu-
ma de Lisboa.
Ha muito que vêr nos arredores d'esta villa, e o EdenHotel ou o Falcato oíferece
boa commodidade para uma demora de alguns dias.
Qualquer guia nos indicará uma visita ao Fojo, caverna marinha, em forma de fu-
nil, onde o mar peneira subterraneamente, e em cujas anfractuosidades se abrigam aves
aquáticas; um passeio á Pedra de Alvidrar, alto precipício talhado quasi a prumo sobre
o oceano — como o representou uma estampa do i." volume -e pelo qual os rapazitos
da costa descem e sobem equilibrando-se em prodígios acrobáticos, a troco de alguma
espórtula. Junto á Pedra de Alvidrar é que se diz ter existido um templo dedicado á Lua.
Também nos lembrarão em Collares que visitemor. a Praia das Maçãs. Lá iremos
logo, e facilmente, porque nos leva o carro eléctrico.
Por agora falemos das quintas comprehendidas na área da freguezia : são muitas,
ricas de vinha, ricas de pomares de espinho e caroço.
Mencionaremos, como principaes, a do Dias, que pertence a Chaves Mazziotti; a
dos Freixos, que foi do dr. Luiz de Almeida e Albuquerque; a do Pé-da-Serra. hoje
dos lilhos do conselheiro Francisco Costa; a do Vinagre, que é de D. Maria José Dique
Bandeira Nobre; e a do Carmo, que foi de Guimarães Ferreira, o qual a legou ao con-
selheiro José Dias Ferreira.
Esta era a antiga cerca do convento i^os carmelitas.
A quinta do Dias tem um palacete construído ha mais de 200 annos, um bonito
mirante e uma cascata magnifica.
A bella Malta de castanheiros, a que mais a cima nos referimos, fica entre a quinta
do Carmo e a do Dias.
Conhecemos a importância vinícola de Collares, mas diremos ainda que a viticultura
n'esta região começou a ser animada por Atíonso III, como prova um documento antigo,
e talvez até este monarcha tivesse mandado vir de França algumas cepas para replantar.'
As fructas são óptimas e abundantes. Não só abastecem o mercado de Lisboa, mas
também, em grande copia, vão para Inglaterra, especialmente os limões.
' Cintra pintureica, pag. i85.
AfEXTREMADURA PORTUGUEZA
"9
Já o marquez de Pombal dizia que ter limoeiros em Collares equivalia a possuir
uma preciosa mina.
De uma das propriedades d'esta região, o Casal, adstricto á quinta da Arriaga, na
serra, sei eu que saíam todos os annos centenares de caixas de limões para Inglaterra no
valor de 4 a 5 contos de reis : dizia-m'o esse excellente homem que se chamou Joaquim
Pinto de Magalhães, e foi i." visconde e i." conde da Arriaga.
Depois da morte do conde, em dezembro de 1892, o limão portuguez teve uma
baixa no mercado de Inglaterra pela concorrência do limão da colónia do Cabo.
Deu isto motivo á substituição do limoeiro pela vinha no Casal, pois que, não po-
dendo exportar-se o limão, o seu consumo em Portugal era deficiente.
Actualmente, por effeito de epiphytia ou qualquer outra causa, a exportação do limão
do Cabo diminuiu, e a do limão portuguez tende a melhorar.
298 — o lago na várzea de Collares
A quinta da Arriaga foi por muitos annos o retiro predilecto de políticos notáveis :
Fontes vinha aqui descansar algum tempo, especialmente durante os três dias de carna-
val. Aqui gosaram suas luas de mel Lopo Vaz e outros regeneradores em evidencia. O
conde da Arriaga dava uma hospitalidade bisarra e magnânima.
Hoje a quinta da Arriaga pertence ás duas filhas solteiras do conde, e o Casal á
esposa do sr. conselheiro João Arroyo, o qual mandou recentemente edificar uma am-
pla vivenda.
Vamos agora á Praia das Maçãs, que fica a três kilometros da villa de Collares,
junto á foz do rio d'aquelle nome.
No caminho passamos pelo nascente de agua de Monte Banzão, que, para mesa, ri-
valisa com a das Lombadas.
Por ora a praia das Maçãs tem poucos edificios, alguns chalets, no alto, sobre a
riba ; em baixo fica a praia de banhos. Magnifico ar, e temperatura magnifica. Mas os
banhos são ás vezes perigosos pela bravura do mar. Já aqui se deram dois sinistros me-
moráveis. Em outubro de i838 foram arrebatadas pelas ondas três meninas e dois ba-
nheiros ' ; em setembro de igo5 aqui morreram afogadas mais duas meninas, Marcelli-
• Uma d'estas meninas, tendo o seu cadáver sido arrojado á praia, foi sepultida no cemitério de
Collares. O seu epitaphio diz: «Consagrado á memoria de D. Maria Barbara Benedicta d'Almeidj, nasci-
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
na Rosa, de 14 annos, Umbelina da Assumpção, de i5, filhas de proprietários do logar
de Mucifal.
Em dezembro de 1907 começou n'esta praia a construcção de um edificio para ho-
tel, sobre as ribas, ao lado da estrada para as Azenhas do Mar, quasi em frente da
Villa Guide.
O proprietário é o sr. Eugénio Levy, que também mandou construir um restaurante
o qual )á está fanccionando.
A Praia das Maçãs começou a ser povoada depois que em 1887 se concluiu a es-
trada que a liga com a várzea de Collares.
%^rSI|pli^B^^P^»^H^^pr
2) > — O convento da Pena noseculo XVI
Um dos chalets pertence ao sr. Alfredo Keil, que também aqui fez erigT uma ca-
pella da invocação de Senhora da Praia das Maçãs.
Ao norte d'esta praia ficam a linda povoação costeira — Azenhas do Mar -alcando-
rada sobre rochas, e as praias de Fontanellas e Magoite.
Ao sul ficam as praias Grande, da Ursa, da Adraga e do Cavallo. '
da em 26 de fevereiro de i8i3 e fallecida a i d'outubro de i838, filha do conselheiro Ignacio Rufino de
Almeida e de D. Maria José Je Almeida. Falleceu suffocada no rolo do mar, na Praia das .Ma<;ãs, junto
a Collares.» D. Sophia de Koure, que pôde ser salva a muito custo e era irmã de uma das victimas, ca-
sou mais tarde com o visconde de Villa Maior.
' Diz-se que um cavallo, pertencente a certo inglez, resvalando pelo Fojo, de que jí falamos, fora
apparecer na praia a qae dera o nome. Não prima pela verosimilhança esta lenda.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
Continuando na freguezia de Gollares, escusado nos será accentuar de novo a im-
portância do logar de Almoçageme. Este logar já em i838 contava ii5 fogos, quando
a villa, que é sede da freguezia, apenas tinha 6o.
De então até hoje as suas condições de prosperidade augmentaram, graças ao tra-
fego vinícola.
Segue-se, em cotação, o logar do Penedo, que também naquelle anno de i838 já
tinha 119 fogos; hoje tem 200, e 700 almas.
Ha aqui uma capella instituída em 1647 por Francisco Nunes da Silva e sua mu-
lher. As paredes são revestidas de azulejos, que representam os milagres de Santo An-
tónio. E' n'esta capella que no domingo do Espirito Santo se realísa a festa do Impera-
dor, a qual dura três dias.
Contamos no i.° vol., capitulo Alemquer, a origem da tradição do Império, tão
generalisada em Portugal, especialmente no sul, de Coimbra para baixo, e nos Açores.
A própria Lisboa não resistiu á tradição, como se deprehende de uma rápida noti-
cia dada por João Pedro Ribeiro: aE' também de esperar que ainda se conserve junto
a Coimbra a burlesca mascarada do Imperador das Eiras, e até ainda a haverá em Lis-
boa na Lapa, e na Esperança.» •
Não ha. Mas subsiste no concelho de Cascaes, em Alcabideche ; e no de Cintra,
logar do Penedo.
Aqui, o elenco das festas é o seguinte: No i.° dia, o boi, todo enfeitado com fitas
e flores, dá três voltas á capella, e em seguida abatem-n'o, sendo parte da carne dis-
tribuída em bodo aos pobres. No 2.° dia sai o cortejo processional do Imperador e faz-
se a bençam do pão, celebrando-se depois a funcção religiosa na capella. No 3." e ul-
timo dia remata-se a festa com o jantar aos festeiros, para o qual se reserva uma parte
do boi morto.
Garção compoz umas cantigas — Ao Divino Espirito Santo no anno em que
serviu de Imperador um filho do íll."" e Ex."" Snr. D. José de Alencastro — o que pro-
va que também os fidalgos da Estremadura se honravam de desempenhar aquelle de-
voto cargo.
A freguezia de Collares comprehende ainda outros logares de menor importância.
Em Collares ha mármores pretos, e na Pedra de Alvidrar ha-os brancos ; mas a
todos, no concelho de Cintra, supplantam os variegados de Pêro Pinheiro,
1 Reflexões históricas, parte 1 .*, pag. 36.
3oo — l'raia das Maçãs
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
BELLAS E OUTRAS FREGUEZIAS
O concelho de Cintra, que faz parte do districto de Lisboa e tem uma população
total de 2(3.394 habitantes, comprehende mais as freguezias de Almargem do Bispo,
Bellas, Montelavar, Rio de Mouro, S. João das Lampas e Terrugem.
A do Almargem, cujo orago é S. Pedro, conta 3.402 habitantes.
O logar sede da parochia fica a nordeste da estrada de Lisboa a Cintra e dista
d'esta villa três kilometros.
Encravado n'uma alcantilada encosta, as sua: casas, muito caiadas, apparecem en-
3oi — Vista de Bellas
tre macissos de verdura, esgalhadas ao acaso, aqui, acolá. Em frente, até ao vago li-
mite dos montes, desenrola se a chamada várzea pintalgada de quintas verdejantes.
Cultiva se no Almargem grande quantidade de agriões e violetas, das quaes as sa-
loias fazem raminhos, que são vendidos, como os agriões, na Praça da Figueira, em
Lisboa.
Entre outros, tem a freguezia dois importantes logares : o Sabugo, com duas linhas
de casas ladeando a estrada real de Lisboa, e o de D. Maria.
No Sabugo ha uma feira a 25 de julho.
A freguezia de Nossa Senhora da Misericórdia de Bellas conta 3.6 12 habitantes.
A villa, sede da parochia, foi cabeça de concelho até i855, e outr'ora cercada de
muralhas torreadas.
Está situada n'um ameno valle á aba da serra da Carregueira, e é atravessada pela
ribeira de Bellas ou de Jarda.
Eis aqui um dos mais pittorescos e povoados subúrbios da capital, com muitos
prédios modernos, e dois hotéis, o Central e o Paschojl, que no verão se enchem de
hospedes.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA i23
No Central ha também um restaurante onde costumam reunir-se os bons cavaquea-
dores veraneantes.
Caraillo Castello Branco chamou a Bellas «um retalho do Minho *». Certamente o é.
Com esta boa impressão recomecemos a nossa resenha.
Sobre o antigo rocio ergue-se o palácio dos condes de Pombeiro (depois marque-
zes de Bellas) antigos donatários da villa.
Successivas modificações teem desfigurado a traça primitiva do edifício, ao qual se
segue a notável quinta, que tão agradável sombra offerece nos dias calmosos do estio,
e onde se realisa a famosa romaria annual do Senhor da Serra.
Esta quinta pertencia no século xiv a um Gonçalo Annes Corrêa, que por sua morte
a deixou ás commendadeiras de Santos, as quaes a cederam por escambo a Lopo Fernan-
des Pacheco, pai do celebre Diogo Lopes Pacheco, um dos implicados no assassínio de
Ignez de Castro.
Por este facto foram confiscados ao filho para a Coroa todos os bens que elle her-
dara do pai.
D. Pedro I affeiçoou-se á quinta de Bellas e aqui mandou edificar um palácio, que
foi o núcleo do actual.
Seu filho D. Fernando restituiu a Diogo Lopes Pacheco os bens confiscados, de
que elle se gosou parece que até á morte. Depois reverteriam á Coroa por qualquer
motivo.
D. João I deu a quinta de Bellas a Gonçalo Pires, seu parcial, mas por morte d'este
comprou a para dala ao infante D. João, o qual gostava He residir durante temporadas
no paço fundado por seu avô.
Fallecido aquelle infante, herdou a quinta de Bellas a senhora D. Beatriz, sua filha,
que restaurou o paço e melhorou a quinta e que, sendo viuva, doou toda a propriedade
a Rodrigo Aífonso de Athouguia, fidalgo que fora dedicado a seu marido.
D. Maria da Silva, bisneta d'este fidalgo, casou com D. António de Castello Bran-
co, li." senhor de Pombeiro, e os seus successores, depois (1662) condes d'aquelle ti-
tulo e mais tarde (i8oi) marquezes de Bellas, continuaram na posse da propriedade.
Assim, pois, é esta uma quinta povoada de nobres memorias. Aqui á sombra do
arvoredo pensaria D. Pedro I na mysteriosa coincidência que regula ás vezes os acon-
tecimentos humanos : porque as mesmas arvores que abrigaram Diogo Pacheco o abri-
garam a elle, amante saudoso de Ignez. Aqui se encerrou el-rei D. Duarte durante os
primeiros dias em que sentiu na fronte o peso da coroa real, que tão pesada lhe foi.
Aqui se recreou por vezes el-rei D. Manuel nas suas horas felizes, que foram quasi to-
das. Aqui, em nossos dias, podemos evocar a historia antiga da quinta, que hoje per-
tence ao sr. Borges d'Almeida.
Vilhena Barbosa suppunha que dos paços de D. Pedro I apenas se conserva
a forma geral do edificio. Gabriel Pceira julga ver na residência de Bellas restos ainda
da alta idademedia. São duas opiniões concordes.
Os Pombeiros do século xviii cuidaram muito da quinta, e aformosearamn'a, o
que explica que o padre Domingos Caldas Barbosa os quizesse lisonjear escrevendo a
Descripção da grandiosa quinta dos senhores de Bellas e noticia do seu melhoramento
(Lisboa, 1799).
Parte da quinta é plana, estende-se por um longo valle e comprehende os pomares,
hortas, jardins e avenidas, com boa sombra e frescura de agua.
A avenida principal, traçada do sul para o norte, é copada por frondosas arvores.
• Em carta publicada no meu livro. O romance do romancista.
124
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
e vestida de plantas e flores. Tem ao meio um alteroso obelisco de mármore, erguido
sobre alguns degraus, e ornado n'uma das quatro faces, a meia altura, com a figura
da Fama e os bustos do príncipe D. João (depois rei) e de D. Carlota Joaquina, tra-
balho do esculptor Joaquim José de Barros.
Esta mesma avenida conduz á cascata e ao lago que tem uma estatua de Neptuno,
em mármore de Garrara, attribuida a Bernini.
A oeste, o terreno é accidentado, montuoso, se bem que brandamente. Pela en-
costa frondeja a matta, cruzada de ruas sombrias, e sobem dois caminhos escadeados,
com grutas e bancos a intervajlos, os quaes dois caminhos levam á coroa do monte
mais alto, onde se ergue a pequena ermida do Senhor Jesus da Serra.
No ultin o domingo de agos -
7 ^ — j. — -, 1 to realisa-se a romaria, que é a
mais concorrida dos arredores
de Lisboa, e por essa occasião
a avenida principal da quinta
transforma-se n'um vasto ar-
raial—que principia já no largo
da villa — um maré magnum de
gente, ondulante, confuso, re-
volto.
Vou recortar dos jornaes
de iQo3 trechos descriptivos da
romaria d'esse anno, não só por-
que elles ferem uma nota im-
pressionista colhida sur place,
mas também porque reprodu-
zem um cliché que todos os an-
nos pode ser decalcado com
exactidão.
Mas, primeiro, lembrarei que a villa de Bellas é servida pela estrada de Lisboa ou
pelo apeadeiro Queluz-Bellas, que dista d'esta villa 2 kilometros. '
E, agora, á romaria :
«Na estação de Queluz-Bellas, á chegada dos comboios estabeleciase extraordinária
confusão, sendo muitas vezes necessária a intervenção do chefe Simões, que ali fazia
serviço com vinte guardas de Lisboa e o cabo 112. No largo da estação havia um sem
numero de carros, «char-á-bancs», carroças, trens, fcharrettes», etc, de Bellas, Cintra,
Lisboa, Mafra e Ericeira, que conduziam os romeiros á villa, que como se sabe, fica a
pouco mais de um quarto de hora de caminho. Todos, sem excepção, e principalmente
5 carros do sr. Eduardo Jorge, eram positivamente assaltados e disputados com tal vi-
gor, que mais parecia uma verdadeira batalha.»
— «Quem. sahia da estação, atravessada a linha, encontrava logo, á direita, duas barra-
cas, onde se vendiam vinho e vários petiscos, as quaes, bem como outras que ficavam á
esquerda da estrada, um pouco mais adeante, fizeram magnifico negocio. Omesmosuc-
cedia em uma pequena locanda que ha )unto das cancellas da estação e que, durante
todo o dia e noite, esteve repleta de consumidores, correndo ahi o vinho e a cerveja a
jorros.
«Pela estrada um sem numero de mendigos atormentava os romeiros com as suas
3o2 — Largo de Bellas
I Habitualmente, ha carreiras de diligencia alo réis cada logar.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
12S
costumadas cantilenas, exhibindo aleijões e doenças repugnantes, a vêr se conseguiam
recolher alguns magros vinténs, devidos á caridade dos transeuntes.
«Avista-se, emfim, a porta lateral da quinta do Marquez, junto da qual estão quatro
carroças com pipas de vinho e duas improvisadas barracas de comida, onde se vende
peixe frito e pasteis de bacalhau, juntamente com pão saloio que, segundo o costume,
teve grande consumo.
«Próximo, alguns vendilhões ambulantes offereciam aos romeiros registos do Senhor
da Serra, rosários de vidro, etc.»
— aNo largo da villa era um verdadeiro
pandemonio.
fEstava ahi armado o arraial e ao lado es-
querdo viam-se erguidas as barracas da feira,
que geralmente fizeram bom negocio.
«As que se fizeram representar em maior
numero foram as de cernidas, que desde manhã
até á noite estiveram repletas de freguezia.
• Havia também um grande numero de bar-
racas de quinquilharias e bancadas em que se
fazia venda de registos do Senhor da Serra.
«Viam-se ainda uma barraca de tiro ao alvo,
um theatro de fantoches, algumas tômbolas e,
á porta principal da quinta grande numero de
carroças com pipas de vinho. Ahi, alguns ho-
mens vendiam varapaus ferrados, de vários ta-
manhos e qualidades, que tiveram grande ex-
tracção.
«A' entrada da quinta a multidão era enor-
me, e, quando entrava o largo portão de ferro,
apertava-se de tal forma, que os dois policias
de Lisboa que o guardavam difficilmente conse-
guiam raanter-se nos seus logares.»
— «A feira do largo foi extraordinariamente
concorrida e a venda de vinho foi verdadeira-
mente phenomenal, pois que cerca de 2:000 al-
mudes, sem contar com o liquido transportado de Lisboa e com o que se vendia nas
vendas abertas, foram consumidos pelos romeiros. A barraca dos fantoches e a do tiro
ao alvo e apim-pam-pum» tiveram desusada concorrência.
«Os retiros Reis e Campestre, e os hotéis e casas de venda estiveram sempre cheios
até á porta, acabando-se em algumas d'ellas a comida, tal a affluencia de frequentadores.»
— «E' uma parte imprescindivel da festa ir á capellinha da quinta do antigo mar-
quez de Bellas, hoje propriedade do sr. Borges d'AImeida, prestar culto ao Senhor da
Serra. Toda a gente, ao chegar á villa, pensa logo n'isso. E era então ver os romeiros,
n'uma doida irreverência, entrando pela capellinha de companhia com as guitarras e can-
girões de vinho. Isto mostrava que nem só a devoção do Senhor da Serra os levava
áquelle tradicional passeio á villa de Bellas.
«Todos conhecem aquelia capellinha, quasi minúscula, mas muito bonita, escondida
entre o frondoso arvoredo, convidando a dormir a sesta. Não comporta a capella mais
de sessenta pessoas, bastando dizer isto para se avaliar qual a confusão e o alarido que
deveriam resultar de toda aquelia multidão querer ali entrar ao mesmo tempo.»
—«Os melões, melancias, uvas, pecegos, peras, emfim, todas as qualidades de fructa
3o3— Regislo do Senhor da Serra
126 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
da estação, venderam se irnmenso, especialmente as melancias e melões, que se vende-
ram, segundo a phrase popular, como gallinha.
fO preço das primeiras regulava de ><o a i6o réis, conforme o tamanho e a quali-
dade, e o dos segundos entre 240 e 36o réis, nas mesmas condições.
«As queijadas de Cintra, que em pacotes enfileirados e empilhados sobre cestas de
castanho se viam por todos os lados das ruas da quinta, venderam-se também em gran-
de quantidade, bem como as bilhas de barro que, actualmente, estão substituindo a
clássica borracha.
«D'este ultimo artigo viam-se centenas no extremo da rua a que nos referimos.
tPor toda a quinta pullulavam os vendedores de capilé e agua fresca, que consegui-
ram auferir bons lucros, devido ao excessivo calor que hontem fez. O que, porém, ga-
nhou mais dinheiro, foi um antigo creado de restaurante que, no recanto da encruzilha-
da, levantou um balcãosito, em que vendia limonadas, laranjadas, gelados e bolos do
Ferrari.»
— «Na encosta viam se ranchos, bem como na clareira e por meio dos arbustos ecar-
rasqueiros, comendo os seus farnéis com appetite e bebendo o bello vinho em bilhas e
cangifões, dançando-se depois animadamente, principalmente no largo do Cruzeiro, onde
as cantadeiras de Almargem do Bispo davam a nota alegre com as suas cantigas e os
seus fatos domingueiros de variadas cores.
«No primeiro arruamento, á esquerda da entrada da quinta, havia á venda grande
porção de fructas, melões, melancias, uvas, pecegos, etc, leitões assados, pelos quaes
pediam iC55oo, i,r^6oo e 20000 réis, muita louça e objectos de verga.»
— «No alto da quinta, na clareira onde está a chamada pedra Alta ou dos Mouros,
o rapazio e muitos romeiros entretiveram-se durante todo o dia a ver quem era capaz
de subir ao pico d'aquelle Íngreme, escabrado e liso pedaço de granito, com cerca de
seis metros de altura '. E assim se passou, até á noite, o primeiro dia dos festejos em
honra do Senhor da Serra.»
Tal é, n'um relance de noticiado, a movimentação da romaria do Senhor da Serra.
Segundo Caldas Barbosa, o abbade de Castro e outros, havia outrora em Bellas,
no logar de Suimo, ricas minas de pedras preciosas, especialmente granatas e jacintos,
que appareciam quando se lavrava a terra ou quando ella era revolvida por grandes
chuvas. Baptista informa de que ainda appareciam fiSyb) ao longo da ribeira, depois
de ter chovido muito.
Vilhena Barbosa e outros dizem que o aqueducto das Aguas Livres (mais propria-
mente Agua Livre) começa nas cercanias de Bellas. A verdade é que já vem mais do
norte, para alem do pinhal de Tróia, na estrada que liga Canecas com o logar de Ca-
marões.
Ha na villa um magnifico edifício escolar para ambos os sexos, que toi construído
em 1894 e inaugurado em 1895 com a assistência do governo e da camará de Cintra.
E' a Escola Francisco de Aboim — nome do seu desvelado promotor, hoje visconde
de Idanha.
Parte do Largo de Bellas está ajardinada : tem um pavilhão no meio e três cara-
manchões lateraes, bem como alguns bancos ao abrigo das arvores: — illuminação a gaz.
Alem da quinta do Marquez e d'este jardim publico, ha logares muito frequentados
no verão, taes são; Fonte da Panasca, a meio kilometro da villa, com uma linda estrada;
> Vilhena Barbosa diz : «Na parte alta da quinta vêem se uns grandes rochedos da feiçSo de la-
geas collocadas de modo, que parecem realmente dispostos por industria humana. Se se der credito á
tradição vulgar entre os povos da villa e dos arredores, foi obra dos moiros e lhes servia de aialayas
Ao parecer de outras pessoas aquellas pedras não são mais que uma curiosi lede natural».
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
127
Agua Livre, Fonte do Castanheiro, Alto dos Moinhos e Bomjardim, comprehendidos
quasi todos em quintas, aqui numerosas.
Algumas d'estas quintas são contíguas á villa, a saber : a da Assumpção que per-
tence ao commendador José Maria da Silva Rego e a sua irmã D. Maria das Dores Rego
Leão d'01iveira. Tem palácio, jardim, e dois mirantes d'onde se disfrutam interessantes
panoramas.
Quinta do snr. J. Wimmer, com aguas férreas e pittorescos passeios.
Quinta da Hespanhola, que pertence á snr.' D. Raphaela Gimens, com palácio e
jardim.
Quinta do Conde de Villa Franca (hoje dos herdeiros) com palácio, jardim e boas
sombras.
Quinta Villa- Adelaide — com palácio, jardim e excellente agua de mesa. Pertence ao
snr. Manuel Vicente Nunes.
Quinta da Samaritana, com chalet, jardim, boas sombras e excellente agua de mesa,
Pertence ao snr. Jacob Abeccassis.
Mais distantes da villa, ha outras quintas, a saber :
De Molha-Pão, que fica a 4 kilometros de Bellas. Pertence ao visconde de Alver-
ca, e está arrendada a longo prazo ao sr. Armando Navarro.
Quinta das Aguas Livres que fica a 2 kilometros aproximadamente, encostada ao
aqueducto do seu nome. Pertence á sr.* D. Maria da Assumpção Barros Lima, sogra do
snr. Carlos Eugénio d'Almeida, o qual mandou construir um grande palácio e capella.
Tem boa agua e boas sombras.
Quinta do Bomjardim, que fica a 2 kilometros, e pertence ao marquez de Borba.
Tem palácio antigo, jardim, matta, e boa agua. Na capella faz-se uma festa todos os
annos no dia de Nossa Senhora da Conceição.
Quinta da Fonteireira, que pertence ao snr. Eduardo Ferreira Pinto Basto e fica a
I kilometro. Tem palácio, jardim, mattas, pinhaes, e a Fonte do Castanheiro, a que já nos
referimos, e cuja agua é férrea.
Quinta do Grajal, no logar da Venda Secca- a dois kilometros da villa de Bellas.
—Pertence ao sr. Serra e é afamada pela excellente agua da Fonte do Cedro.
Tem Bellas uma boa igreja parochial, e uma elegante avenida, bem sombreada, que
se chama do— Conde Pombeiro.
O numero de fogos deve oscillar entre 400 e 5oo.
128
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Depois de Bellas, avulta o logar de Queluz, notável apenas pelo palácio real e tra-
dições principescas.
A povoação e o palácio ficam n'uma baixa.
Na estrada que desde o apeadeiro segue para o logar teem sido edificados alguns
prédios modernos, que chegam até quasi ao largo do palácio.
Queluz gosou dias de celebridade depois que D. João IV confiscou o palácio que
os marquezes de Castello Rodrigo aqui possuíam e o doou á Casa do Infantado. Aqui
urdia o infante D. Pedro a conspiração de que foi victima seu pobre irmão Affonso VI;
aqui, um segundo infante D. Pedro, irmão de D. João V, fez raaitas das suas tunanta-
das famosas; aqui ainda outro infante D. Pedro -depois 3." rei deste nome e restaura-
dor do palácio — dava brilhan-
tes festas á corte e ao povo,
serenins e minuetes nas salas,
fogueiras e bailaricos no ter-
reiro durante os annos que,
depois do terremoto, aqui vi-
veu a família real.
Graças a esta aura de vi-
da principesca e esplendor pa-
laciano, a povoação de Que-
luz foi elevada á categoria de
villa em 1804 e tratou-se de
ordenar a construcção da igre-
ja matriz e da casa da ca-
mará.
Mas, a breve trecho, os
francezes vieram, e a familia
real abalou de fugida para o
Brazil— salvando mais a pelle do que a coroa.
Todos aquelles melhoramentos ficaram no ôvo, mas o palácio, restaurado pelo ma-
rido de D. Maria I, já então era uma espécie de Versalhes portuguez, postoque não aca-
bado, e apesar de desigual.
D. Miguel habitouo, com mais decência do que dizem as falsas lendas, e D. Pe-
dro IV aqui falleceu depois, a 24 de setembro de 1834.
E' singular a relação histórica d'este Paço com os príncipes portuguezes de nome
Pedro.
Posteriormente á morte do Imperador, a família jeal apenas veio com pouca de-
mora a Queluz.
Hoje o palácio está quasi inteiramente desguarnecido de mobília.
E comtudo era um dos mais lindos palácios da Coroa, pelo que respeita ao edifício
e aos jardins; — que, no tocante á situação topographíca, Queluz é, como lhe chamou
o marquez de Rezende, «o fundo de um alguidar.»
A propósito d'este fidalgo, diremos que os seus artigos publicados nos vol. XI c XII
do Panorama constituem a mais circumstancíada noticia que sobre o Paço c a povoa-
ção de Queluz se tem escripto.
Avulta no palácio uma correnteza de salas, vestidas de ricos espelhos, guarnecidas
de soberba obra de talha, e com o pavimento em magnifico xadrez de madeiras ou
mármores.
Entre todas as salas as mais notáveis pela magnificência são a das Talhas, que
primeiro foi destinada a screiíitis — concertos de musica — como a pintura detecto indica.
3o5 — Bellas— Estrada da Panasca
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
129
e depois a audiências e recepções solemnes; e a sala das Serenatas, que na sua appli-
cação substituiu aquella, e é a maior e mais sumptuosa de todas.
Historicamente, assignala-se outra sala, a de D. Qiiichote (nome que lhe vem do
assumpto dos medalhões decorativos tirado do livro de Cervantes) porque n'ella expirou
D. Pedro IV. . . no mesmo leito em que D. Miguel tinha estado em tratamento quando
partiu uma perna.
Conserva-se ainda esse leito^ aliás modesto ■ — com o seu cortinado branco em pavi-
lhão,Hsegundo o estilo da época.
Esta sala, que fica n'uma das extremidades do palácio, tem contíguo o oratório
particular.
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3o6 — Palácio de Queluz ,
A capella principal, situada 'no lado opposto dos jardins, abre uma porta para a
rua, e é espaçosa, alem de bem ornada.
N'uma das salas conserva-se também um dos melhores retratos, se não o melhor,
que de D. Miguel se conhecem. E' de corpo inteiro e a óleo: a mão esquerda firma no
chão a espada, e a direita suspende o tricorne de plumas brancas. Foi tirado em Vienna
d'Austria, em 1S27, por Giovanni Ender.
No theatro, construído sob a direcção do architecto Ignacio de Oliveira Bernardes,
representou D. Miguel o papel de protagonista na opera Vida de D. Quichote de la
Mancha, áo judeu António José.
Na «primeira parte» ou primeiro acto, scena III, D. Miguel entrava a cavallo, como
é da peça.
Os jardins e o parque são verdadeiramente principescos, teem, na realidade, alguma
coisa de Versalhes. Estatuas, vasos de mármore, lagos, tanques, duas grandes figuras
allegoricas, estufas, alamedas, pontes, casas de regalo e a cascata monumental dão uma
forte impressão de grandeza realenga.
Segue-se ao parque a tapada, separada por uma cerca]|de muros.
i3o
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Exteriormente o palácio é de mármore, ornado de columnas, balaustradas, esta-
tuas e vasos.
Em Queluz e em dependências do palácio está aquartelado um grupo de artilharia
a cavallo.
O segundo marquez de Pombal, Henrique José de Carvalho e Mello, mandou edi-
ficar, quasi em frente do paço real, uma casa de campo onde habitava quando estava de
serviço á rainha D. Maria I como gentil-homem da sua camará, durante os annos em
que a corte se fixou n'este paço.
Por que se chama Queluz ao sitio nem o marquez de Rezende com toda a sua
paciência de velho investigador o pôde descobrir.
Apenas logrou averiguar que tão impenetrável onomástico apparece pela primeira
vez n'um documento do século xvi.
rm4
.-■V.^'
307 - Jardim do pal.i
Em Queluz faz-se uma feira annual desde i a 3 de outubro, e ha mercado de gado
no i." domingo de cada mez.
Outro logar da freguezia de Bellas é Agualva (outr'ora Jarda).
Este logar fica a um kilometro do Cacem, e é principalmente conhecido pela grande
feira annual, que se effectua n'um terreno amplo e pedregoso.
Dura três dias a feira, começando no i." de maio.
A principio era apenas de gado — bovino, lanígero e cavallar. Hoje é franca.
Comtudo, n'ella abundam os objectos indispensáveis á vida agrícola dos saloios:
vasilhame, arreios, mantas á pastora, de cordão; peneiras, louças de barro, varapaus,
cutelaria, etc.
Uns annos por outros expludo alguma desordem brutal, que varre a feira n'um mo-
mento: assim aconteceu em 1906.
Melecas ', na estrada de Cintra a CoUarcs, hgar celebre pelo fabrico do mais fino
pão saloio, também pertence á freguezia de Bellas; bem como o logar de Massamá, que
já deu um titulo de visconde *, e o logar de Idanha, am])lo, com uma feira annual, e
outrosim engrandecido com outro viscondado ^. Neste logar ha um asyio de alienadas.
Passarei em claro alguns logares, para falar agora do de Agua Livre, recommenda-
vel pelo famoso aqueducto lisbonense; e do logar da Venda Sccca, onde merecem espe-
cial menção duas quintas.
1 Na freguezia de Rio de Mouro também h» um logar Jo mesmo nome.
2 Concedido ao medico Nuno Severo de Carvalho.
> Concedido a Francisco Moreira Freire Correia Manuel de Aboim, meu antigo arai({0.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
São ellas a do Grajal, a que já me referi; e a do Bomjardim, onde os marquezes
de Borba realisam todos os annos a também já mencionada funcção religiosa na capella
do palácio, havendo arraial tanto de dia como á noite.
A Venda Sêcca logra créditos de boa estancia de verão. São excellentes as suas
condições hygienicas e ha casas para alugar.
A freguezia de Rio de Mouro, orago Nossa Senhora de Belém, com 1.644 habitan-
tes, âca na estrada real de Lisboa, e o ramal de Cintra atravessa-a.
O logar do Cacem, d'onde parte o ramal, já lhe pertence.
Os seus principaes logares são,
alem do da sede da parochia e d'aquel- _ " '
le, os de Covas, Albarraque, Paiões,
Francos, Pexelegaes.
Quem segue o ramal do Cacem a
Cintra e entra na região, um pouco
árida, d'esta freguezia, vê á direita o
pinhal das Mercês, da casa Palmella,
sitio onde se faz no terceiro domingo
de outubro a grande feira que das
aMercês» tomou o nome.
A capella, consagrada a Nossa
Senhora d'aquella mesma invocação,
fica afastada do recinto da feira e ro
deada de frondosas arvores.
Durante a feira ha festa de igreja
e procissão.
Esta costuma organisar-se assim :
á frente a cruz alçada e os ciriaes ; de-
pois, algumas cachopas saloias com os
cargos ' á cabeça e a par d'ellas os
seus «conversados»; a irmandade acom-
panhando e conduzindo os andores de
Santo António, S. Sebastião, Senhora
do Bom Successo, S. José. Menino
Jesus, Senhora das Mercês; por ultimo
o Santo Lenho debaixo do pallio.
A procissão limita-se a dar volta ao largo do Cruzeiro.
A feira, como a de Agualva, é não só de gado, mas também de fructas, legumes,
louças, utensílios agrícolas, etc.
Dois costumes populares dão caracter especial á feira das Mercês : são as afama-
das frituras de carne de porco, petisqueira tradicional por coincidir com a época das
chacinas; e o «muro do derrete», pratica amorosa em que as gorduras suínas, antes in-
geridas, se evaporam na fornalha chammejante que o deus Cupido accende.
O tmuro do derrete» tem de extensão uns 5oo metros. Sobre elle, das duas ás cinco
horas da tarde, vêem sentarse as raparigas solteiras d'esta e outras freguezias do con-
celho. A's vezes não são menos de 200. E' uma exposição de noivas, um bazar maho-
metano de mulheres, arreadas com todo o seu melhor oiro — cordões, broches, brincos,
afogadores, medalhas, pulseiras e anneis.
3o8— A torre do palácio real de Queluz
' Fogaças.
l33
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Os rapazes, também entrajados ao garrido, e encostados ás escoras (varapaus) con-
tentam se com catrapiscar de longe as suas escolhidas, se n'esse anno as começam a
namorar, ou logram aproximar-se d'ellas e conversal-as se já no anno anterior, n'esta
mesma feira, se tinham declarado pelo olhar.
Quer dizer : o curso amoroso, segundo a tradição das Mercês, dura três annos : no
1.°, apenas olhadellas ternas; no 2.°, coUoquio cara a cara e ajuste de casamento; no 3.°,
a boda.
Durante o tempo que medea entre o i." anno e o 2.° anno parece que só os olhos
continuam a funccionar amorosamente.
No 2." o derrete é já de pilavras, e as raparigas podem consentir que os rapazes
as conversem a seu lado, sentados ou de pé.
No 3.° anno nunca se realisa a boda sem que passe primeiro a feira das Mercês,
porque é do rito que as raparigas tomem parte na procis.^^ão com os cargos á cabeça.
309— o mufO do derrete nas Mercc
Pode também acontecer. .. Pode, mas a tradição salvou-se, e o curso foi ostensi-
vamente de três annos, como, segundo ella, é mister.
N'esta freguezia de Rio de Mouro funcciona a antiga estamparia e tinturaria Cam-
bournac; e acha-se estabelecida, na quinta do Telhai, uma Casa de Saúde, dos Irmãos
Hospitaleiros de S. João de Deus, a qual recebe alienados.
A freguezia de Montelavar, orago Nossa Senhora da Purificação, tem 3.ot)6 habi-
tantes, e dista de Cintra 11 kil. para nordeste.
O logar sede da parochia c pequeno e de menor importância que alguns dos
outros que a compõem. Um dos partidos médicos do municipio de Cintra tem aqui a
sua sede, havendo também pharmacia. A principal loja de commercio é a do Barraco.
Ha uma philarmonica e uma associação de classe de canteiros e cabouqueiros. O sr.
Albogas, que é um dos mais ricos proprietários da freguezia, mandou construir, perto
do Montelavar, um engenho para serração mecânica da pedra. Ultimamente foi inven-
tado, para este mesmo fim, outro engenho.
A única solemnidade religiosa que se faz em Montelavar é a do Senhor dos Passos,
que reveste certa pompa.
Esta povoação está ligada por estrada com Pero-Pinheiro, que é, industrialmente,
o mais importante logar da freguezia pela exploração de pedreiras, a qual se estende tam-
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
i33
bem aos logares das Lameiras e Maceira. Nas Lameiras existe uma sociedade coopera-
tiva para aquella exploração.
Em toda esta região é muito accentuado o movimento socialista.
Pero-Pinheiro tem estação telegrapho-postal, e carreira de diligencias para a estação
do Sabugo e para a villa de Cintra.
Na estrada de Pero-Pinheiro a Cintra ha a quinta chamada Granja do Marquez *,
onde esteve installada a escola de regentes agrícolas, que actualmente funcciona em
Coimbra.
Parallela á Granja depara-se-nos a cascata da Bajouca, a que o povo dá vulgar-
mente o nome de Fervença.
Os mármores de Pero-Pinheiro
são variegados e finos, como attes-
tam os que foram empregados na
igreja e no convento de Mafra.
A cantaria tem sido applicada
em alguns dos principaes edifícios e
monumentos de Lisboa, como por
exemplo o ped^estal da estatua de D.
José e o Arco da rua Augusta.
A freguezia da Terrugem, orago
S. João Degolado, com 1.642 habi-
tantes, e muitos logares, dista de Cin-
tra 7 kil. para noroeste, e fica na es-
trada d'esta villa á Ericeira.
O sr. Gabriel Pereira descreve
a sede da parochia dizendo: «Povoa-
do alegre, amplo terreiro, igreja an-
tiga com sua alpendrada, e seu gentil
campanário do século xviii; pouco
adiante uma velhíssima ermidinha,
com portal em ogiva. Estamos em
pleno paiz saloio, onde apenas algu-
mas pequenas explorações de pedrei-
ras juntam fracos elementos á vida
agrícola. Ha poucas habitações dis-
persas, e nenhum povoado importan-
te.»
Comtudo o legar de Villa Verde, que Baptista classificou de grande, tem mais de
60 fogos.
A freguezia de S. João das Lampas conta 3.297 habitantes, e 32 povos ou logares,
segundo G. Pereira, postoque Baptista lhe não assignale mais de 27.
A sede da parochia assenta n'uma campina, 10 kil. ao noroeste de Cintra, e 5 a leste
da costa do mar.
Esta freguezia, como a da Terrugem, é atravessada pela estrada de Cintra á Ericeira.
G. Pereira refere-se a dois logares, Odrinhas e Alvarinhos.
Quanto á igreja de S. Miguel de Odrinhas, accentua-lhe a antiguidade, notando:
3io— Cintra— Egreja de Santa Mari
• Propiiedade do aarquez de Fombsil, hoje na posse da viuva de D. José Pombal.
• 34
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
«velha egreja, com as suas veneráveis antiguidades, o primitivo alpendre, o cemitério
medieval, e as suas lendas bem interessantes.!
Quanto a Alvarinhos, logar de formação granítica, e ao plaino que se lhe segue,
dá esta nota impressionista: tcasas saloias de construcção quasi cubica, escada exterior
para o sobrado, e telhado de quatro aguas; grandes lages formam as divisórias; uma
casa tem a sua porta abrigada por um alpendre formado por três lages, duas a prumo
e uma coberteira; cruzes de cal branca em muitas paredes, ás vezes muitas cruzes
n'uma só parede; algumas casas mais modernas e janotas com os cunhaes pintados a
azul e vermelho.»
Pela minha parte, acrescentarei apenas que o saloio da Terrugem e de S. João das
Lampas é talvez o de maior rudeza no concelho.
Isto se reconhece até nas habitações acima descriptas.
O concelho produz, alem dos vinhos de CoUares, trigo, centeio, milho, excellentes
legumes e hortaliças, bellas fructas — especialmente morangos, limões doces e maçãs.
Tem abundância de gado e caça; e fornece boa manteiga.
3ii — Queda d'agua nu l!.i.i' uc
IX
Concelho de Loures
o I.' volume, fim do capitulo V, passámos pela estação da Povoa de
Santa Iria, junto á linha férrea de norte e leste, e dissemos que
a povoação d'aquelle nome pertencia ao concelho de Loures.
Pois bem. Partindo d'ahi para o interior das terras, desenhe-
mos uma linha sinuosa que, dirigindo-se a Bucellas, siga para o
occidente por Montáchique e depois quebre para o sul limitando
os concelhos de Mafra e de Cintra até que, voltando ao oriente,
possa abranger o Lumiar.
Dentro d'este contorno teremos comprehendido o concelho de Loures, um dos mais
populosos do districto de Lisboa, com i5 freguezias completas, 2 incompletas e 22-320
habitantes.
Ao passo que a sua extrema septentrional se apoia quasi sobre o Tejo, a meridio-
nal continua a cidade de Lisboa pelo Lumiar e Ameixoeira.
A villa, cabeça do concelho, é o primeiro grande bairro saloio que se encontra para
alem do Campo Grande. Fica n'uma planície, 12 k. ao norte de Lisboa. Toda a fregue-
zia de Santa Maria de Loures comprehende 4.791 habitantes e, além da villa, mais de
vinte logares, alguns de importância — como, por exemplo. Canecas, Mealhada, e Pi-
nheiro. A principal artéria da villa é a rua-estrada que a atravessa por entre duas lon-
gas filas de prédios e lojas de commercio.
O movimento de vehiculos, especialmente carroças, não pára nem de dia nem de
noite. Uma forte caracterisação saloia accentua o typo dos homens e-das mulheres, que
labutam na villa ou que passam a pé, em carroça ou em burro. Mercearias, tabernas,
logares de fructa, ferradores constituem o grosso dos estabelecimentos. Mas ha outros
mais, de variado género — alimentando um commercio activo e intenso.
Fora d'isto, que imprime caracter, a villa não tem que ver. A igreja parochial, com-
quanto muito antiga, mas reconstruída em varias épocas, é singela e modesta. Edifícios
notáveis não os ha.
No Rocio de Sant'Anna, assim chamado por ter uma capella d'esta invocação, faz-
se em julho a importante feira ide Santiago», a que el-rei D. José concedeu muitos
privilégios.
i36
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
E' neste Rocio que os barraqueiros se instailam, e que se realisam as transacções
de gado vacum, cavaliar, muar e suino.
A feira das ovelhas circumscreve-se ao olival de Santa Maria.
Em volta de Loures ha boas quintas, com residências nobres, entre as quaes espe-
cialisaremos a grande propriedade que foi dos Mattas, correios-móres do reino, anteces-
sores dos marquezes de Penafiel.
O palácio tem magnificas salas — de jantar, de musica, de dança, dos Apóstolos —
e capella com altos rodapés de azulejo, estuques, pinturas e obras de talha.
A cozinha faz lembrar as m.elhores do reino, a de Alcobaça por exemplo.
Hoje, palácio e quinta pertencem ao snr. Cunha, negociante em Lisboa.
3i2— Vista geral de Odivellas
O logar de Canecas é uma linda e sadia aldéa da freguezia de Loures, com um
bello largo arborisado, que tem o nome de Vieira Caldas, ' e pittorescos passeios taes
como o Alto do Masqueiro — d'onde se avista a bahia de Cascaes — o Pinhal do Verde
e o Salão.
Ha uma capella da invocação de S. Pedro, cujo culto é custeado pelos canecenses.
N'ella se fazem três festividades : a do orago, a de Nossa Senhora do Rosário e a
de S. Sebastião.
A população d'esta aldéa orça por 700 habitantes, em Soo fogos.
As mulheres, no gerai, são lavadeiras. Os homens applicam-se á agricultura — ás
suas hortas e á creação de viveiros de arvores fructiferas, que são d'aqui exportadas
em larga escala ; ou ao fabrico de navalhas de volta, espécie de pequenas podôas muito
usadas nos trabalhos agrícolas.
As aguas férreas de Canecas, especialmente as das nascentes do Çamora e do
Caldas, teem vantajosa applicação no tratamento das dyspepsias.
Para os doentes ou para os convalescentes, bem como para os veraneantes, ha re-
gulares acommodações em dois hotéis e casas de aluguel.
Entre as melhores propriedades de Canecas avulta a quinta do Bretão, onde o sr.
Carlos Appleton, seu dono, tem introduzido todos os últimos melhoramentos agrícolas.
' António Vieira Caldas, já fallecido, sacrificou grande parte dos seus haveres aos melhoramentos
de Canecas.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
107
Fazem-se n'esta localidade duas feiras annuaes: na 1.* oitava da Paschoa e no dia
de S. Pedro.
D'ellas, a ultima, havia cabido em desuso e foi restabelecida, com grandes festejos,
em igoS, por esforços de uma commissão.
Tem a povoação uma banda de musica, que se intitula Real Fanfarra de Cane-
cas ; estação telegraphica, medico, pharmacia, escola otScial, talho e varias mercearias.
O ideal dos canecenses é desligarem-se de Loures e erigirem uma parochia na sua
capella de S. Pedro, onde desde lySi, por auctorisação do arcebispo de Lacedemonia
D. José, é permittido ministrar os sacramentos, exceptuados o baptismo e o matrimonio.
Com este antigo ideal se relaciona a alcunha de animaes ou alimaes que os outros
saloios puzeram aos de Canecas.
3i3— Igreja da Povoa de Sanio Adrião
Contam-se a este respeito duas versões. Diz uma que os canecenses, sonhando
sempre com a sua autonomia parochial, tratavam de escolher sitio na capella para col-
locar a pia baptismal, e que uns diziam — deve ser aqui; outros — deve ser acolá; ha-
vendo alguém que dissesse — ali mais: d'onde, constando o caso, lhes proviria a alcunha.
Outra versão refere que certo pregador dissera na festa de S. Pedro, celebrando o mi-
lagre de Canecas ter sido preservada n'uma recente epidemia: aPor isso animaes os
vossos lilhos, animaes as vossas mulheres á pratica d'estes cultos, etc.»
Este pregador devia ser de Canecas.
E' de suppor que a origem da alcunha fosse apenas o despeito de Loures.
O que é certo é que na capella de S. Pedro ha logar reservado para uma pia ba-
ptismal, e que não faltam na mesma capella boas alfaias, incluindo uma custodia artisti-
ca — estilo D. Maria I — nem um sacrário onde se guarda o vaso das sagradas partí-
culas.
O arco do cruzeiro é de mármore extrahido das pedreiras de Canecas.
A capella, alem de ampla, tem bastante luz.
Quanto á etymologia de Canecas, o mais que se pôde apurar é que os antigos es-
creviam Cainessas.
A povoação fica n'ura alto, a que dá accesso uma Íngreme estrada. Communica
com o Lumiar por uma carreira de char-à-bancs.
O Lumiar é, por emquanto, o limite da tracção eléctrica de Lisboa, na zona do
Campo Grande.
i38 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O logar da Mealhada, em parte comprehendido n'esta freguezia, teve um con-
vento de arrabidos, fundado em ib-]b por Luiz de Castro do Rio.
O logar do Pinheiro de Loures, n'uma planicie, talvez distante da villa um kilome-
tro, constitue um bom grupo de casas, algumas de regular apparencia.
Mencionaremos ainda, na freguezia de Loures, o logar de Monie-Mór, que tem no
alto uma capellinha de Nossa Senhora da Saúde, á qual se dirigem muitos romeiros no
I." domingo de setembro.
O saloio d'este logar é alcunhado «animalmór» pelos da sua raça.
E agora, que da freguezia de Loures vamos passar a outras do concelho, diremos
que o viscondado de Loures foi concedido em i85i a Angelo Francisco Carneiro, anti-
go negociante no Brazil •, e que em iSSg foi o mesmo titulo renovado na pessoa de seu
filho, cuja viuva é a actual viscondessa de Valmôr.
Das freguezias do Lumiar e da Ameixoeira apenas uma parte insignificante perten-
ce ao concelho de Loures; a maior parte está incluída no 3.° bairro de Lisbca, para on-
de as reservamos.
As pequenas freguezias de Friellas (S. Julião) com 279 habitantes e Povoa de Santo
Adrião com 435 encontram-se na estrada do Lumiar a Loures.
Na primeira, muito antiga, havia um paço real que o condestavel Nun' Alvares veio a
possuir e onde, em i de novembro de 1401, fez doação de avultada parte dos seus bens
a sua filha a condessa D. Beatriz, quando a casou com D. AfFonso, bastardo de D. João L
Alem do logar principal, a mesma freguezia comprehende o da Ponte de Friellas ;
e parte do da Mealhada: n'este o marquez da Praia (Duarte) possuiu a quinta do In-
fantado e a sr.' D. Maria Luiza da Costa Cabral possue a quinta do Convento.
E' nas vastas pastagens de Friellas que as manadas de touros bravos costumam
refazer-se antes de entrarem na Praça do Campo l'equeno.
A freguezia da Povoa de Santo Adrião, cuja igreja parochial apenas se recommen-
da por um portal manuelino, comprehende algumas quintas, sendo uma d'ellas a dos
Sete Castellos. Os parochianos são conhecidos pela alcunha de Kiigados.
Seguindo caminho para Bucellas, depois de termos atravessado a villa de Loures,
que já conhecemos, passamos por outras duas freguezias, os dois Tojaes, Santo Antão
e S. Julião (também chamado Tojalinho).
A de Santo Antão tem i.SSg habitantes, pharmacia, medico e uma antiquíssima
igreja, ampliada pelo arcebispo de Lisboa D. Fernando de Vasconcellos e reedificada
magnificamente pelo patriarcha D. Thomaz de Almeida.
Foi também aquelle arcebispo que fundou aqui um palácio da mitra, e foi também
D. Thomaz de Almeida que o restaurou dando grandeza tanto ao edificio como aos
jardins. Hoje o palácio está em ruinas.
Pertence á freguezia de Santo Antão do Tojal o logar de Pintéos, que adquiriu
foros litterarios pelo facto de aqui ter residido durante annos a sr.* D. Maria Amália
Vaz de Carvalho.
Em Pintéos se reuniu por vezes uma corte de poetas românticos, sendo um d'el-
les Thomaz Ribeiro, que em 18G6 aqui saudou a illustre escriptora dizendo:
Brindo á musa destes bosques !
brindo no seu estro divino I
brindo ao próspero destino
que Deus conceda ao seu lar I
a seus pães ! á irmã formosa,
coração de fina essência!
á família — providencia
dos povos d 'este logar !
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
i3<j
O palacete, onde a «Musa de Pintéos» residiu, tem aspecto nobre, oito janellas de
frente, brazão de família, terraço, e portão.
Na encosta fronteira alvejam as velas de alguns moinhos-de-vento.
Entre o edifício e a encosta corre, saltando sobre calhaus, o rio de Pintéos, que as
lavadeiras frequentam.
O logar é pequeno, insignificante, mas bem parecido na sua amena solidão.
Na capella do palácio— que tem altos rodapés de azulejo e rica obra de talha -faz-
se todos os annos a festa da Senhora da Apresentação, celebrada pelo povo d'aquelle
logar e outros próximos, em acção de graças pelo resultado da colheita annual. Esta
festa, com o seu arraial, dura três dias.
3i^ — Loures— Fachada do Pal&cío do «Correio-Móri.
A freguezia de S. Julião do Tojal ou Tojalinho tem um lindo logar, o Zambujal,
gracioso grupo de casas e arvores reclinado n'uma encosta.
Ha aqui uma industria feminina — a de meias de linha feitas á machina.
Entre os logares do Tojal e do Zambujal fica a celebre fabrica de papel da Abe-
lheira, que vitalisa industrialmente a freguezia.
O papel da Abelheira — quem me dera no tempo em que eu o ouvia apregoar no
Porto por vendilhões ambulantes ! — o papel da Abelheira, que deve ter feito muito mal
á humanidade como todo o papel, fez bem ao Tojal de S. Julião, ao Tojal de Santo
Antão e até ao Zambujal, onde também recrutou operários e operarias.
Um dos proprietários da fabricajé o sr. Guilherme Graham, e tem a sua casa de re-
sidência junto ao Zambujal. Vivenda principesca, com largas fachadas, e jardins adja-
centes.
Sente-se o bom gosto britannico ali: na escolha do local, pinturesco e abrigado; na
sóbria elegância do edificio; no grave desenho dos jardins.
Assim, pode viver-se n'uma aldêa. Os inglezes sabem viver em toda a parte.
Instituiuse na fabrica da Abelheira uma caixa lie soccorros aos operários, com
serviço clinico, tanto mais necessário quanto é certo haver por aqui algumas febres pa-
lustres.
O onomástico — Tojal — suggere-me a lembrança de que o i." barão e i.° conde
d'este titulo foi João Gualberto d'01iveira, filho d'aquelle dr. Oliveira, medico da real
camará, que tanto se sacrificou para encobrir a responsabilidade de D. João VI na única
I40
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
aventura de amores aristocráticos que este pobre rei perpetrou em toda a sua vida '.
A freguezia de Buceilas, orago Nossa Senhora da Purificação, com 2:617 habitan-
tes, é conhecida não só em todo Portugal, como também no estrangeiro, pela fama dos
seus vinhos.
Encontram-se n'esta região vestígios da época romana — taes como o tumulo que
está no adro da igreja, as ruinas de um templo na Romeira de Baixo, moedas do Im-
pério, incluindo uma de Nero; e até porventura o próprio nome de Buceilas poderá ser
um d'esses vestígios.
O mais antigo logar da freguezia é o de Villa de Rei, cujos habitantes, diz a tra-
dição, tendo visto brilhar de noite uma luz a distancia, foram investigar o que seria, e
3i5— o rocio de Buceilas
acharam uma imagem de Nossa Senhora. Contentes com o achado, trouxeram a imagem
para a sua capella de S Roque, mas ella fupu de lá, e a luz continuou a brilhar no
antigo sitio, pelo que se entendeu que Nossa Senhora queria ali um templo. Fizeram-
lh'o. E' desde então a igreja parochial, de três naves, divididas por oito columnas, so-
bre as quaes se firma a abobada.
Um arco de cantaria dá entrada para o adro, como a nossa estampa 317 representa-
A maior festividade que se realisa n'esta igreja, e em Buceilas, é a do Anjo Cus"
todio.
A villa tem um rocio, onde todos os domingos se faz mercado, e onde ás vezes toca,
no coreto, a philarmonica bucellense.
Também ha um theatrinho, para récitas de amadores e de companhias ambulan-
tes. Já aqui assisti a um espectáculo, n'uma gelada noite de dezembro: o enthusiasmo
era grande, mas o frio não era menor.
Parece que no século xvii funccionou n'esta villa uma typographía, pois co logar de-
signado na Arlc de Reinar do padre António Carvalho de Parada — que foi prior da
mesma villa e guarda mór da Torre do Tombo— como sendo aquelle em que se imprimiu
a referida obra (1643).
Buceilas é um sitio aprazível, uma bonita aldêa, posto que sem hori;(ontcs para além
' Contamos a historí.1 d'esta aventura na Uiiima côrle do absolutismo em Portugal, pag 56.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
das serras que a rodeam. Mas é ampla e asseada; tem vida, que lhe vem do tráfego
vinícola; campos verdejantes de vinhedos; um rio, o Trancão, sombreado de choupos,
que vae desaguar no Sacavém; alguns passeios agradáveis, como por exemplo aos dois
logares de Villa de Rei e do Freixial, que são os que mais chamam a attenção dos fo-
rasteiros.
Recommenda-se o primeiro por ficar perto da villa, sobre uma estrada plana.
O segundo, situado no Valle de S. Gião, é um lindo retalho do Minho, abundante
de vinhas e pomares, fresco de agua e de sombra.
Nos meus apontamentos de viagem encontro esta nota impressiva:
«Chegamos ao Valle de S. Gião, que tem o que quer que seja de paizagem mi-
*.^fcÉÍ.
^ . i
I1B
?i(j-Bucellas— Logar do Freixial
nhôta. Basto arvoredo ensombra chalels modernos. Cruzam-se ali duas estradas n'uma
espécie de rotunda elegante. Os accidentes do terreno, muito variados, dão vida e ale-
gria ao sitio, sorriem aos olhos, deleitam o espirito.»
Dentro d'este valle o Freixial, com as suas casas muito brancas rompendo por en-
tre a verdura, canta na belleza da paizagem.
Dos outros logares da freguezia não tenho recordação nenhuma.
Os vinhos de Bucellas, sobretudo os brancos, merecem a fama que teem.
Não ha jantar distincto em que se não tome sobre o peixe um copinho de Bucellas
branco — feito especialmente d'uma casta: o arintho.
O professor Aguiar disse nas suas Conferencias que este vinho era «o mais cara-
cterístico e bem conceituado entre os vinhos portuguezes actuaes». (1876).
Recentemente (1902), n'uma conferencia realisada em Lisboa na Sociedade de Geo-
graphia, um afamado professor estrangeiro, mr. Viala, fez a apologia do Bucellas branco.
Os principaes viticultores da freguezia são as viuvas Quintão e Rodrigues; os srs.
António Sottomayor, João Carlos de Azevedo e Augusto Freire.
Pouco tempo antes de morrer. Quintão (o popular Quintão do Lorêto) mandara
construir grandes adegas, situadas na rua Marquez de Pombal,
A propósito d'este nome — do marquez — quero dizer por incidente que a memoria do
famoso estadista é muito querida dos bucellenses.
Conta-se que o marquez passara por aqui quando ia para o desterro de Pombal.
Apupado n'algumas povoações do Termo, foi n'esta recebido com respeito e cortezia,
142 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
pelo que dissera commovido: -Se eu voltar ao poder, Bucellas tornará a ser Bucellas.
Referia se ao tempo em que a villa tinha coUegiada e fora padroado da Coroa.
Mas o marquez de Pombal não voltou ao poder, infelizmente para Bucellas... e
para todos.
Os principaes negociantes de vinho são os srs. João Camillo Alves, Francisco Ra-
phael Pinto Pessoa e Augusto Freire.
Este ultimo também possue no rocio um dos complicados estabelecimentos de pro-
víncia que vendem tudo — e o mais.
Não ha em Bucellas nome de maior popularidade: é, para todos os effeitos, o Au-
gusto.
Nunca me esquecerei de que foi n'este estabelecimento que eu encontrei um dia..,
(imaginem, se são capazes) um philologo brazileiro, João de Castro Lopes, filho de ou-
tro escriptor dos mesmos appellidos— certamente mais conhecido no Brazil. •
Por que estava elle em Bucellas ? Porque era casado com uma senhora bucellense,
que precisara de ares pátrios.
Muito amável, Castro Lopes prometteu me o seu livro Palestras com o povo, que
estava a imprimir em Lisboa, e que saiu em igoi.
Recebi os dois volumes d'essa obra, e quando procurei o auctor para agradecer-
lh'os — tinha morrido!
As principaes quintas da freguezia são a da Romeira de Cima, do sr. conde da Ri-
beira (Vicente); a da Romeira de Baixo, onde reside habitualmente o illustre professor
da Escola Medica de Lisboa dr. Bettencourt Raposo; e a de Valverde, da família Sot-
tomayor.
Para vir de Lisboa a Bucellas escolheremos um de dois caminhos: pelo Lumiar,
d'onde se faz carreira de diligencia, ou pela estação de Alverca, onde é preciso ter um
trem.
Esta ultima jornada c a mais pittoresca, pois que a estrada que da estação conduz
a Bucellas offerece lindos pontos de vista, especialmente na Cabeça da Rosa.
Na villa havia um hotel— do Machado — que servia á falta de melhor; ultimamente
vi nos jornaes que também ha um Hotel Peti^,
O titulo de visconde de Bucellas foi concedido em 1870 a Cândido José Mourão
Garcez Palha, natural de Gôa; e renovado em 1878 na pessoa de seu filho Joaquim.
A freguezia de Fanhões fica na serra. Tem por orago S. Saturnino e apenas 279
habitantes.
Junto á igreja parochial vi alguns prédios novos e garridos. Percorri os logares de
Cazainhos, Torre da Bizoeira— logares pequenos — e passei deante da Cabeça de Mon-
táchique, altura que tem sido aconselhada para o tratamento da tuberculose.
Mas o clima é húmido, o terreno saibroso, e a altitude inferior a muitas outras do
nosso paiz. Da Cabeça avista-se Lisboa e o Tejo.
Mais em baixo fica a povoação de Montáchique, que tem um hotel com uma vasta
cerca annexa, e que já pertence a outra freguezia.
E' a de Louza (S. Pedro), com 1.634 habitantes, comprehendendo Louza de Cima
e Louza de Baixo. Na de Cima— a 12 kilometros de Loures— fazem-se em julho pompo-
sos festejos a Nossa Senhora do Rosário, os quaes são abrilhantados pela philarmonica
União Lou'{cnse.
A freguezia de Odivcllas, sem embargo de ser populosa, apenas se tornou notável
pelo seu real mosteiro, e este pela sua tradição de escandalosos amores.
' S80 do pae as Origens de anexins, protoquios, locuções populares, sintas ctc, muito anecdotic
mas interessante, e erudito.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
ii3
E' Odivellas um agraJavel passeio para uma tarde de verão. Pois rode em boa hora
o nosso trem pela avenida do Lumiar e desça a calçada de Carriche.
Já não podemos, em Odivellas, visitar os aposentos que foram da celebre madre
Paula, amante de D. João V, e que ficavam situados sobre a casa do Capitulo. D'esses
aposentos, a maior parte foi arrasada pelo terremoto de 1755, e a restante desappare-
ceu com as obras que se fizeram no mosteiro anteriormente a julho de 1888.
Mas se já não podemos visitar esses sumptuosos aposentos, podemos, comtudo, al-
cançar d'elles circumstanciada noticia em vários livros, que eu indicarei aos curiosos '.
O próprio mosteiro passou ultimamente por mais uma transformação para ser ada-
ptado ao seu actual destino: n'elle se acha installado desde 1902 o instituto, fundado pelo
sr. infante D. Àflonso, para educação das filhas dos officiaes fallecidos no ultramar.
317-A igreja de Bucellas— A' sabida da missa
Portanto, pouco ha que vêr do tempo das freiras bernardas, a não ser a sua igreja.
Comtudo alguma coisa nos sabe ainda á vida freiratica — são os bolos, suspÍ7-os e
esquecidos, é a marmelada, que se fabricam no logar por tradição monástica.
Mas vínhamos em caminho, e não tínhamos chegado a Odivellas: descíamos a cal-
çada de Carriche.
Já descemos. Passamos agora pelo Senhor Roubado, cujo oratório recorda o sitio
onde um paranóico sacrílego do século xvu veiu esconder os objectos sagrados que, em
certa noite, roubara da igreja matriz de Odivellas.
Este desacato causou grande sensação não só em Lisboa, mas em todo o reino,
como nos descreve o auctor das Monstruosidades do tempo e da fortuna *.
Durante alguns mezes se mallograram todas as diligencias da policia da corte para
descobrir o criminoso. A final foi elle mesmo que se metteu na bocca do lobo, indo pi-
lhar gallinhas dentro da cerca do mosteiro em Odivellas, onde uma noite o apanharam,
' Manuscriptos de Coimbra e Lisboa, citados nas Amantes de D. João V. C. Castello Branco, (.a-
veira da martyr, vol. I, pag. 212; Borges de Figueiredo, O mosteiro de Odivellas, pag. 126; Ribeiro Gui-
marães, Summario de varia historia, vol. II, pag. 67 ; Bernardes Branco, As minhas queridas freirinhas
de Odivellas, pag. 343.
^ Pag. i63.
•44
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
achando lhe ainda na algibeira a cruzinha que rematava a pyxide— um dos objectos pro-
fanados.
Foi um congregado pauhsta, o irmão António dos Santos Prazeres, quem, passando
n'este sitio em 1742 e vendo uma simples cruz de pau a assignalar o logar onde o roubo
estivera escondido, se lembrou de a substituir por um padrão, o que esforçadamente
conseguiu. '
Mais tarde erigiu-se o oratório, que ainda vemos hoje.
E continuemos o nosso passeio.
Finalmente, avistamos a povoação de Odivellas, parte na planicie e parte na en-
costa de um outeiro, sobre o qual se eleva o lindo monumento ogival, a Memoria^ que
3i8— o rodo de Bucellas em dia de merca lo
provavelmente serviu para descansar o féretro de D. João I quando foi trasladado de
Lisboa para a Batalha.
Odivellas tem bons prédios e boas quintas— algumas nobres.
A igreja parochial era pequena e antiga A actual data do tempo de D. Pedro 11
seu fundador. E' da invocação, do Menino Jesus.
Relativamente moderna, prende menos a attenção do visitante que a das freiras —
obra do scculo xiv.
Foi D. Diniz que mandou erigir o mosteiro e a igreja, n'uma quinta que possuií
n'este logar, e diz-se que o fizera em memoria de ter podido livrar-se das presas de un
corpulento urso que o derrubou ferozmente quando o monarcha andava caçando en
Belmonte.
O templo, de trcs naves, foi por varias vezes reconstruido, especialmente no rei
nado de D. João IV e depois do grande terremoto, pelo que só escassos vestígios res
tam da sua primitiva fabrica.
Não tem bellezas architectonicas, nem primores de esculptura; o melhor titulo qu
hoje o recommenda á consideração do visitante é o tumulo de elrei D. Diniz, com
estatua do monarcha deitada sobre a tampa.
' Veja- se a Historia do Senhor Rouhaio de Oiivillas, pelo padre Luií Montez Matozo, 1745.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
145
Mas, santo Deus! este tumulo, que devia ter sido restaurado com a maior fidelidade
possivel, foi quasi ridiculamente recomposto no século xix.
Digamos em duas palavras a sua historia.
Mandou-o fazer o próprio D. Diniz para seu eterno descanso, poucos annos depois
de concluído o mosteiro.
Foi então collocado ao meio da igreja, mas no decurso do tempo as freiras passa-
ramno para o lado da Epistola, porque lhes tolhia a vista do altarmór.
Por occasião do terremoto de 1755, a abobada do templo desabou sobre elle e mu-
tilou-o gravemente.
Na reconstrucção que se fez depois, foi levado para a pequena capella em que
actualmente se encontra.
319— Bucellas— Sulphatagem das vinhas
Reinando D. Pedro V, a rainha D. Estephania ordenou que o restaurassem, mas
esta louvável resolução não podia ser cumprida com maior desacerto.
Puzeram á estatua uma cabeça de gesso, no qual ficou envolvido um fragmento do
antigo rosto, que bem poderia ter sido aproveitado como elemento de reconstituição.
As mãos e os pés também são de gesso.
Do primitivo moimento apenas restam os frontaes lavrados de ornatos que re-
presentam figurinhas de frades de Cister, dois a dois, dentro de nichos e com livros
fechados nas mãos, mas os que ficam aos pés de el-rei sustentam nos braços um cofre.
Apoia-se o tumulo sobre seis animaes, parecendo algum d'elles mastim; outro seria
o ur50 da lenda empolgando um homem que se libertou cravando-lhe um punhal.
Parece que primitivamente houve sobre a tampa mais duas figuras alem da do rei-
Uma, segundo Frei Francisco Brandão na Monarchia Lusitana, representaria S. Diony-
sio ou Diniz, padroeiro do convento.
Assim jaz, n'um tão abandonado moimento, esse antigo rei, que foi um poeta, que
foi um agricultor, que foi o primeiro instrumentista da nossa lingua-, ou, como disse An-
tónio Ferreira :
Santo Diniz na fé, nas armas claro.
Da pátria pai, da sua lingua amiso,
D'aquellas Musas rústicas amparo.
146
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A capella-mór da igreja é de forma circular e revestida de mármore.
Por longo tempo se conservou no vestíbulo, embebida na parede, uma grande bala
de pedra, das que os turcos empregaram no ataque á fortaleza de Ormuz e que D. Ál-
varo de Noronha, capitão d'essa praça em i552, offereceu a S. Bernardo alguns annos
depois (ibSy).
Hoje este pelouro, com a respectiva inscripção, achase depositado no Museu de
Artilharia, em Lisboa.
Os habitantes de Odivellas teem, entre os saloios, a alcunha de Rapacaldos.
Ha um visconde de Odivellas: é o sr. Eduardo Moreira da Silva Araújo.
Mencionemos agora as freguezias do concelho de Loures que ficam mais próximas
3jo— Tumulo de D. Diniz, em Odivellas
do Tejo, com excepção de duas, Sacavém e Santa Iria da .\zoia, de que já falamos no
i." vol. (pag. 96 e seg.).
São elias Appellação, Camarate, Talha e Unhos.
A freguezia da Appellação tem 874 habitantes.
Está situada n'uma baixa, entre montes ; comtudo é salubre e agradável.
Já era parochia no século xvi, mas pouco tem prosperado.
Orago, Nossa Senhora da Encarnação. Quando havia epidemias, o povo fugia para
aqui, onde o contagio não costumava entrar. Os fugitivos appellavam assim para Nossa
Senhora da Encarnação. Diz-se que d'este facto veio o nome á freguezia.
A de Camarate conta C06 habitantes, e Santiago Maior é o seu orago. A
parochia teve começo n'uma ermida, construída no século xiv, e ampliada no xvi. A po-
voação principal está assente em terreno montuoso. Ha mais dois logarcs, que são
Vai de Freiras e S. Pedro. Os carmelitas calçados tiveram n'esta freguezia um conven-
to, de Nossa Senhora do Soccorro, fundado n'uma quinta que pertencera ao santo con-
destavel D. Nun'Alvares Pereira.
A ESTREMADURA PORTUGUESA
'47
O titulo de visconde de Camarate foi concedido em 1870 a Hermenegildo Augusto
de Faria Blanc, fallecido em 14 de janeiro de 1882.
A freguezia de S. João Baptista da Talha, com 5ii habitantes, está situada a 7 kil.
dos Olivaes, para o norte. E' antiga. Comprehende os logares de Bobadella, Vai de Fi-
gueira, Talha Grande, Talha Pequena. Na sua área ha algumas quintas importantes.
A freguezia de S. Silvestre de Unhos, a sudoeste da anterior, tem 499 habitantes.
Júlio César Machado, nos Passeios e phaiitasias, consagra uma pagina á igreja pa-
rochial dizendo : « . . . situada em um largo no centro da povoação, obra aritiquissima,
cujas paredes exteriores são tão grossas, que me assegurou o prior que poderiam rodar
3ai— Arco de Odivelas
sobre ellas dois carros de bois emparelhados, sem perigo algum! O tecto, que era de
cantaria, abriu todo pelo terremoto de 1755, conservou-se assim por muitos annos, até
que abateu um dia, e é hoje de madeira. O templo é espaçoso, alto, e alegre; tem seis
altares, alem da capella-mór, e o baptistério •, por cima do arco do cruzeiro da capella-
mór ha outra capella da invocação de Jesus: a primeira capella do lado da epistola en-
trando na egreja, é da invocação de Nossa Senhora da Piedade, e tem na cantaria, ao
lado do evangelho, a seguinte inscripção : — Hsta capella de Nossa Senhora da Piedade
é do padre Leonardo Anues, tem missa quotidianna por sua alma. Ha na egreja uma
devota relíquia authentica do glorioso S. Silvestre papa, n'uma pequena custodia de
prata doirada, a que o povo consagra grande fé ; e existe também uma espécie de poço,
hoje sem uso, onde vinha ter a agua do poço do concelho d'este logar, que a gente de
differentes sitios vinha procurar em romarias de muita nomeada, como agua de grande
virtude para as moléstias de pelle !»
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Como foi Júlio Cesar Machado parar a Unhos? Por causa de um jantar no campo,
realisado em Catojal (logar da freguezia de Unhos) n'uma quinta de Francisco Aflonso
do Nascimento. Passavase isto antes de 1862. O espirituoso folhetinista transportou-se
em caminho de ferro até Sacavém e d'ahi ao Catojal — que são três quartos de légua —
bifurcado n'um burro. D'esta parte da jornada disse Júlio: «o caminho é Íngreme e
fastidioso, mas o que vale é não haver nada que admirar. Ah! Quando ha que admi-
rar, então é melhor morrer t» E' bem um relâmpago do seu espirito, esta phrase. De-
pois dá-nos a impressão do Catojal : « . . . um sitio alto e vistoso, lavado d'ares, com
boas aguas, e que foi outrora um povoado de fama; hoje, porém, — decadência sensí-
vel ! — tem poucos habitantes, e as casas estão pela maior parte demolidas. O nome
julga-se mourisco, e acha-se escripto antigamente por diversas formas, taes como —
Cacojal,— Cachojal, — Cachijal, etc.»
Gloria a Unhos e ao Catojal, que foram descriptos pelo maior folhetinista do nosso
tempo.
Sob esta boa impressão deixemos o concelho de Loures, rico em vinho e azeite,
em cereaes, legumes, hortaliças, fructas — especialmente alperches, laranjas e limões;
abundante de excellentes aguas ; e por todos estes motivos um dos mais prósperos do
districto de Lisboa.
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332— Trecho de puis:igcni saUM:i
II-JÍs porias da capital— Cidade de Lisboa
-Entre Belem e Cascaes
X
Povoações suburbanas incluídas
no 3.° bairro de Lisboa
RATAREMOS apcnas das principaes, sem nos guiarmos pela circum-
vallação fiscal da cidade, mas somente pela circumscripção ad-
ministrativa.
Já no vol. I falamos do Beato e Olivaes, que estão com-
prehendidos no i." bairro.
Pelo que respeita ao 4.° bairro, Belem, que d'elle faz agora
parte, deixou de ser o antigo arrabalde do occidente para con-
stituir a continuação d'esse bairro sem nenhuma solução de continuidade no arrua-
mento dos prédios.
No 3." bairro entraram importantes povoações suburbanas, que teem tido grande
desenvolvimento, e é d'essas que vamos tratar rapidamente.
O Campo Grande está hoje ligado á cidade não só pela velha estrada do Arco do
Cego, mas também pela Avenida Ressano Garcia, artéria central dos novos e lindos
bairros que se ramificaram da Praça Marquez de Pombal na Avenida da Liberdade.
Seguindo o caminho antigo, pelo Arco do Cego, queremos notar, de passagem,
que o padrão commemorativo da paz conseguida pela Rainha Santa entre seu marido
e seu filho, foi ultimamente restaurado, como indica esta inscripção addicional :
NO REINADO DE D. CARLOS I
SENDO MINISTRO DA GUERRA
O GENERAL L. A. PIMENTEL PINTO
FOI RESTAURADO ESTE MONUMENTO
JULHO DE 1904
Passamos o Campo Pequeno, deixamos á esquerda a «Praça dos touros», atraves-
samos a linha férrea em Entre-Campos, onde está edificado o Mercado Central de Pro-
i5o EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
duetos Agrícolas, e eis-nos no antigo Alvalade, Campo Grande, com as suas vastas ala-
medas de 2 kilometros de extensão, a sua igreja parochial dedicada aos Santos Reis,
a sua Fabrica de lanifícios, o seu As^ylo feminino de D. Pedro V, as suas duas ruas,
oriental e occidental, marginando o Campo com os alinhamentos de chalels, de quintas
e de palácios, um dos quaes, o do Pimenta, a oeste, diz a tradição que fora da Madre
Paula, de Odivellas, mas eu não juro. '
São mais de 2:000 os habitantes d'esta freguezia, muitos d'elles agrupados no aro
do Campo.
Continuando pela rua oriental' entramos na alameda do Lumiar, também ladeada
de chalels e quintas, cujos jardins, terraços ou mirantes se alteam pomposamente sobre
a estrada.
Quão differente está hoje esta alameda do que foi ha trinta annos, maiormente do
que seria quando D. Francisco de Castello Branco a mandou fazer n:> anno de 1682!
Também a freguezia do Lumiar tem mais de 2:000 habitantes, e suas fabricas —
de productos chimicos e de tecidos.
Por occasião da festa de Santa Brizida, a 2 de fevereiro, realisa-se no Lumiar
uma grande feira de gado, que se estende pelos largos de S. João Baptista e da Marqueza.
E' costume os lavradores enfeitarem as cabeças das rezes com rolos de cera ama-
rella, que compram na igreja, e darem depois com as rezes, assim enfeitadas, três vol-
tas em redor da mesma igreja.
Semelhantemente ao que vimos em outras regiões da Extremadura, este costume
tem por origem a crença de que Santa Brizida, protectora dos gados, os preservará de
enfermidades perigosas.
Também são oíferecidos á Santa, como testemunho de agradecimento pela cura
de rezes que estiveram doentes, pequenas formas de cera que as representam.
Entre os muitos logares de que se compõe a freguezia de S. João Baptista do Lu-
miar, todos elles povoados de quintas magnificas, avulta o do Paço do Lumiar, onde
se assignala a propriedade dos duques de Palmella, parte da qual estaria outr'ora annexa
ao Paço que foi de Affonso III e depois de um seu neto illegitimo, Affonso Sanches
— Paço que deu nome ao logar. '
Tem palácio, grande pavilhão, jardins em socalcos, estufas, arvores seculares co-
brindo extensas avenidas.
Outro palácio e quinta são do conde do Paço do Lumiar: aqui veio convalescer
em 1861 o infante D. Augusto.
Mas n'este e demais logares da freguezia, em todos elles, as quintas e casas nobres
abundam — e as burguezas já não são poucas também — de modo que seria precisa
uma vasta monographia para lhes fazer larga referencia.
Em seguida á alameda, na rua direita, acha-se installado, em edifício próprio, o
Asylo da Infância Desvalida do Lumiar.
Uma anecdota explica assim a origem da palavra Lumiar: Sempre que D. João V
aqui passava em caminho de Odivellas, um pobre velho baldadamente tentava falar-lhe.
Certo dia, talvez o medico de que o rei se fazia acompanhar, lembrou a D. João V que
esse infeliz ancião apenas lhe quereria dizer duas palavras. O monarcha consentiu em
ouvil-as comtanto que só fossem duas — porque ardia em pressa de vêr a sua triguci-
rinha de Odivellas. Então o velho haveria dito ■— Enregelo, asphyxio — e D. João V
ter-se-hia limitado a responder — f.ume, ar. E' possível esta resposta, porque o rei
' Este palácio ficará incluído no pro)ectado bairro Europa.
2 Na rua orienttl do Campo ha mercado .semanal de gado.
' Uma poesia de Garrett, nas Folhas cahidas, referese a esta quinta. Intitula-se No Lu-niar.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
gostava de fazer ditos espirituosos; mas é inverosímil que elle, maos-rôtas como era,
ião juntasse a generosidade ao espirito.
No logar de Telheiras houve um convento e igreja da Ordem franciscana, que fo-
ram edificados por D. João, chamado o Príncipe Negro, filho de um rei cingalez. •
Na Calçada de Carriche, a quinta chamada Nova Cintra teve muita fama entre
323— Padrão a que nos referimos na pag. 1-19
3s frequentadores de retiros campestres; mas hoje já se não servem aqui jantares e
apenas subsistem no logar algumas vendas frequentadas pelos saloios e cocheiros em
transito.
Quasi ao fundo da Calçada fica o palacete que foi do visconde de Carriche, Isidoro
Thomaz de Moura Carvalho.
' Sobre esta aventurosa personagem publicou Sousa Viterbo uma brochura com o titulo— D. Joâo^
Príncipe de Cândia.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Uma parte — a menor — da freguezia do Lumiar arredonda o concelho de Loures.
Ao fundo da Alameda do Lumiar, tomando á direita, subamos para a freguezia da
Ameixoeira, de que parte pertence ao 3." bairro de Lisboa e parte áquelle concelho.
População total 433 habitantes.
O principal logar, graças á sua elevação, tem boas vistas e excellentes ares.
E' um lindo sitio, com edificações modernas, posto a povoação seja antiga.
Na igreja parochial, reedificada no século xvii, existem quadros do celebre Bento
Coelho.
Também aqui abundam as quintas — não sendo menos de i6.
Na Ameixoeira viveu sumptuosamente um dos mais estimados representantes da
jeiniesse dorée na segunda metade do século xix — Domingos Peres.
Os saloios chamam «catalões» aos da Ameixoeira.
E alcunham de «lobos» ou «ladrões^ os de S. Bartholomeu da Charneca, outra
freguezia do 3.° bairro, com 1.162 habitantes, esta a um quarto de hora do Lumiar, e
ao norte da Ameixoeira.
A igreja parochial é de i685. N'ella se fazem em setembro grandes festas a Nossa
Senhora da Conceição.
Entre as boas quintas d'esta freguezia destaca-se, pela s^ia grandeza, palácio e jar-
dins, a que foi do capitalista José Bento de Araújo, e depois passou aos Pereiras da Costa.
Ha na Charneca uma fanfarra.
Faz-se mercado nos terceiros domingos de cada mez, e feira annual a 24 de agosto.
Se da Charneca voltarmos ao Lumiar, poderemos, tomando a estrada do Paço e
Horta Nova, entrar na freguezia de Carnide pelo sitio da Luz, que já lhe pertence.
Foi aqui, n'este mesmo sitio, que durante o século xv um natural de Carnide,
Pedro Martins, depois de se libertar do captiveiro em Africa, mandara erigir junto á
fonte do Machado uma ermida a Nossa Senhora, cuja imagem sobre essa fonte lhe
apparecêra, como já na Africa lhe havia apparecido em visões. '
E pois que a imagem se lhe mostrou entre um nimbo de resplandecente luz, de Ui-{
quiz elle que tivesse a invocação, e o logar a tomou também.
Logo n'essa ermida se instituiu uma confraria, de que D. Affonso V se inscreveu irmão.
No tempo de D. João III fundaram os freires de Christo um convento no logar da
ermida, e a infanta D. Maria, irmã d'este rei, auxiliou as obras, edificando á sua custa
toda a capellamór da respectiva igreja, onde jaz em mausoléo de mármore.-
O terremoto de 1755 arrasou o convento e o corpo da igreja, escapando apenas a
capella-mór, cujo altar, com «os seus finos baixos relevos», o sr. G. Pereira classifica,
e com razão, de «monumento da arte nacional.»
O que do convento chegou a ser reconstruído tem tido diversas appiicações pro-
fanas.
A mesma infanta D. Maria, filha de D. Manuel, fundou no sitio da Luz um hospi-
tal, que foi restaurado depois do terremoto, e serve hoje de Collegio Militar.*
E' no vasto terreiro em frente do Collegio que se realisa, a 8 de setembro, a feira * e
• Possuo um exemplar da Historia do insigne apparecimento de N. Senhora da Lu\, & suat obras
maravilhosas, pelo Padre Frei Roque do Soveral, Lisboa, 1610.
- Um dos freires de Christo, Miguel Pacheco, escreveu no século xvii a Vida de la serenisima í'--
fania D. Maria, hija delrey JJon Manoel y fundadora áe la insigne capilla mayor dei convento de N. Se-
Hora de la Luj, y de su hospital.
' Este Collegio foi aqui installado em 1814, depois passou para o convento de Rilhafolles, d'onde o
transferiram para Mafra, e voltou finalmente para o edifício da Luz. Danças da administração portugueza.
* Veja-se a farça de José Daniel — Os carrinhos da feira da Luj.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
i53
arraial de Nossa Senhora da Luz, bem como o mercado de gado no 2." domingo de
cada mez.
Outra infanta D. Maria, de quem em breve vamos falar, fundou no Largo da Luz
um mosteiro de carmelitas descalços, sob a invocação de S. João da Cruz.
A igreja toi demolida, e o convento, apropriado a habitação particular e fechado
dentro da sua antiga cerca, pertence hoje ao sr. José Diniz, de Telheiras.
Na estrada da Luz possue o sr. Carlos Anjos uma quinta denominada Montalegre,
onde tem adoptada todos os mais recentes mecanismos de lavoura e industria agrícola,
taes como novas charruas e lagar de azeite movido a vapor.
As officinas de Montalegre são illuminadas a luz eléctrica.
324— Palácio do marquez de Fronteira, em S. Domingos de Bemfica
Sigamos para o logar de Carnide, sede da parochia.
Esta freguezia tem de população 1.62 1 habitantes. S. Lourenço é o seu orago.
A igreja parochial, que fica ao fundo da rua Direita, possue na capella-mór um painel
de Bento Coelho, a Ceia do Senhor, aliás mal restaurado. Em redor da igreja desenha-se
um terreiro (antigo cemitério) e no Largo de Carnide, logo abaixo da igreja, eleva-se um
pomposo chafariz. . . sem agua.
Diz se que esta povoação já existia no tempo dos mouros, mas a seu respeito não
se encontra documento algum que ultrapasse o século xiv, data da fundação da igreja.
D. Francisco Manuel de Mello, nos Apologos dialogaes, refere-se, vagamente, a uma
antiga tradição de Carnide, que não sei se seria idêntica á «procissão do rolo» em Alem-
quer ou apenas um cirio :
€ . . . se fordes santo e vos faltar o pregoeiro, poucos hão-de saber quando é o
vosso dia, que porventura a esse fim nunca o roUo de S. Lourenço de Carnide atravessa
sem trombetas as ruas de Lisboa. 1
i54 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Hoje, Carnide gosa muitas das regalias modernas: tem gaz, agua da Companhia,
estação telegrapho-postal, esquadra de policia, uma philarmonica, e duas escolas.
Perto da quinta dos Azulejos (assim chamada por serem revestidas d'elles as pare-
des que deitam para o jardim) está o convento de Santa Thereza de Jesus, que foi fun-
dado em 1642 pela princeza Michaela Margarida, filha bastarda ' do imperador Mathias
da AUemanha, e ampliado pela infanta portugueza, também bastarda, D. Maria de Bra-
gança, filha de D. João IV, a qual n'este convento viveu desde tenra idade em habito
de religiosa. *
Ambas as princezas repousam no coro da respectiva igreja, que é interiormente
rica, postoque exteriormente singela.
O convento de Santa Thereza está agora habitado por duas comraunidades: uma
de recolhidas portuguezas e outra de francezas — irmãs de S. João de Cluny.
Estas leem escola de meninas.
Ha em Carnide algumas quinta? notáveis: a da Boa-Vista ou Casal do Falcão,
com o palácio erguido sobre um outeiro, memorando paginas amorosas da biographia
de Vieira Lusitano;^ a do Sarmento, próxima á igreja de S. Lourenço, residência que
foi do erudito visconde de Juromenha; a do Street, onde esteve o quartel-general de
Bourmont e que é hoje habitada pela viuva do conde de Carnide;* etc.
Por aqui algures, em Carnide, n'uma quinta nobre, em certa noute de mascarada
continuou el-rei D. Sebastião o seu flirt com D. Juliana de Lencastre, filha do duque
de Aveiro, D. Jorge. Porque esse doudo rapaz amou, como todos os rapazes doudos ou
não; deixem lá dizer que elle aborreceu as mulheres. O sr. Gabriel Pereira, no seu
interessante opúsculo O Inicio silio de Carnide^ não pôde achar vestigios d'aquella quinta,
de que apenas vagamente se sabe ficar n'esta região.
Com muita solemnidade se faz em Carnide a procissão dos Passos, na qual se en-
corporam os alumnos do Collegio Militar.
A azinhaga da Fonte põe a Luz em communicação com Bemfica.
A freguezia d'este nome, cuja população actual excede já 4.000 habitantes, pertence
também ao 3." bairro de Lisboa.
Orago — Nossa Senhora do Amparo.
Ha no paiz certas terras que são como certas pessoas: toda a gente as conhece —
pelo menos de nome.
Bemfica é uma d'estas terras e principalmente deve a celebridade ao seu antigo
ccnvento de S. Domingos ou, melhor ainda, á romanesca descripção que d'elle fez o
primoroso Frei Luiz de Sousa — nossa conhecida desde os felizes tempos em que ma-
nuseávamos os Logares Selectos do bom Padre Cardoso.
Mas uma coisa é Bemfica e outra coisa é S. Domingos de Bemfica, comquanto tudo
seja a mesma freguezia.
' Camillo, em uma das notas ao Regicida, presumiu que esta senhora fosse bastarda pelo facto
de ter o pae abdicado n'um primo. Não ha duvida que foi bastarda, porque o imperador Mathias, casado
com sua prima Anna, não teve d'ella successão. Michaela Margarida nasceu em i58i, e morreu em i6o3.
Não basta a explicar a sua vinda para Portugal o facto de ser parenta de D. João IV.
2 Foi reconhecida por seu pai no testamento, bem como numa carta do próprio punho de D. João IV-
Era filha de uma senhora que se recolheu depois no convento de Chellas. Camillo, no Regicida, dá a
essa senhora o nome de Justa Negrão, e dit que era açafata. D. Maria foi muito estimada de D. Pedro II
e da rainha D. Maria Francisca, e educadora de sua sobrinha D. l.uiza, também illegitima, que veio a
ser duqueza do Cadaval duas vezes.
' Vide Amores Jc ViV/Vj Lusiuiiw, por Júlio de Castilho.
♦ Guilherme Street de Arriaga e Cunha, i.» conde de Carnide, par do reino, fallecido em fevereiro
de 189X.
A ÊXTREMADURA PORTUGUEZA iS5
Bemfica assenta na rua-estrada com as suas casas d'um e outro lado e a sua ampla
igreja á beira da estrada.
Algumas das casas são palácios, outras são chalets, e onde faltam prédios correm
muros de quintas e jardins.
Quanto á belleza natural de Bemfica, ella anda encarecida com excesso na tradi-
ção. Frei Luiz de Sousa diz que estando situada n'um pequeno valle aprazivel por fres-
cura de fontes e arvoredo, mereceu, ao que se pôde crer, o nome que tem de Bemfica.
Outros referem que procurando D. João I, a instancias do seu famoso chanceller João
das Regras, um sitio para fundar o convento que elle lhe pedia, dissera achando este :
«Aqui bem ficas, d'onde o chamar-se assim.
Todas estas tradições attrairam sempre a attenção dos lisboetas para Bemfica, que
ainda no século passado era seu passeio favorito ao domingo. Lá diz Garrett: «Depois
de jantar para o omnibus. Toca a respirar poeira em Bemfica.» Sim, era isso, muito pó
que os trens e os omnibus levantavam por aquella rua direita fora: chegando lá, apea-
va-se a gente um momento, sem ver coisa melhor que alguma cara linda, e voltava para
Lisboa onde dizia emphaticamente: «Eu venho de Bemfica. d
Hoje que Bemfica está muito mais espaçosa, e é servida por uma dupla viação
accelerada — caminho de ferro e carro eléctrico — vem muito menos gente passeal-a
ao domingo do que no tempo do omnibus e de Garrett.
Mais espaçosa está, porque a povoação estendeu-se para o lado do caminho de
ferro, abriu-se a Avenida Gomes Pereira que vae dar á estação, e fizeram-se muitos
prédios novos.
Foi n'uma pobre casa de Bemfica que nasceu Emilia das Neves — a Ristori
portugueza.
S. Domingos de Bemfica é principalmente três cousas : as ruínas do convento, o
palácio que foi da infanta D. Izabel Maria, e o palácio dos marquezes de Fronteira.
O convento, abalado pelo terremoto de 1755 e também damnificado por um incên-
dio em 1818, ainda comtudo deixa ver bastante da sua antiga caracterisação, na igreja,
claustro, e na celebre Fonte do Satyro.
Mas nem tudo isto é muito accessivel ao publico, facto de que se queixa e com
razão o meu illustre amigo sr. Gabriel Pereira dizendo: «Então era fácil visitar a fonte
do saytro: agora está vedada ao publico, não sei por quê. N'aquella parte do edifício
installou-se uma succursal do collegio de Campolide, com aulas de theologia, ao que
ouvi dizer. Não deixavam entrar no claustro. Ha tempos sairam d'alli os padres, mas
p edifício continua fechado; não se sabe onde pára a chave. Não se pode visitar a fonte
tão finamente descripta por fr. Luis de Sousa, nem a capella dos Castros, cuja entrada
é também pelo claustro.»
N'esta vasta capella, de mármores variegados, onde jazem o grande D. João de
Castro e outras pessoas da sua familia, entra agora a agua da chuva por uma fenda
que se rasgou entre a frontaria e o corpo do edificio.
Continua informando o sr. Gabriel Pereira: «Dizem-me que esta capella está na
posse de um particular, ha tempos ausente de Portugal. E não sei se ainda ha culto ahi;
essa parte do edificio está habitada por uma congregação feminina, estrangeira; nada
dizem, não sabem da chave.»
Estas informações são' de igob. *
O' vandalismo portuguez! ó vergonha eterna da nossa terra e da nossa gente —
este desamor brutal ao que é nosso e o passado nos legou por memoria histórica.
' S. Domingos de Bemfica, opúsculo de 29 pag. — Lisboa, igoS.
i56
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O convento de S. Domingos de Bemfica, que devia conservar-se tão vizinho, quanto
pudesse ser, da época de Frei Luiz de Sousa, está nas mãos de quem melhor o puder
deixar acabar de estragar-se e morrer de todo — depois de desfigurado por algumas
restaurações.
O tumulo de João das Regras tem andado n'uma dança: estava primitivamente no
meio da igreja; depois veio para junto da porta; agora está no meio do coro. A estatua
jacente tem na mão esquerda, restaurada, um papel que não tinha.
O sarcophago do cavalleiro Vasco de Albergaria, camareiro-mór do infante D. Hen-
rique, está emprateleirado no ante-côro sombrio.
A sepultura de Frei Luiz de Sousa, no corredor que serve a sacristia e o coro, se
tem uma lapide que a indica foi porque lh'a mandou pôr um extrangeiro — aquelle nosso
amigo, monsenhor Pinto de Campos, prelado que era do Brazil.
3^5 — Tumulo de Jo5o das Regras
A figura do Satyro da Fonte foi caiada por um alvariéo.
E a agua começa a infiitrar-se na capella dos Castros.
O' vergonha! ó vandalismo!
Todo este convento, que ainda nos fala do seu illustre chronista, mais de João das
Regras, de D. João de Castro, de Frei Vicente Salgado, de Frei Bartholomcu dos Mar-
tyres, tem sido, é, roupa de francezes — e dentro de alguns dccennios não será mais
do que um montão de pedras.
O' vandalismo! ó vergonha!
No palácio que foi da infanta e cuja quinta é contigua d cerca do convento acha-se
installado o Collegio de Jesus Maria Josc, virtuosamente dirigido pela sr.* D. Thereza
Saldanha (Rio Maior).
A infanta D. Izabel Maria comprou o em 1847, depois de ellc haver tido vários
donos: alem do fundador, o negociante Devisme, que floresceu no tempo do marquez
de Pombal, e outros.
Tanto no edificio como no jardim tem havido mudanças.
O palácio dos marquezes de Fronteira é soberbo, magnifico. A fachada olha para
o poente e a «galeria dos reis» para o sul. Nesta galeria, figuram dentro de nichos os
bustos dos reis de Portugd ate D. João VL
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
,57
Os jardins deslumbram, opulentos de estatuas, fontes, grutas, azulejos, pavilhões
— e de flores das mais bellas e raras que se cultivam em Portugal.
O ultimo marquez era um floricultor distinctissimo; e não foi menos distincto vir-
iuose. Honroume com a sua amizade, que eu apreciava muito. Estou a velo entrar na
Camará dos Pares, alto, forte, um homemzarrão, sempre de flor ao peito, sentar-se,
tirar da algibeira a Rei'ista dos Dois Mundos e começar a ler — britannicamente.
Por entre toda esta nobreza antiga de S. Domingos de Bemfica, nobreza de gran-
des frades e de grandes fidalgos, começou a romper a industria moderna, representada
pelas fabricas dos Grandes Armazéns Grandella.
- -J — Capella dos Castros
Uma innovação puxa outra: ha ura bairro novo, também Grandella, com uma escola
e uma creche para os filhos dos operários das mesmas fabricas.
Tem a freguezia de Bemfica, alem de outros, um logar que ultimamente vai pro-
gredindo muito, e que fica junto á linha férrea: é a Porcalhota.
Mau nome — que se pretende agora substituir pelo de Amadora — mas bons ares.
Uma planície, com muitas casas novas, entre ellas as do Bairro Santos Mattos, a fabrica
de espartilhos d'esta mesma firma commcrcial, e o prédio onde esteve o Hotel Porcalhota.
Antigamente era sitio pouco populoso, só conhecido pela petisqueira do coelho
guisado. Hoje tem uma colónia de famílias de Lisboa, que vieram aqui domiciliar-se, e
cujos chefes edificaram um club, por elles denominado Choça dos Macamhqios, onde
se divertem á noite (jogos de vasa, cavaqueira, theatro ás vezes) e onde durante o dia
funcciona — excellente ideia — uma escola primaria.
i58 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Alem d'estes elementos de progresso e distracção, ha também uma associação de
bombeiros voluntários e uma Philarmonica Recreio Artístico.
E' da valia da Porcalhota por deante que o concelho de Cintra começa.
Só falarei também do logar de Alfornel, d'esta freguezia de Bemfica, para alludir
á festa das ervas, hoje em decadência, e que não era mais nem menos que a romaria
dos ervanarios que outr'ora iam procurar na serra as plantas medicinaes — os simplices.
O ervanario é um typo quasi extincto em Lisboa, e faz pena, porque tinha graça
a sua lojinha cheia de verdes, bem cheirosa, e útil sobretudo á medicina domestica.
Poucas d'essas lojinhas se vêem hoje.
Quanto ao t}'po do ervanario, em que a tradição via um possuidor do segredo the-
rapeutico dos vegetaes, esse, ainda bem, ficou litterarismente fixado no «tio Vicente»
da Morgadinha dos Cannaviaes por Júlio Diniz.
A freguezia de Sebastião da Pedreira, em Lisboa, comprehende, extramuros, al-
guns interessantes logares, taes são os de Campolide, Pinheiro, Laranjeiras, Palma
de Baixo, a maior parte de Palma de Cima, etc.
Campolide tem seus pergaminhos e, alem d'isso, tem sua historia, o que aliás não
acontece — nem uma cousa nem outra — a muitos titulares do nosso tempo.
Quem hoje, viajando em comboio, sai do tunnel do Rocio, encontra-se de repente
em pleno Campolide: vê á esquerda a estação do caminho de ferro e a par d'ella um
irechosinho galante de paizagem na ravina; á direita, em terras altas, o Asylo dos ve-
lhos das Irmãsinhas dos Pobres, o Collegio da Immaculada Conceição (dirigido por
padres jesuítas) e, mais para alem, o casario do logar.
Aquelle trechosinho de paizagem, junto á estação, reproduzimol-o em estampa: um
riacho pedregoso, uma ponte de pedra com dois arcos .e, crescendo sobre ella, o que
quer que seja de mirante e os ondulantes pennachos de quatro arvores esguias.
A's vezes — em havendo sol é certo — lavam mulheres no riacho.
O comboio demora-se sempre n'esta estação, por ser preciso regular com prudên-
cia a entrada e saida do tunnel, a fim de evitar um choque de locomotivas.
As terras altas de Campolide eram antigamente recommendadas como estancia de
convalescença e de estio.
Por aqui, algures, esteve Garrett uma temporada, e começou a compor o ro-
mance da Ado\inda. Foi então que elle cantou estes sitios e lhes procurou a origem do
nome n'uma batalha (lide) entre os castelhanos e as hostes de D. Fernando ou de
D. João L •
Campo de lide é este ; aqui lidaram,
Elysa, os nossos quando os nossos eram
Lidadores por gloria,^ aqui prostraram
Soberbas castelhanas, — e venceram. . .
Apenas uma galante phantasia de poeta, porque já Campolide tinha este nome no
tempo de D. Afíbnso IL
Garrett encontrou ainda, nas alturas que avizinham o aqueducto das Aguas-Livres,
restos de fortificações antigas, de ditVerei.tes datas; e eu que nunca vagueei por estas
alturas — á falta de uma companheira Elysa — não sei se ainda ha restos tmal poupa-
dos» d'aquellas fortificações.
O que sei é que depois do terremoto de lySã se projectou edificar um palácio real
era Campolide. Conta Woikmar Maciíado que viu o projecto d'clic em Roma, e que era
grande e nobre. Estava cm poder de João Antinori, que algum tempo viveu em Lisboa,
I Vilhena Barboza diz D. Fernando, (>arrett D. João I. Pouco importa: a época é quati a mesma.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
,59
onde trabalhou como ajudante do pintor portuguez Eugénio dos Santos de Carvalho,
auctor do projecto, postoque Antinori se jactasse de que o desenho do palácio era de
sua invenção.
E agora, que passamos ao logar do Pinheiro, ainda o nome de Garrett se nos não
despega dos bicos da penna.
Foi aqui, na quinta 4o Pinheiro de Cima, * então pertencente ao conselheiro Duarte
Cardoso de Sá —entre Palhavã e Laranjeiras — que a 4 de julho de 1843 se effectuou
a primeira representação do Frei Lui\ de Sousa.
Os Sás, pai e filho, tinham a paixão do theatro, e construíram um na quinta do
327 — Campolide, junto á eslação do caminho de ferro
Pinheiro. «O theatro é pequeno, diz Garrett, mas accomoda muita gente; e encheu-se
do que ha mais luzido e brilhante na sociedade.»
Os papeis couberam a D. Emília Kruz de Azevedo, Magdalena:, D. Maria da Con-
ceição de Sá, Maria; Joaquim José de Azevedo, Manuel de Sousa; António Pereira da
Cunha, Frei Jorge; Duarte Cardoso de Sá, Romeiro; António Maria de Sousa Lobo,
Prior; Duarte de Sá Júnior, Miranda; Garrett, Telmo.
Actores d'esta espécie, tirados da «boa roda», são os únicos de que um auctor se
pode lembrar com saudade agradecida, e Garrett lembrava-se. Os de profissão perten-
cem a outra sociedade, mas a sua sociedade é. . . outra.
De todos os primeiros interpretes do Frei Lui'^ de Sousa apenas conheci pessoal-
mente Duarte de Sá, o filho, alegre, espirituoso, calemburista cximio, e um chavão —
agora só ha gazuas — em coisas de theatro.
1 Para a differençar da quinta do Pinheiro de Baixo, que foi do visconde do Pinheiro, e hoje é do
sr. Reys e Sousa.
i6o EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
António Pereira da Cunha, o fidalgo de Portozello, apenas o pude conhecer pelos
seus bellos versos, reunidos na Selecta em 1879.
O logar das Laranjeiras tornou-se celebre pela famosa quinta do conde de Farrobo,
que ainda c, não sendo já aquillo que foi — uma vivenda de príncipes digna de receber
outros, e algumas vezes os recebeu.
O conde de Farrobo arruinou-se, morreu, e a quinta tem passado de mão em mão;
agora é do conde de Burnay, e em parte d'ella acha-se installado o Jardim Zoológico.
Também nas Laranjeiras havia um theatro, que teve noites de gloria. Estava o seu
proprietário jantando no solar de Farrobo, • e já no declive da ruina, quando recebeu
um telegramma de Lisboa. Leu-o, dobrou-o, continuou a jantar. Só depois do café,
accendendo um charuto, disse serenamente: «Ardeu o theatro das Laranjeiras». Ainda
quiz reconstruil-o, mas era tarde; — já estava pobre.
A antiga quinta do Lodi, nas Laranjeiras, é hoje residência da actriz Virgínia, e a
do Pacheco pertence actualmente ao dr. Carvalho Monteiro.
As povoações de Palma, a de Baixo e a de Cima, são airosas e alegres— aquella
mais populosa do que esta.
Palma de Baixo é servida pela estrada das Laranjeiras. Tem aqui uma linda casa
e quinta o sr. Dotte, o mais antigo súbdito allemão residente em Portugal.
Palma de Cima, que fica separada de Palma de Baixo por uma calçada, é servida
pela estrada do Rêgo, e encontrase logo adeante do Recolhimento d'este nome. Ha
aqui a notar o palácio dos herdeiros de D. Francisco de Almeida. O meu velho e bom
amigo Rangel de Lima tem em Palma de Cima um yie.i-à-lene, com algumas arvores
e terrinhas, que já herdou de seu pai.
Ao fundo do largo onde está a igreja parochial de S. Sebastião da Pedreira ergue se
o palácio que foi de José Maria Eugénio de Almeida, e hoje é de seu filho. A estrada
de circumvallação separouo do bello parque que lhe pertence e onde o Jardim Zooló-
gico esteve installado durante alguns annos. Na estrada de Palhavã fica, a pequena dis-
tancia d'aquelle parque, o palácio em que residiram os príncipes bastardos — Meninos
da Palhavã — e hoje reside, no verão, o conde de Azambuja, seu actual proprietário.
' Vide o capitulo Villa Franca no vol. I
'^^"'^^
XI
A cidade de Lisboa
empresa editora da Extremadiii a Portugue\a iniciou a collecção
do seu Portugal pittoresco e illuslrado com uma larga monogra-
phia de Lisboa elaborada pelo sr. Alfredo de Mesquita.
Isto nos dispensa de darmos grande desenvolvimento a este
capitulo.
Poderiamos até remetter o leitor para aquella monographia,
onde todos os assumptos são tratados com minudência e extensão.
Mas não deixaremos de consignar rapidamente as nossas impressões geraes sobre
a capital portugue?a, ao correr da penna, n'uma serie de ainstantaneos» tão flagran-
tes como ephemeros.
Relancearemos os olhos pela caracterisação material e social dos bairros em que
a cidade se divide, e falo hemos como quem addiciona verbas para chegar sem perda
de tempo á somma total, que englobará a conclusão lógica das nossas impressões.
O -espectáculo exterior de Lisboa, pittorescamente escalonada sobre sete montes,
como a Roma antiga, e bordando de variados aspectos a margem direita do Tejo, an-
nuncia uma cidade alegre e opulenta, cuja realidade interior está em manifesto desac-
cordo com a sua magnificente apparencia panorâmica.
Lisboa nem é alegre, nem opulenta.
Não tem, na vida interna, a animação, o movimento e sumptuosidade de Madrid,
de Pariz, de Berlim ou de Londres.
E' uma das mais pobres e melancólicas entre as capitães europeas.
Vista de perto, quando as secretarias de estado e as lojas de commercio estão fe-
chadas, faz estarrecer.
A Baixa, nas tardes de domingo, é uma cidade abandonada. E os bairros excêntri-
cos, como S. Vicente e a Lapa, são outros tantos desertos com ruas inúteis e casas
amortecidas.
Engana-se muito o viajante que, n'um dia de trabalho, ás 4 horas da tarde se sur-
prehender com o bulicio da rua do Ouro c ao domingo, no regresso de uma tourada,
se deslumbrar com o aspecto da Avenida.
,62 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A maior parte das carruagens que passeam em linhas ascendente e descendente
desde a Praça dos Restauradores até á Praça Marquez de Pombal são da Companhia
Viação Lisbonense ou simples tipóias de praça, com numero ou sem elle.
Vão dentro d'essas carruagens pessoas que julgam enganar os outros e que se en-
ganam a si mesmas.
Os trens particulares contam-se na proporção de 5 por loo, e as equipagens de luxo
fazem-se notar pela raridade mais do que pelo brilho.
Na população da capital abundam os empregados públicos, os officiaes do exercito
e da armada, os jornalistas, os actores, os estudantes, os médicos, os advogados, os
pequenos negociantes, os agiotas, os vadios e... as hespanholas.
Ordinariamente a vida é difficil e atormentada.
O dia do pagamento da renda das casas custa lagrimas e afflicçÕes, porque a maior
parte da população é pobre, os divertimentos tentam-n'a, e o pé de-meia está sempre
vasio. ^
Quasi ninguém faz economias e a principal razão é porque não pôde fazel-as.
Desde o tempo do marquez de Pombal até hoje apenas dois prédios lograram que-
brar a monotonia das construcções pombalinas: na rua do Ouro os Armazéns Grandella
e o Banco Lisboa e Açores '.
O Rocio, se exceptuarmos o Theatro de D. Maria, não tem um prédio distincto-
O Chiado estacionou, com pequenas variantes de chamariz commercial.
Foi o dinheiro do Brazil que povoou com melhor ou peor gosto o alto da Avenida
da Liberdade e os bairros novos a que ella deu origem.
Quem principalmente edifica é o brasileiro. Todo o paiz, especialmente Lisboa,
lhe deve esse serviço material.
Na sociedade elegante, muito eriçada de dividas, citase apenas uma riqueza au-
thentica: a dos duques de Palmella.
Esta familia illustre possue vários palácios em Lisboa e nos arredores.
Mas aquelle em que habita é velho e acanhado, os tectos são baixos, e a fachada
nada tem de grandiosa, apesar das caryátides modernas que lhe foram acrescentadas.
De vez emquando os actuaes duques de Palmella dão um. jantar, e muito de longe
a longe um baile ; jamais, que me conste, offereceram, como fazem em França os du-
ques de Uzés e de Luynes, uma caçada ou garden-party a algum príncipe estrangeiro
nos seus parques de recreio.
Em Portugal só a casa real proporciona festas cynegeticas a personagens coroadas,
e, como se tem apurado ultimamente, ella mesma lucta com repetidos embaraços finan-
ceiros.
Desde o rei até ao amanuense todos os funccionarios do Estado pedem adeanta-
mentos ao thesouro publico. E os que não pedem adeantamentos solicitam empregos,
que os habilitem a obter adeantamentos.
Em Lisboa não iia millionarios com exteriorisação. A alcunha de Milhões é dada
a um rico proprietário que não vive com esplendor. E o grande lavrador José Maria
dos Santos, que possue a maior vinha do mundo, contenta-se com hospedar singela-
mente o rei na herdade do Poceirão, com uma boa semcerimonia alemtejana.
Não ha em Lisboa millionarios com exteriorisação, mas patentcam-se em todos os
bairros as «casas de prégot, com lettreiros berrantes, de noite illuminados a cores sinis-
tramente vermelhas.. . como o sangue das victrmas num sacrifício truculento.
A pobreza da capital é a mais violenta de todas as pobrezas: a que põe mascara
e veste dominó para não ser conhecida.
' Ultimamente, a Casa dos Arcos na rua Augusta.
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i64 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A pobreza nas provindas é, pelo contrario, sincera, franca e resignada.
A de Lisboa exaspera-se de rivalidade pelos ouropéis alheios; morde-se de inveja
pelos trapos dos outros.
As lisboetas, na rua, voltam-se para traz a examinarem-se a íoilelte com despeito
e emulação.
Todavia os invejados e os invejosos sabem perfeitamente que toda aquella farra-
pagem é postiça e quasi sempre fiada.
Entre a época das praias e o começo do inverno, as «casas de prego» não teem
mãos a medir. E' preciso liquidar as perdas da banca franceza, do monte e da roleta,
e ir pagar uma assignatura em S. Carlos. Pratas, jóias de família, tudo o que restar de
valor negociável é sacrificado á vaidade com menos lagrimas do que imprevidência.
Lisboa foi sempre leviana e mundana.
S. Carlos representa uma tentação irresistível, um abysmo fascinante — o mundo
dos sonhos alfacinhas.
Mulheres de empregados públicos, em cabelio e mal enroupadas contra o rigor do
inverno, entram orgulhosamente nos carros eléctricos com destino a S. Carlos.
Vendo outras mulheres em carruagem, procuram imital-as n'aquillo para que o di-
nheiro não é preciso: vão de cabeça descoberta como se as resguardasse a vidraça de
um coupé.
E suppõem que no salão do theatro pode alguém crer que cm vez de sahirem de
um carro eléctrico sahiram de um coupé ou de um landeau.
Funccionarios do estado, mercieiros e estouradinhos, dos quartos andares vão para
as torrinhas de casaca ou smoking, com gravata e luvas brancas, flor ao peito.
Nos intervalios passeam no saião ou fazem visitas ás outras torrinhas.
N'este caso, depois de um aperto de mão com o braço em arco, vingam-se da pro-
sápia dos assignantes das frisas e das primeiras ordens dizendo mal d'elles e commen-
tando picarescamente os últimos escândalos de Cascaes.
A' sahida, quem os vir passar no Largo das Duas Igrejas, vaporando fumaças de
charuto de vintém, poderá, se os não conhecer, imaginar que regressam de alguma frisa.
E acertará, se admittirmos que os camarotes devem contar-se de cima para baixo.
A maior parte dos frequentadores de S Carlos não entende uma palavra de musica,
como exceptuemos os do gallinheiro, gaiola de dilettanti sinceros, que não vão para
ser vistos, mas apenas para ouvir e saborear a divina arte.
Os artistas podem comprar a claque ou offerecer jantares e ceias aos habitues.
Mas quem elles não logram corromper são os entendidos do gallinheiro., que não
deixam passar impunemente uma fifia ou um corte.
Para diminuir este perigo, as empresas teem ido encurtando as dimensões d'aquelle
incorruptível viveiro de críticos implacáveis.
O gãllwheiro está reduzido á expressão mais simples.
Ainda assim, empilhados como sardinhas em tigela, mal podendo mexer-se, os úl-
timos abencerragens do dilettanlismo fanático não faltam nunca, e é com elles princi-
palmente que as empresas e os artistas teem de haver-se.
Mas, perante companhias fracas, os entendidos mostram-se hoje mais indulgentes
do que outr'ora, porque o próprio amor da arte não permitte ser leão entre humildes
ovelhas.
Toda a esthetica presuppóe dignidade artística.
Por isso, os críticos do galliuhetro, não tendo deante de si os grandes artistas a quem
uma fama universal impunha enormes responsabilidades, comprehenderam que deviam
ser mais tolerantes do que severos.
As empresas de S. Carlos, que trouxeram a Lisboa cantores de primo carlello,
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
como a do conde de Farrobo, a de Campos Valdez e outras, arruinaram-se, porque o
preço dos camarotes e das cadeiras era alto de mais para a bolsa alfacinha.
Assim o publico viu-se forçado a abandonar o sport lyrico tão seu predilecto, e
deixou, com amargura, de frequentar o theatro.
Decorreram tempos, e veio a empresa do sr. José Pacini, homem esperto e sagaz,
que perfeitamente soube resolver o problema em que outros empresários tropeçaram
ruinosamente.
f|9 Qual era o processo a seguir para contentar o publico, tornando-lhe S. Carlos
accessivef?
329 — Palácio das Necessidades
Uma coisa muito simples: trazer a Lisboa artistas de cotação secundaria e baixar
os preços de entrada — ganhando ainda dinheiro.
Foi o que elle fez, e com satisfatório êxito. O publico começou a affluir em torren-
tuosas caudaes, tornando-se preciso metter empenhos para conquistar um logar, tama-
nha é todos os annos a assignatura.
O snob da corte, o brasileiro, o africanista, o janota pobre e o amador encartado
puderam frequentar o theatro e o sr Pacini, diz-se, tem feito uma fortuna, graças á sua
clara intelligencia e habilidade financeira.
O africanista é hoje o «brazileiro d' Africa», o roceiro, o agricultor das ubérrimas
terras africanas.
O seu dinheiro traduz-se em prédios novos na cidade, em quintas de regalo nos
arrabaldes, n'uma carruagem, n'um camarote de theatro, aliás sem prurido de ostenta-
ção e esplendor.
i66 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Que me lembre apenas um único africanista dá bailes em Lisboa e festas campes-
tres em Cintra.
Os outros procedem como os primeiros industriaes de Lisboa, que também pos-
suem quintas, prédios e carruagem: vivem o melhor possível, mas sem exteriorisação
apparatosa.
A riqueza dos africanistas é em geral democrática.
Lisboa possue alguns edifícios notáveis pela vastidão ou pela architectura; não são
muitos, e pertencem ao estado.
Apenas exceptuaremos d'esta regra a casa da camará, que não é do estado, mas
da cidade.
Quanto aos outros, foi o dinheiro do erário ou das ordens monásticas que os le-
vantou e pagou.
Ha na capital muitas igrejas, quasi todas modestas, a não ser os Jeronymos, a Ma-
dre de Deus, a Sé, S. Vicente de Fora, a Conceição Velha, especialmente notável pela
fachada, a Estrella, Santa Justa, vulgarmente S. Domingos, a real casa de Santo Antó-
nio, aliás muito inferior á soberba basílica de Pádua, e S. Roque, que especialmente
se recommenda pela celebre capella lateral do tempo de D. João V.
Os museus de bellas-artes ou de archeologia são pobres e deficientes. Um estran-
geiro nada tem que admirar n'elles com surpresa. O museu militar é muito inferior á
armeria de Madrid; e o colonial, na Sociedade de Geographia, postoque interessante,
está longe de corresponder á grandeza dos nossos domínios ultramarinos. O de historia
natural será talvez o mais copioso. Modernamente abriu-se o dos coches da Casa Real,
em Belém, que é um documento do dinheiro prodigalisado pelo cesarismo em sumptuo-
sidades da nossa corte e das estranhas, porque alguns coches foram ofFerecidos por
monarchas estrangeiros.
Dos theatros da capital apenas ha a especialisar três: o de S. Carlos, pela sua
imponência interior, o de D. Maria, exteriormente gracioso, mas eivado de defeitos in-
teriores, e o de D. Amélia, sem apparencia apreciável, mas vasto e commodo, e o mais
moderno de todos.
Tem a cidade dois colyseus. Um d'elles, o dos Recreios, é amplo, enorme, e no
seu género poderá hombrear com o melhor que existe nas outras capitães da Europa.
Dos edifícios escolares apenas a Escola Polytechnica, a Escola Medica e a Escola
do Exercito (um dos antigos palácios reaes) se recommendam pelo exterior ppparatoso.
A Escola Naval, alojada n'um casarão pombalino, impõe-se unicamente pela gran-
deza da sala do risco, que mede 8i metros de comprimento.
A Academia de Bellas Artes, nos baixos do antigo convento de S. Francisco, é um
antro onde estão enterrados algumas telas mortas e alguns pintores vivos.
N'este mesmo edifício acha-se installada a Bibliotheca Nacional, que pela riqueza
da sua livraria faz honra ao paiz, onde em geral as bibliothecas publicas são do melhor
que possuimos, porque eram as dos frades.
A Torre do Tombo, hoje Archivo Nacional, occupa um entresol do Palácio das Cor-
tes, antigo mosteiro de S. Bento.
O seu cartório é riquissimo de documentos preciosos para a historia antiga de
Portugal.
Todos os investigadores que por ali passam, e o mais illustre delles foi Alexandre
Herculano, podem encher bem a sua bilha.
Parece que o archivo onde se guarda o deposito patriótico dos registos e diplomas,
que constituem a nossa historia authentica, devia ter merecido um edifício privativo, tão
amplo que pcrmittisse uma boa arrumação de documentos, c tão blindado que estivesse
d prova de fogo.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
Nada d'isto acontece. Nem edifício próprio, nem mesmo um catalogo geral e im-
presso.
Apenas Emygdio Navarro, quando ministro das obras publicas, mandou fazer alguns
melhoramentos materiaes de que pudesse resultar mais ar, mais luz e mais limpeza.
Até então morria-se de asphyxia na Torre do Tombo.
No mesmo edifício do convento benedictino foram implantadas as camarás dos pa-
res do reino e dos deputados.
A dos pares, construída sob a direcção do marquez de Niza, é sumptuosa, mas so-
turna, e falta de condições hygienicas. A dos deputados, de recente construcção, tem
um interior friamente romano, e imperfeitas condições acústicas. Precede a sala das ses-
sões a sala dos passos perdidos, vasto recinto que suppre vantajosamente os largos cor-
redores da camará dos pares.
Examinando-se com attenção uma e outra camará, reconhece-se que estamos n'um
paiz de rhetoricos pomposos, onde o luxo da eloquência se impoz ao espirito dos archi-
tectos pela necessidade de o harmonisar com as linhas e ornatos do estilo archite-
ctonico.
A verborrhea nacional derramou-se da bocca dos oradores para as columnas e ci-
malhas das salas das sessões, como um rio trasborda alagando as margens.
Em Portugal a eloquência é ainda a rhetorica florida e tropologica, e as duas salas
do parlamento são o berço lógico, adornado de acanthos e volutas, onde essa. eloquên-
cia papea os seus vagidos sonorosos.
A singeleza luminosa de uma sala ampla mas simples, onde os deputados pudessem
ser ouvidos de qualquer logar do hemicyclo, e onde pudessem escrever sem acotovellar
os vizinhos, repugnaria ao senso rhetorico dos portuguezes e ao seu enxame de hyper-
boles, prosopopeas e circumloquios magnificentes.
Os jardins ou passeios de Lisboa, aquillo que os nossos antigos chamavam bona-
chtiTomimtnit logradouropublico^sdiO realmente interessantes, a começar pela moderna
Avenida da Liberdade, que é o melhor boulerard da capital portugueza e que gerou a
idea de outras avenidas secundarias.
O Aterro da Boa Vista, mais antigo, nunca foi senão um extenso cães, movimen-
tado de sal e de carvão, cheirando a peixe e enevoado de fumo.
A Avenida da Liberdade seria, nas mãos de outro paiz, uma acquisição preciosa.
E' bella; poderia ser notabilissima e surprehendente em outras mãos.
Se a plantassem de larangeiras, que é a arvore encantadora dos portuguezes, se a
alinhassem de renques de estatuas e intermeassem com jogos de agua, embora menos
grandiosos que os de Versalhes, poder se-ia fazer d'ella um dos mais bellos boulevards
do mundo.
As estatuas que tem são apenas allegoricas, e foram para ali desviadas de outros
togares ou destinos, no intuito de attenuar a inópia de apparato ornamenta!. *
Tudo na Avenida, a não ser a sua amplitude, o arruamento dos prédios, alguns exem-
plares de palmeiras, e o pavimento ainda incompleto dos passeios lateraes em mosaico,
é mesquinho e assaloiado: o arvoredo rococó de olaias e acácias, os canteiros de flores,
os bancos enxovalhados, os kiosques de tabacos, os mictórios fúnebres, e as cadeiras de
arraial, quando as ha.
O Passeio da Estrelia e o da Escola Polytechnica são, depois da Avenida da Liber-
dade, os mais recommendaveis ao estrangeiro e ao provinciano.
• Recentemente, inaugurou-se na Avenida (i3 de novembro de 1908) o monumento a Pinheiro Cha-
gas, erigido por subscripção em Portugal e no Brazil.
i68
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O da Estrella tem a galanteria romântica de um retiro de Flora, onde o burguez
pacato medita, adormece ou namora e a bonne ingleza lê emquanto as creanças brincam
sem ruido.
O da Escola Polytechnica, propriamente jardim botânico, offerece uma solidão
meandrosa não já ao namoro, mas ao amor, á paixão que sempre aqueceu os derretidos
corações lusitanos.
Tem recantos sombrios, mais ou menos fiscalisados, onde um braço audaz pode
perpetrar o enleio de uma cintura de alcôrce e onde o beijo furtivo pode saltar de uma
bocca a uma face, n'urn rápido vôo de desejos lascivos.
Não sendo isto, e a linda rua das palmeiras, que é bom caminho para um idillio
romanesco, tudo o mais é dos estudantes —
os taboleiros de plantas classificadas e as estu-
fas repletas de exemplares exóticos.
O Passeio de S. Pedro de Alcântara não
vale pela capacidade, pelas arvores, pelas flo-
res ou pelo modesto busto do popular jorna-
lista Eduardo Coelho, no pavimento superior.
Vale principalmente, e vale bem, pelo
grandioso panorama do bairro central e do
bairro oriental da cidade e do estuário do
Tejo.
O Jardim Zoológico, no parque das La-
rangeiras, é mais um viveiro de animaes do-
mésticos do que outra cousa.
As feras são poucas, e quasi tão pacificas
como os visitantes.
Quem recebe de presente um bicho in-
commodo, desfaz-se d'elle oflerecendo-o ao Jar-
dim Zoológico, que d'este modo só possue
collecções incompletas e truncadas, tanto sob
o ponto de vista das espécies como das regiões.
Os outros jardins públicos da capital são apenas logradouros de bairro, como o do
Principe Real, que é o melhor, o das Amoreiras, o da Estephania, o de Campo de Ouri-
que, o do Aterro e o das Janellas Verdes, por exemplo.
Poderia haver em Lisboa um jardim a cada canto, tamanha é, em nosso suave cli-
ma e pródiga terra, a abundância de flores.
Foi por isto, talvez, que não vingou o seu mercado especial que eu, ao passar em
1900 pela vereação lisbonense, quiz estabelecer na Praça dos Restauradores, junto ao
monumento.
Mandei pôr ali seis mesas de pich-piue, desenhadas pelo mallogrado engenheiro Re-
nato Baptista, e expor sobre ellas ramos de flores da estação preparados pelos jardineiros
da camará municipal.
A minha ideia era crear um núcleo de mercado elegante para os frequentadores ha-
bituaes da Avenida da Liberdade, porque, firmado este precedente basilar, esse mercado
ampliar-se-ia e poderiam vir a elle as flores mais estimadas e mimosas, o que havia de
contribuir para animar entre nós a floricultura seleccionada.
Preencher-se-ia assim a falta de ramilhetciras ambulantes, que nos outros paizes
são vulgares, e que em Portugal quasi não apparecem, a não ser nos thcatros; esse
commercio gracioso e amável, como então lhe chamou o sr. Alfredo de Mesquita, poria
uma nota brilhante no mais fashionable dos nossos passeios públicos — a Avenida da Li-
33o— Estatua de D. José
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
169
herdade; e sonhava eu que d"ali viesse a fazer-se algama coisa de geito e de bom gosto
com o andar do tempo.
O mercado abriu no dia i de maio d'aquelle anno, e despertou interesse no pri-
meiro momento.
A nossa estampa 333, reproduzida de um kodak do Bra\il- Portugal, mostra que o
povo parou a vêr e a comprar.
33 1 —A Casa dos Bicos
N'essa mesma tarde, ou n'alguma dos dias seguintes, a rainha D. Araeha, passeando
na Avenida, fez parar a sua carruagem e mandou comprar um bouqiiet.
Outras senhoras da aristocracia procederam do mesmo modo.
Fizer^mse ma's duas mesas, e tiveram logo raparigas que as requeressem.
Parecia um bom principio de vida para o merca io.
Não tardaram muito as noites de Santo António, S. João e S. Pedro, e n'essastres
noites mandei illuminar, tanto as mesas como as arvores, com balões venezianos, expor
á venda pequeninos vasos de mangerico, e tocar no recinto da Praça dos Restauradores
a banda dos Bombeiros Municipaes.
170 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Houve concorrência era barda, e o consumo foi tamanho, que a media do lucro em
cada mesa subiu a 4.3>5oo réis por noite.
Mas isto alvoroçou os ramalhoceiros da Praça da Figueira e os floricultores de pro-
fissão, que desataram a fazer guerra ao mercado, e tanto mexeram e rabiaram, que
pregaram com elle em vasa barris.
Foi uma vez um mercado. A terra lhe seja leve, e Deus Nosso Senhor me perdoe
as minhas illusões de vereador ephemero.
Lisboa não tem hoje um mercado de flores, pois teve o no século xvii, porque lá
diz Sousa de Macedo nas Flores de Espana que o havia então junto á porta da Miseri-
córdia (altura da actual rua Nova da Alfandega) e que era bem provido de grinaldas e
ramilhetes.
Ahi por i836 houve outro no largo de S. Roque, mas creio que também morreu de
morte macaca.
Já que estou com as mãos na massa, falarei dos mercados de Lisboa, a co-
meçar pelo da Praça da Figueira, que é o mais antigo e importante.
E' ali que todas as manhãs uma boa parte da cidade aprovisiona os seus cabazes e
alcofas para o arranjo caseiro de cada dia.
Esse mercado— a Praça como se diz geralmente — tem largueza, variedade de
géneros alimenticios, asseio, movimento, e muita côr de pittoresco popular, que é a
graça physionomica de todos os mercados, diários ou semanaes.
Mas não chegava para abastecer uma cidade grande; e mais pequeno ficou quando
ella se tornou maior.
Alem d'isto está encravado entre prédios e, por muita limpeza que haja n'um mer-
cado de viveres, elle não é nunca um vizinho hygienicamente inoffcnsivo.
Do mercado da Praça da Figueira desmembrou-se outro, que, á procura de um lo
gar, acabou por installar-se no Campo de Sant'Anna.
Mas os moradores d'este Campo não gostaram da vizinhança das couves e dos ra-
banetes, e foram empurrando o mercado para mais longe, por causa dos seus cheiros e
gritaria. Veio elle parar á Ribeira Nova, onde está, e augmentou com extensos hangares
cinzentos o numero dos barracões que já pejavam e desfeavam o Aterro — espécie de
planície africana com senzalas de pretos.
Ultimamente (1904) inaugurou-se um novo mercado em Alcântara para servir os
moradores do bairro.
E' na Ribeira Nova que, em edifício próprio, funcciona o mercado do peixe. Não
se pode dizer que os carapaus e as pescadmhas marmotas estejam mal hospedados; mas,
sendo o Aterro uma artéria de muito transito, a fedorentina do pescado irrita milhares
de narizes, que não gostam nada de tão desagradável pitada, quando por ali passam no
gyro da sua vida quotidiana.
A secular feira da Ladra, depois de ter andado em bolandas por vários sitios da
cidade, desdobrouse em dois mercados: um ao oriente, o de Santa Clara ; outro ao oc-
cidente, o de S. Bento.
São exposições permanentes de trastes, de fatos, de utensilios e livros em segunda
mão, velhos e defeituosos. Espadas que fizeram a guerra, sophás que fizeram o amor
ou o /7/r/, retratos de família, alfarrábios e cartapacios roídos da traça, espelhos fendi-
dos, terrinas gateadas, pires sem chicaras, chicaras sem pires, casacos já rebeldes á
benzina, chapéos queimados no pello, berloques de latão, gravuras com manchas ama-
rellas, berços escangalhados, leitos partidos, cadeiras mancas — todo um amalgama
monstruoso de coisas gastas e depreciadas, incompletas e sujas, ali se escancara dia-
riamente como uma enorme bocca, ore rotundo, cheia de carie nos dentes e de saburra
na lingua.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
171
Algumas vezes, raríssimas vezes, se encontra uma pérola n'este estendal de lodo
antigo, por ter succedido que quem vendeu não sabia o que alienava e o adélo não sa-
bia o que comprava nem o que vendia.
A feira da Ladra não é um exclusivo de Lisboa.
Houve-a também no Porto, n'um local que por isso mesmo se chamou Ferros Velhos.
Ainda a ha hoje na villa de Vieira no Minho, e realisa se na primeira segunda-feira
do mez de outubro.
Sobre esta feira minhota da Ladra quero deixar archivadas aqui as informações que
me deu em iSgS o antigo deputado dr. Guilherme d"Abreu, já hoje fallecido.
tNão existe no archivo da Gamara de Vieira diploma ou documento algum, que di-
rectamente se refira á origem da feira
annual, chamada da Ladra e estabeleci-
da na sede do concelho, havendo, porem,
bastantes, e alguns de tempos affasta-
dos, que ailudem á feira.»
«Por isso e por tradição se sabe
que ella é antiquíssima, e provavelmente
coeva da do S. M guel em Refcyos de
Basto, que, por assim o dizer, contínua
e fecha; como coevos são os foraes ou-
torgados ás Terras de Basto e á de Viei-
ra por El-Rei D. Manuel, em i5i4, des-
de quando talvez ambas datem.
«A feira da Ladra em Vieira foi até
1879 na primeira qumta-feira do mez de
outubro, durando só esse dia: mas mu-
dou-se em agosto de 1880 para a pri-
meira segunda feira do mesmo mez, am-
pliando se até á quarta-feira immediata,
ampliação que todavia os feirantes só
acceitaram até á terça-íeira, ficando na
quarta inteiramente deserto o mercado. 332-Es.atua de luu de camóes
aPergunta-me V. se n'esta feira se
expõem á venda muitos objectos roubados na de S. Miguel em Refoyos.
• E' possível que assim fosse nos primeiros annos, e talvez d'ahi lhe venha o nome
aliaz idêntico ao d'outra feira do paiz. Actualmente, porem, e desde que lembra aos ve-
lhos, o commercio que n'ella se faz é tão regular e legitimo como o das demais feiras.»
Fique guardada aqui esta curiosa nota archeologica, comquanto não seja o seu
logar próprio.
Em Lisboa o commercio ambulante é muito activo e intenso, o que explica a falta
de maior numero de mercados fixos n'uma tão populosa cidade.
Os vendilhões formigam por todas as ruas e bairros, gritando os seus pregões
quasi sempre n'um rythmo cantante.
Alem da chusma dos saloios, dos provincianos, dos alfacinhas que exercem este gé-
nero de commercio, ha os chamados lagares de venda, que são pequeninos mercados
de uma só porta, ás vezes bem estreita, onde em prateleiras de pau se escadeam, ex-
postos ao publico, hortaliças, legumes e fructas.
A numerosa classe dos vendilhões ambulantes, e outra gente da arraya-miuda, ha-
bita ordinariamente nas barracas dos paleos -a que no Porto se dá o nome de tlhas.
Alguns proprietários abastados já vão explorando a edificação de bairros baratos,
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
populares, que são ainda em diminuto numero para comportar a população mercenária
das míseras iribus do ganha-pão.
Toda esta pobre gente, a fim de resistir ás intempéries e á fadiga, recorre ao vi-
nho — á mixordia alcoólica — para aquecer e para resistir.
Gil Vicente, no Pranto de Maria Parda, faz chistosa referencia ás ruas da Lisboa
quinhentista onde havia tabernas com o clássico ramo á porta.
Hoje todas as ruas teem tabernas, das qaaes algumas se disfarçam, para encobrir
o vicio de pudibundos beberróes engravatados, ao fundo de carvoarias e outras lojas de
honesta apparencia.
O capitalista Quintão, que morreu ha annos em Bucellas, estabeleceu na rua do
Loreto uma taberna que se mascarava em colchoaria.
Abundam não só as tabernas e
tendinhas ccmo os armazéns e depó-
sitos de vinho por grosso e a retalho.
Os botequins, com bilhar ou sem
elle, dividem-se em duas categorias:
boieqiiins propriamente ditos e cafés
de lepcs.
Os potequins da primeira cate-
goria não são muitos em relação á
população da cidade, nem esplendo-
rosos.
Os mais notáveis pelo asseio ou
pela frequência pouco excederão uma
dúzia, a saber: o Alarliuho, o Suis-
so, o Imperial, o T^arares (botequim e
restauranl), o Áurea, o Marrare, o
Montanha, o De France, o Grego, o
Madrid, o Chat Noir com a especia-
lidade de camareras, alem das cerve-
jarias da Trindade, do Leão e do Jansen.
Alguns- d'estes e outros cafés teem clientellas especiaes, predominando n'ellas cer-
tas classes ou colónias.
Assim o Martinho é frequentado por militares, empregados públicos e brazileiros,
o Suisso por litteratos, jornalistas e actores, o Marrare por toureiros, o do Gelo por
estudantes, o Ajonlanha por francezes, e a cervejaria Jansen por inglezes e allemães.
O mesmo succede com determinados reslaiii'ants : o Leão douro, por a troupe dos
pintores, de alguns dos quaes são as tehs que revestem as paredes de ambas as salas;
a Palisserie Violttle e a Palisserie Suisse por burocratas e negociantes á liora do lunch;
o Tavares p-^las cocottes que ceiam n'uma orgia económica ostras de Montijo e cham-
pagne. . . da Vinicola em gabinete particular.
Nos botequins de primeira ordem não ha musica, com excepção da cervejaria Jan-
sen, onde costuma tocar um grupo de artistas : delle tem feito parte em varias tempo-
radas o distincto Cagiani, violinista romanesco, de envergadura verdadeiramente meri-
dional, mais phantasista do que impeccavel.
O gosto pelos concertos em botequim tem-se desenvolvido mais no Porto do que
na capital.
Os cafés de lepes principiaram por estabelecer-se nos bairros fadistas, Alfama. Mou-
raria e Bairro Alto. Depois irradiaram para toda a cidade, com o mesmo caracter de
frandulage social. Bailhões, marujos, cocheiros, rufiões, vadios e rameiras são os seus
ado de flores na Avenida da Liberdade
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
173
frequentadores habituaes. Uma atmosphera crassa de fumo e eructações alcoólicas en-
venena[o ambiente d'esses cafés pelintras, ordinariamente pequenos, e um piano tuber-
'4— Fachada da igreja de S- Vicente
culoso geme as tristezas languidas do Fado nacional ou andeja trechos de zarzuelas e
valsas de clubs populares, n'um esforço de alegria e de pulmoeira.
174 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
São os frequentadores d'estes cafés que ordinariamente fornecem ao Diário de
Noticias e ao Século a longa narrativa de crimes passionaes, em que a navalha ou a faca
rasga a carne de mulheres fanadas, rouquenhas e amarellecidas, sendo a morte quasi
certa, porque o golpe entra fundo á falta de uma almofada adiposa que lhes defenda a
existência.
Segundo as tradições da fadistagem lisboeta, os homens e as mulheres que a culti-
vam de noite e de dia são fanáticos pelos Fados e pelos touros.
Antigamente a bohemia fidalga suciava com os fadistas n'aquellas duas predilecções
do povo da Extremadura, mas os fidalgos de raça arruinaram se e os titulares moder-
nos julgar-se iam amesquinhados, por philaucia, entre gente de baixa estofa.
A velha nobreza alfacinha, opulenta, devota e estróina, cujos ascendentes se locu-
pletaram com doações regias e usurpações ás ordens monásticas, essa remota nobreza
de pergaminhos e morgados, que tantos palácios possuiu em Lisboa e tantas quintas nos
arrabaldes, veiu escoando-se através do tempo, como um riacho de sangue azul, que as
dissipações, a guerra civil e os agiotas foram adelgaçando até lhe deixar apenas um fio
de tradição e de propriedade.
O dinheiro, por successivas operações de thesouraria, passou das mãos dos fidalgos
decadentes para os burguezes solenes, que depois se fizeram titulares, e lhes apanha-
ram os palácios e as quintas por dez réis de mel coado.
Quanto a palácios, foram quasi todos vendidos pelo custo da cantaria unicamente,
e o seu mobiliário dispersado em leilões, a alguns dos quaes eu assisti... como espe-
ctador apenas.
Dos titulos antigos poucos restam já, mas, em compensação, uma selva de condes
e viscondes de fresca data floresce exuberante e pimpona.
Comtudo, a mercê honorifica mais vulgar em Lisboa, attingindo as proporções de
uma enxurrada diluviosa, é a carta de conselho, que pertence, por inherencia do cargo,
aos ministros, aos directores geraes, aos presidentes da Relação, aos juizes do Supremo
Tribunal, e que se concede a todo o figurão que faz bem ou mal ás granJes compa-
nhias, aos bancos, aos asylos e ás irmandades ricas.
Pode dizer se afoitamente que em cem vezes acertará noventa quem, na capital,
chamar conselheiro a um homem de sobrecasaca e chapéo alto.
Lisboa é a cidade dos conselheiros, assim como Coimbra é a cidade dos doutores
e Braga a cidade dos padres.
Além da predilecção pelos Fados e pelos toiros, uma outra alvoroça o espirito dos
alfacinhas: é o theatro.
Para apanhar uma borh^ o lisboeta é capaz de perseguir os empresários durante
um dia inteiro e de o esperar a pé firme durante quatro horas, ao sol ou á chuva.
Para representar uma scena-comica ou uma comedia n'um theatrinho particular,
abandona a repartição, a officina, o escriptorio ou a loja.
Elle trata por tu os actores e os camaroteiros, conhece as actrizes, fala aos contra-
regras, e aperta a mão aos alfaiates e aos illuminadores.
Deante dos empresários, desbarreta-se, curva-se, adoça-se.
Critica as peças, compara as, discute as.
Faz Talmas e desfaz Talmas, com a sua tagarellice ^or foycrs e botequins, ou á
porta da Mónaco.
Leva informações aos jornaes para conquistar o direito de pedir um bilhete de thea-
tro, e leva rebuçados e flores ás actrizes. . . quando cilas são amantes dos empre-
sários.
Em S. Carlos emproa-se, em D. Maria desdenha, no Príncipe Real chora, no D.
Amélia delira, na Trindade agaiata se, no Gymnasio e no Avenida ri, no Colysru fuma.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA 175
e na Rua dos Condes engole tudo com tragos de vinho que, nos intervallos, vae beber
ao Café do Globo.
Um dos géneros de theatro que dá mais no goto aos lisboetas é a Revista do anno.
Sendo Lisboa a sede do governo e possuindo um templo exclusivamente dedicado
á Politica — a arcada do Terreiro do Paço—, localisados na cidade os mais ardidos jor-
naes de combate e os mais poderosos centros partidários, explica-se facilmente, por to-
das estas circumstancias, o gosto por um género de theatro que durante largos annos
teve essencialmente o caracter de aggressão violenta ao ministério e ao parlamento...
ás vezes até ao rei.
Lopo Vaz foi o primeiro ministro que, no nosso tempo, começou a apertar a tar-
racha para conter a mole das allusões pessoaes.
Depois outros lhe seguiram o exemplo, e a policia assumiu o dever de assistir aos
ensaios geraes das revistas do anno, de lápis em punho, como um censor em exercício.
Alguns ministres, porém, mais sequiosos de popularidade, para compensar a falta
de um forte bloco partidário, como João Franco, teem consentido que os revisteiros os
caricaturem em scena e dado ordem á policia para não aparar muito o bico do lápis azul.
Dos vivos para os mortos é rápida a ponte de passagem. Com razão disse Claude
Benard que a vida é a morte.
Ha em Lisboa varias estatuas de finados illustres e alguns monumentos commemo-
rativos de acontecimentos históricos, umas e outros erigidos, na sua maior parte, com
o dinheiro da nação.
E' grandiosa a estatua de D. José, no Terreiro do Paço, e, depois d'ella, cabe men-
cionar, na via publica, as de Camões, D. Pedro IV, marquez de Sá da Bandeira, duque
da Terceira, Affonso de Albuquerque, José Estevam, Sousa Martins e marechal Salda-
nha ', além dos bustos de Eça de Queiroz, Eduardo Coelho e visconde de Valmor; den-
tro de edifícios: na Bibliotheca Nacional, a estatua de D. Maria I; na Camará dos Pa-
res, os bustos dos seus antigos presidentes vitalícios, e no recinto da Escola Medica o
do professor Manuel Bento.
Nos dois cemitérios, dos Prazeres e do Alto de S. João, ha bustos e estatuetas so-
bre alguns túmulos.
Pelo que respeita á generalidade dos mausoléos, o mais sumptuoso é o do visconde
de Valmor no ultimo d'aquelles cemitérios.
Eu acho-o excessivamente pesado e vaidoso Parece-me que o mármore, como as
flores, deve ter leveza e simplicidade para agradar. Prefiro a violeta e o myosote, na
arte e na natureza, ao chrysanthemo e á dhálla.
Como em Portugal faltam millionarlos, é quasi sempre o Estado que perpetua a
gloria dos mortos por algum titulo ilUistre, fornecendo o monumento todo, ou só o bronze
e a fundição. Quando isto não succede, recorre-se á subscripção publica, que, n'uma
cidade pobre como é Lisboa, falha algumas vezes.
Assim, pois, o marquez de Pombal e Camillo Castello Branco estão em risco de
ficar sem estatua, por inópia de subscriptores.
Para honrar a memoria de Fontes Pereira de Mello, chegou a ser lançada a pedra
fundamentai na Avenida da Liberdade, em frente da calçada do Salitre, talhão Occiden-
tal; este estadista teve subscripção, mas não teve estatua — o que é talvez peor.
N'outros paizes, em França por exemplo, basta um só homem para custear a des-
pesa de um monumento.
Mr. Patron deu da sua algibeira 5o:ooo francos para erigir-se a estatua de Bernar-
din de SalntPlerre, no Jardim das Plantas, em Pariz.
' Ainda não erigida sobre o pedestal, em novembro de 1907, quando isto escrevo.
■76
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Entre nós, a pobreza nacional não permitte rasgos dispendiosos ; e excepcionalmen-
te uma família, como a do visconde de Valmor, assume a responsabilidade financeira
de um mausoléo ou de uma estatua.
Os monumentos commemorativos são, na capital, em muito menor numero que as
estatuis. Não me refiro aos monumentos lapidares na fachada de prédios onde nasce-
ram ou morreram cidadãos beneméritos : porque a lapide é uma cousa barata, e a isso
chegamos nós.
Eu mesmo não encontrei dificuldade em fazer que na camará municipal fosse vo-
tada a proposta para collocar-se uma inscripção na casa era que António Feliciano de
Castilho nasceu.
Mas, quanto a monumentos de exclusivo caracter allegorico, Lisboa tem unicamente
um: o dos Restauradores de 1640 na Ave-
nida da Liberdade.
Do que no largo de S. Roque memo-
ra o casamento de el rei D. Luiz com a
princeza D. Maria Pia de Saboya, e foi
mandado construir pela colónia italiana,
aliás pouco numerosa, bastará lembrar,
para se fazer ideia da sua modéstia, a
alcunha de — Palmatória — com que logo
o povo o designou.
Já é tempo de chegarmos á caracteri-
sação total da cidade pelo enaipamento dos
seus bairros.
Primeiro falaremos dos bairros anti-
gos, deixando para o fim os modernos, em
respeito á chronologia.
Quem ha trinta annos entrava na ci-
dade pela estação de Santa Apolónia, co-
mo eu entrei, ficava desagradavelmente
surprehendido com entrever as alfurjas do
bairro de Alfama pela abertura dos arcos
mouriscos ou cutras apeitadas passagens
que dão sobre a ribéii a velha do Tejo.
E não tinha, para contrabalançar essa má impressão, senão três ou quatro curiosi-
dades interessantes situadas no terreno marginal do famoso rio: o Arsenal do Exercito,
o chafariz de ElRei, a igreja da Conceição Velha e, na rua dos Bacolheiros, a Casa
dos Bicos.
Hoje, o caso muda de figura.
O bairro de Alfama está mascarado sobre a ribeira por alguns prédios de recente
construcção, grandes e dispendiosos, taes como aquelle onde, na rua do Jardim do Ta-
baco, a Nova Companhia Nacional de Moagem estabeleceu os seus vastos escriptorios.
De modo que se pode dizer que o bairro de Alfama c o contrario das pérolas :
n'elle a cisca ribeirinha tem maior valor monetário do que o conteúdo sombrio.
Alfama é um dos restos da ancestral Lisboa do tempo dos moiros e dos judeus, um
dédalo de viellas escuras e comprimidas, como em geral são as povoações semíticas,
talvez por tendência hereditária para as tornar mais defensáveis contra a torreira do
sol e a invasão de inimigos armados.
Ali foi também a judearia, aliás com mais caracter privativo, porque os mouros
tiveram um outro bairro ainda hoje conhecido pelo nome de Mouraria.
335— Estatua de D. Pedro IV
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
177
178 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A palavra Alfama vem do arabe : seja de hamá, couto, refugio, ou de alhamma,
caldas, fontes quentes, o que não deixa de fazer sentido, visto como subsistem n'esse
bairro as Alcaçarias de D. Clara e do Duque, na rua do Terreiro do Trigo.
Muitas vezes a imprensa tem pedido a demolição dos pardieiros, arcos, passadiços
e o arrazamento das ruas de Alfama, a meu vêr erradamente. Que se desacumule a
população e se faça beneficiar o interior dos prédios, sem comtudo modifical-o funda-
mentalmente, vá, pode ser medida aconselhada pela hygiene e pela moral. Mas deixe-se
de pé o bairro como reliquia do passado e termo de comparação com a Lisboa moderna.
Será, em todos os tempos, antigualha estimável para mostrar ao estrangeiro uma
pagina de pedra que recorde a chronica primitiva da cidade.
Este bairro miserável, de fadistas, de taberneiros, de regatôas e carregadores tem
sobre o Bairro Alto, cuja tradição é aproximadamente a mesma, a vantagem de ser um
coió occulto, uma espécie de esconderijo recôndito, apenas transitado pelos seus mora-
dores.
O trecho que se limita com a ribeira do Tejo exhibe uma intensa laboração com-
mercial, de grande e pequeno negocio.
Aquelle é representado pelos escriptorios de empresas e companhias ou pelos ar-
mazéns e depósitos. Sirva de exemplo a rua dos Bacalhoeiros, tão feia, tão mourisca
ainda no aspecto do seu Arco escuro e do seu Arco das Portas do Mar^ tão conhecida
do forasteiro pela sua Casa dos Biccos, mas tão embuchada de grossos costaes de baca-
lhau sobrepostos em altas rumas ao fundo de casarões immensos.
O negocio a retalho consiste principalmente na venda de viveres e bebidas para
uso dos marinheiros, dos calafates, dos carrejões, carroceiros e operários das fabricas
da extrema oriental da cidade.
No plano superior ao âmago do bairro de Alfama, onde reside a miséria, a fadista-
gem, o vadio e o proletário, fica empoleirado o bairro de S. Vicente, com o seu paço
patriarchal, a sua igreja magestosa, os seus palácios e as suas memorias archeologicas»
algumas hoje puramente nominaes, como os antigos conventos e as Escolas Geraes cu
universidade primitiva.
O bairro de S. Vicente, já o disse algures, é por tradição politica aquelle onde re-
sidem muitas famílias illustres, cujos representantes actuaes mantéem ainda um respei-
to inabalável e uma enternecida saudade pelo antigo regimen da monarchia absoluta.
Essa velha nobreza realista, que também occupa em parte o bairro da Graça, vive
independentemente e repousada, sem quebra de sua fé politica e de seus hábitos ele-
gantes de vieille roche.
Não frequenta, por intransigência de caracter e de convicção, a corte constitucional;
apenas vae ás salas dos seus correligionários, onde a fraternidade de convivência suppre
a falta de festas e recepções brilhantes.
Uma atmosphera de luto e saudade, não pela morte de um parente, mas de um re-
gimen, envolve melancolicamente toda a existência d'essa leal colónia de realistas, e tanto
o interior como o exterior das suas casas.
De vez em quando algum pallido raio de sol, que vem de longe, banha de uma luz
suave como a do crepúsculo vespertino a alma das famílias que choram ainda sobre as
ruinas do passado.
E' alguma carta do successor do príncipe que morreu exilado em Bronnbach e que,
durante alguns annos, reinou em Portugal ; ou de Soror Adelaide Sophia, irmã do prín-
cipe Carlos de Lcewenstein Wertheim Rosenbcrg, a doce companheira d'aquelle desven-
turoso príncipe, a freira piedosa que procurou na religião o lenitivo christão para a re-
cordação das amarguras que soffreu e viu soffrer.
Depois de ter acompanhado dedicadamente o seu marido, depois de ter educado
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
•79
esmeradamente os seus filhos, essa desambiciosa princeza bávara procurou n'um con-
vento a quietação e humildade em Deus.
De tempos a tempos, como quem honradamente amortisa uma divida de gratidão,
ella apenas se lembra do mundo para enviar uma palavra de affecto ás famílias dos an-
tigos servidores de seu marido.
E assim, n'um palco que abrange dois paizes, separados por centenas de léguas,
vão perpassando, através do tempo, as scenas commoventes de um longo drama politi-
co, sem que as personagens de um e outro paiz sintam fadiga ou desalento, mas, pelo
contrario, dando ao mundo o exemplo de uma heróica lealdade, aliás muitas vezes re-
petido em corações portuguezes.
D'ess3s famílias realistas, que prin-
cipalmente habitam o bairro de S. Vicen-
te, pode dizer-se que são duas vezes a
melhor gemma da vieilh roche : pela no-
breza do nascimento e pela sua inque-
brantável fé monarchica, tão firme como
os rochedos que o mar açoita.
Padres que vão ao Paço doPatriar-
cha, seminaristas do Pequeno Seminá-
rio, •, ofEciaes do exercito que frequen-
tam o Tribunal Militar, antiquários que
revolvem a feira da ladra oriental, fa-
mílias da nobreza realista e creanças
que levam offerendas á imagem de S. Vi-
cente, constituem o principal movimento
d'este bairro pacato e tranquillo.
Uma locução proverbial dos alfaci-
nhas — obras de Santa Eiigracia — li-
ga-se ao bairro de S. Vicente pela con-
strucção incompleta do templo que no
século xvn se pretendeu erigir em des-
j • ., 11 3?7— Estatua de Sá da Bandeira
aggravo de um crime sacrílego, peio qual
foi in)ustamente condemnado certo individuo de appellido Solis.
O bairro da Graça, contíguo ao de S. Vicente, e como elle situado no alto, é, já o
fiz notar, um desdobramento aristocrático de famiUas realistas, postoque muito mais
concorrido e animado que o seu vizinho.
Lisboa em peso sobe ao bairro da Graça, principalmente em todas as sextas feiras
do anno, por devoção com a imagem do Senhor dos Passos, que é a mais querida e
venerada pelos lisboetas.
N'esta cidade populosa, onde os ricos são poucos e os torturados da vida muitos,
a fé religiosa é uma tábua de salvação, um esteio e recurso absolutamente indispensável
e mitigantemvinte consolador.
Mas o lisboeta circumscreve a fé religiosa á imagem do Senhor dos Passos e, em
segundo logar, a Santo António. Leva ordinariamente a sua frivolidade mundana para
as igrejas; excepto para a da Graça. Vai á procissão da Saúde para vêr os militares na
rua e as mulheres nas janellas; mas assiste recolhido e contricto á passagem do Senhor
dos Passos, da Graça para S. Roque e de S. Roque para a Graça.
> O grande seminário do patriarchado está em Santarém. Vide Santarém no i." vol.
i8o
EMPREZA DA Historia de Portugal
Este fervoroso culto dos lisboetas tem mais de trezentos annos e creou profundas
raizes em todas as classes sociaes.
Na irmandade predomina o elemento aristocrático, a familia real vai beijar o pé ao
Senhor dos Passos na igreja de S. Roque, uma nova túnica é cada anno ofFerecida pela
casa dos marquezes de Fronteira, á ablução da imagem com essências aromáticas e á
investidura solemne di túnica na igreja da Graça preside o Cardeal Patriarcha ; mas o
povo não abdicou nunca o direito de uma veneração tão intensa e hereditária como a
3JS--Kuina8 do Convento jo Carmo
dos fidalgos, sustenta-a sem rivalidade, antes com inteira concordância de crença e de
fervor.
Dizse que, no anno de i585, um obscuro pintor, de nome Luiz Alvares de Andrade,
a quem certo esculptor italiano vendera uma cabeça de Christo, se lembrou de offerc-
cel a aos jesuítas de S. Roque para que na sua igreja deixassem fundar a irmandade
dos Passos, que já existia em Hespanha.
Os Padres da Companhia recusaram, mas os gracianos acceitaram a ofiferta e con-
sentiram que no respectivo templo se fundasse a irmandade.
O culto foi desde logo bem recebido, não só porque era uma novidade em Portu-
gal, mas ainda, talvez, por haver sido regeitado pela Companhia e acceito amoravel-
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
181
mente pelos religiosos de Santo Agostinho, o que chamava sobre elles a sympathia que
sempre colloca a opinião publica do lado do mais fraco ou do mais transigente.
Medrando a devoção, cresceram com ella as esmolas e donativos, a ponto de se
arrependerem da recusa os jesuítas.
D'aqui nasceu um pleito entre jesuítas e gracíanos, porque uns allegavam a offerta
í outros a posse.
Uma sentença salomonica poz termo á demanda, contentando ambos os litigantes
— o que em geral n5o costuma succeder.
Decidíu-Ee que os graciancs mantivessem a posse, comtanto que na vig;lia da se-
gunda sexta feira da quaresma a imagem viesse a S. Roque ; e que se na sexta feira
não recolhesse á Graça, ficaria pertencendo definitivamente a S. Roque.
Eis aqui a razão por que n'esse dia, ainda que chova torrencialmente, se faz a
procissão de retorno.
O povo nas ruas, as damas nas janellas, não deixam nunca de assistir á passagem
da procissão, que com mais ou menos pressa, segundo o estado da atmosphera, atra
vessa a cidade no meio de um respeito e acatamento edificantemente imperturbáveis e
sinceros.
Quando o préstito entra no bairro da Mouraria, as meretrizes da rua do Capellão
acodem ao seu encontro e, avistando o andor do Senhor dos Passos, ajoelham, humi-
Iham-se e choram, tendo n'esse momento a nitida consciência da miséria infamante em
que vivem.
Habitualmente, ás sextas feiras, o ascensor da Graça e os carros eléctricos da linha
i82 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
d'este bairro vão cheios de pessoas de todas as classes, que realisam a sua peregrinação
semanal ao Senhor dos Passos.
Do terreiro do templo, voltado para oeste, a vista espraia-se por o vasto panora-
ma da vertente occidental da cidade, do leito do Tejo, do pontal de Cacilhas e do re-
levo orographico de Almada.
E' um horizonte verdadeiramente encantador, que só pode achar rival no que se
descobre do Castello de S. Jorge, próximo vizinho da igreja da Graça, e ainda do
adro da capella do Monte ou da Penha de França.
O bairro do Castello, em geral com um caracter antigo, de origem militar, tem
o que quer que seja de burgo alcandorado e aéreo, d'onde se vê a cidade sem a ouvir.
Para todas as ruas da parochia de Santa Cruz dá serventia a porta principal do
Castello, que precede a praça d'armas.
Este bairro mantém a sua remota physionomia marcial, não só porque ali está
aquartellado o regimento de caçadores 2, mas ainda porque fica dentro da fortaleza a
cadeia militar, e também porque é do Castello que o general S. Jorge, de lança em pu-
nho, sai com o seu pagem, os seus pretos e o seu esquadrão na quinta feira de
Corpus Chrisli.
Ao sopé da Graça assenta o bairro da Mouraria e, mais para o norte, alonga-se o
dos Anjos e altea-se o da Bemposta.
Ao sul do Castello demora o bairro da Sé.
Com estes quatro bairros teremos completado o núcleo da cidade oriental quando
já ia adeantado o curso do século xix.
A Mouraria, posto que algum tanto modernisada, é ainda hoje um bairro infamado
por marafonas, rufiões e cafés de lépes. Estão comprehendidos n'elle esses immundos
prostíbulos do beco da Amendoeira e da rua do Capellão, outr'ora propriamente deno-
minada Suja. Predomina nas suas bitèsgas o caracter mourisco, subsistindo o vestígio
de passagens abobadadas, como no arco do Marquez de Alegrete.
E' aqui que ordinariamente se travam as maiores pugnas entre fadistas, marinhei-
ros e soldados de linha com a policia civil e a guarda-municipal.
E' aqui, como no Bairro Alto e Alfama, que se fala o calão alfacinha, de que o
sr. Alberto Bessa coordenou pacientemente o vocabulário.
Não obstante, em plena Mouraria, depara-se-nos um culto elegante, o da Senhora
da Saúde, cuja capella a familia real visita no dia da procissão respectiva; e uma das
primeiras ourivesarias de Lisboa — a do Oliveira, á Guia.
O bairro dos Anjos é servido pela grande artéria da rua da Palma, que a liga cotit
o centro da cidade.
Bairro de muito transito, de muito commercio e rumor, elle comprehende dois hos-
pitaes, de S. José e do Desterro, o theatro do Príncipe Real, o Real Colyseu, quasi
sempre fechado, fabricas, fornos, officinas, lojas de ourives, de confeiteiro, de estofa-
dor, tabacarias, tendas, e tabernas.
Pertence ao numero dos bairros que não tem outro caracter senão o da mescla das
profissões creadas ou, quando menos, desenvolvidas pela actividade moderna.
Dois factos o renovaram recentemente: a abertura da Avenida D. Amélia c a con-
strucção da nova igreja parochial, pois que a antiga foi sacrificada ao alinhamento
d'aquella avenida *.
A architectura do templo é simples c elegante.
' Ha pouco tempo surgiu a ideia de construir um Theatro Moderno no terreno situado entre •
Avenida D. Amélia, a rua da Senhora do Re$^'ate e o Regueirão dos Anjos.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA i83
Aproveitaram-se n'elle a obra de talha e outras guarnições que eram dos altares da
igreja demolida.
O bairro da Bemposta communica com o dos Anjos e lembra o que quer que seja
de Buenos Ayres do oriente.
E' tranquilló, afidalgado, saudável.
Possue o amplo campo dos Martyres da Pátria (antigamente Campo de Santa' Anna)
com palacetes de aspecto recolhido, o novo edifício da Escola Medica e o monumento
de Sousa Martins.
Este campo é flanqueado sobre o occidente pela escarpa pittoresca do Pateo do
Thorel, onde um grupo de chalets sorri na luz e no alto.
O asylo de Mendicidade e o hospital de Rilhafolles põem a nota triste da velhice
e da loucura na ilharga septentrional do Campo dos Martyres da Pátria.
Deu nome ao bairro o local do palácio onde resiJiu D. Catharina de Bragança,
viuva do rei Carlos ii de Inglaterra, — edifício este que mais tarde entrou na Casa do
Infantado por doação de D. João v a seu irmão D. Francisco.
Hoje o antigo palácio real é Escola do Exercito.
O que ha de vida e movimento no bairro da Bemposta vem-lhe justamente da mo
cidade que frequenta a Escola Medica, a Escola do Exercito e o Instituto Agrícola
bem como da vizinhança dos quartéis de infantaria e cavallaria da guarda-municipal.
O amor civil e o amor militar sacodem as azas travessas sobre este bairro extenso
especialmente o amor militar, que pelos seus vivos e doirados exerce uma acção romã
nesca no coração das Julietas bairristas.
Os cadetes da Escola do Exercito são, na área da Bemposta, Romeus estonteantes
que algumas vezes se estonteam por sua parte a ponto de não esperarem pela conclu
são do curso para perpetrar o hymeneu.
Quando isto acontece, chega a gente a ter pena do joven marido que passea na
Avenida com a espada pendente da cinta, a mulher pendurada do braço e o fardo do
casamento ás costas.
E' a verdadeira asphyxia da mocidade. . . no exercito.
Os dois quartéis da municipal fazem as delicias cupidineas de sopeiras aluadas.
O bairro da Bemposta continua-se ao norte com o Estephania, que fica, como os
outros novos bairros, esperando menção especial.
Para leste havia ainda um supplemento de povoação em Arroyos, e para noroeste
outro supplemento em S. Sebastião da Pedreira, mas tanto um como outro eram pe-
quenos bairros suburbaaos, que entestavam com as portas da cidade.
A Lisboa oriental limita se, pelo sul, com o bairro da Sé.
E' n'elle que se acham localisados a Patriarchal, d'onde vem o seu nome, a Real
Casa de Santo António, a igreja da Magdalena, o Limoeiro, o Aljube, o Banco Hy-
pothecario, os palácios do marquez de Penafiel e do visconde de Benagazil.
A linha eléctrica da Graça aviventa hoje do Limoeiro para cima o bairro da Sá,
porque desde a Magdalena para os arruamentos da Baixa teve sempre este bairro a
vida que resulta do trafego commercial.
A industria hodierna apossou-se de algumas ruas outr'ora solitárias, como por exem-
plo a do Barão, onde a fírma João Luiz de Sousa e Filho edificou grandes prédios e
estabeleceu os escriptorios da suá importante fabrica de moagens.
Outras ruas, porém, e a das Pedras Negras é uma d'estas, dormem na pacificação
antiga ou, como a da Padaria, conservam o typo archaico.
Dados apenas alguns passos estamos na Baixa, que se estende pelo valle central
desde o Terreiro do Paço até á Avenida da Liberdade.
Aqui pulsa o coração de Lisboa, aqui conílue o movimento burocrático, o movi-
I
184
EMPREZA DA HISTORIA DE POR fUGAL
mento commercial, o movimento mundano, como outros tantos rios caudalosos que
embasbacam de admiração o provinciano e envaidecem o lisboeta.
O Terreiro do Paço, com as suas secretarias de Estado, das quaes a Arcada bis-
biihoteira e intriguista é uma escorralha infecta, desgoverna todos os dias o paiz por
meio de decretos, portarias e regulamentos que os conselheiros minutam e os amanuen-
ses copiam.
E' n'esta machina ruidosa, sempre em movimento, que se fabricam nomeações, de-
missões, perseguições e eleições.
Das grandes artérias da Baixa que desembocam no Terreiro do Paço, a que consti-
tue o troltoir mais calcado tem sido, desde a reconstrucção pombalina, a rua do
Ouro.
A alta finança frequenta a rua dos Capellistas, transversal á do Ouro; mas a mun-
danidade ociosa pisa de preferencia as
lages d'esta rua e do passeio occidental
do Rocio.
Tão preconisada rua, com todo o
seu caracter mundano — a qual o sr. Al-
fredo de Mesquita photographou littera-
riamente n'um romance A rua do Ouro,
á similhança do que fez no Rio de Ja-
neiro o dr. J. M. de Macedo escrevendo
as Memorias da rua do Ouvidor — tão
preconisada rua, vinha eu dizendo, exhi-
be sempre os mesmos transeuntes e os
mesmos mirones: não variam nunca os
bigodes e os monóculos dos janotas de
plantão, que ali fazem por costume o seu
«pé de alferes».
Milito scismava com essa exótica ex-
posição de homens arrimados ás paredes
da rua do Ouro uma espirituosa iiisti-
tulrice, que tinha chegado recentemente
de Pariz.
— O que fazem estes senhores ? per-
guntava ella.
— Nada mais do que isto.
E mademoiselle, sorrindo, e não querendo aventurar uma phrase duramente inci-
siva, limitava-se a dizer :
— Cesl drôle !
Quanto ao sexo feminino, já na rua do Ouro é conhecido o horário de todas as
damas que a frequentam.
— Fulana passa ás quatro horas.
— A familia de Sicrano é certa ás quatro e meia.
Em conclusão : sempre a mesma gente, as mesmas caras, as mesmas pessoas de
um e outro sexo, porque falta a Lisboa a população lluctuante de forasteiros que avo-
luma o trí^nsito e varia o aspecto das outras capitães da Europa, especialmente Pariz.
Mas quando em Lisboa se realisam festejos pomposos e se accendcm luminárias,
como acLnteceu por occasião da visita do rei de Inglaterra, do rei de Hespanha, de
Guilherme II, e do presidente Loubet, um reforço de população emanado dos subúrbios
e das provindas anima, movimenta, vitalisa as ruas da capital.
.Q
340— Estatua do duque da Terceira
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
i85
Lisboa parece então outra, porque tem n'esses dias o que habitualmente lhe faz
falta : gente e luz.
Sentimos um certo prazer em vêr caras desconhecidas, as toileties demodécs que-
bram alegremente a uniformidade do ultimo figurino, chapeletas anachronicas berrarn
como araras sobre a cabeça das provincianas, uma sobrecasaca antiga ri por entre as
rugas com que saiu da mala, familias inteiras com os filhos, as sogras e as criadas con-
341 — Um Irecho de ilauslro dos Jeronymos
stituem grupos pmorescos, e os ranchos dos saloios, homens de maticÕes e carapuça,
mulheres de saia côr de rosa, põem manchas vivas e damantes no conjunto da multidão.
E' uma delicia para os olhos e para o espirito, porque a variedade dele ta.
Os empregados públicos e os políticos são absorvidos então pela turba dos foras-
teiros, tamanha ella é, pois que tantos elles são.
Os mirones da rua do Ouro não resistem aos primeiros encontrões, fogem, desap-
parecem, e só retomam o seu poiso depois das festas, barafustando despeitados : iFe-
lizmente que já estamos livres da maçada!»
vot- 11 a^
i86 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
A Avenida, n'essas occasiões, tem o ar de um arraial cheio de côr e de ruido: vive,
e é d'isso que ella precisa para ser um boulevard.
Habitualmente, durante a semana, chega a fazer pena que um tão magestoso re-
cinto seja apenas logradouro de meia dúzia de pessoas nos bancos, e de centenas de
pardaes nas arvores.
E então, talvez por se sentirem muito á vontade, é que os pardaes tomam liberda-
des excrementicias, em revolta contra as Posturas municipaes e o Código de civilidade
de João Félix Pereira.
Ao domingo, no regresso das touradas, a Avenida enche-se de alto a baixo, pas-
sam carruagens modestas, que sobem e descem muitas vezes, o que faz parecer que
sejam mais numerosas— pelo systema dos comparsas no theatro, que saem por uma
porta e entram por outra.
Ha effectivamente qualquer coisa de theatral n'isso— mas é bem melhor do que
a solidão dos outros dias, em que uma pobre pessoa que por ali passe tem de soffrer
os olhares de todas as outras pessoas que estão anciosas por um «lá vem um», — uma
victima expiatória.
A Baixa agrupa na sua área, de j;arceria com o Chiado, os primeiros hoieis e as
primeiras confeitarias, bem como possue os mais concorridos botequins da capital e o
Lotivre de Lisboa — os Armazéns Grandella.
A lisboeta, sempre gulosa — de bolos, de vestidos, de jóias, de iheatros e de na-
moros—delira por entrar no Rende^-7'ous des gourmels^ na Palisserie Violetle ou na
Palisserie Suisse, na Maison Parisietuie, ou no Bijou da Avenida.
A lisboeta morre por comer bolos e come-os com sofreguidão, o seu lunch no
confeiteiro parece não ter confiança no jantar de família •, mas quer que o grande pu-
blico saiba que ella teve dinheiro para devorar gulosinas de bom tom.
Por isso só as velhas vão lanchar pasteis do Cócó á burgueza confeitaria Rosa
Araújo na rua de S. Nicolau.
Também, de parceria com o Chiado, a Baixa monopolisa os theatros — D. Maria,
rua dos Condes, Avenida e Colyseu dos Recreios.
Os hotéis da cidade central ou são frequentados por provincianos, como o Franc-
fort e o Francfort Hotel, ou por alguns dos poucos estrangeiros de distincção que
poisam em Lisboa, como o Grande Internacional e o de Inglaterra.
As hospedarias, antigas estalagens, n'uma graduação inferior aos hotéis, abundam
como toitulhos n'um lameiro. . . de quartos e camas.
Ultimamente, tem-se adoptado a pension, que nem é o hotel ruidoso nem a hospe-
daria clássica, sendo a mais conhecida de provincianos abastados e commodistas a que
está instaliada no prédio de esquina para a calçada e rua da Gloria.
A cidade Occidental podia div^idir-se em bairros do sul e do norte.
Os do sul eram Chiado, Santa Catharina, S. Paulo, Aterro, Santos e Alcântara.
O Chiado, ha trinta annos, como ainda hoje, presumia-se o Regent Street de Lis-
boa, salvas as proporções.
Júlio César Machado, descrevendo o Chiado de Londres, dizia: «E' uma rua lar-
guíssima, toda adornada de lojas magnificas de um lado e outro, lo)as de ourives, arma-
zéns de fazenda, casas de modas, etc. Os dandys que não fazem nada e que não teem
nada que fazer, por ali passam o seu dia, conversando, gyrando, flanando.»
Reduzam a 5o 7o e terão o Regent Street de Lisboa.
O Chiado nem é uma rua larguíssima, nem uma rua plana i e também não c das
mais alegres: a mais afamada e elegante, sim.
Tem por si a tradição da haute gomme, que aliás não provém de uma origem nobre
da rua. Mas aristocratisou se, e é o que importa. Todo o lisboeta que dér nas vistas do
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
187
Chiado recebeu a consagração publica. Está lançado e conhecido. Toda a cocotte que se
quer annunciar, sobe o Chiado ou desce o Chiado e fica sendo unoa hetaíra em voga.
Todo o litterato tem escrioto mil vezes a palavra Chiado no romance, no folhetim, na
comedia, na scena-comica, e algumas vezes até na capa dos livros, como fizeram Júlio
César Machado ' e Beldemonio -.
A Avenida tenta disputar a primasia do Chiado, sobretudo no carnaval, mas o
Chiado continua a ser o mais ardente foco das folias carnavalescas dos marialvas.
Depois que um ukase do governo civil civilisou o carnaval de Lisboa, o Chiado
reage, embora seja muhado, e insiste no tiroteio de projecteis contundentes.
Quem governa no Chiado, a despeito da policia civil, das multas e das prisões, é o
marialva. Ora o marialva representa por si mesmo uma tradição, e portanto não se
deixa esbulhar de todas as tradições que o
completam e caracterisam. Fazem parte d'elle,
como elie faz parte d'ellas.
Entende que lavar o carnaval é estragalo.
E até certo ponto tem razão.
O antigo carnaval lisbonense, bruto e fe-
roz, distinguiu-se pela selvageria.
O carnaval civilisaio fica muito inferior,
por ser mais pobre, ao do Porto em 1857, so-
bretudo ao carnaval portuense dos Feniaiios
na actualidade.
No Chiado ha lojas e montres brilhantes,
mar. não são um exclusivo seu, porque a Bai-
xa também, em geral, modernisou os estabe-
lecimentos commerciaes.
Mas uma loja do Chiado será sempre o
ideal da lisboeta coquelte.
Uma coisa é entrar a compras no Pari~
em Lisboa., outra coisa é comprar, como toda
a gente, nos armazéns Grandella.
E, comtudo, o Grandella, por esperteza
commercial, já procurou aproximar do Chiado o seu Louvre burguez, porque edificou
uma fachada sobre a rua nova do Carmo, a qual, como a rua nova do Almada, são
affluentes do Chiado.
Mas a questão é outra : a mulher exigente julga subir em categoria sempre que não
tenha de descer o Chiado para comprar uma toilelie.
N'este bairro, tão concentrado e vivo, agglomeram-se quatro igrejas, umas ao pé
das outras, e funccionam quatro instituições dynamicas do machinismo mundano de
Lisboa, a saber: o Grémio Litterario e a Havaneza, onde se sabe tudo. . . o que acon-
teceu e o que não aconteceu ; o theatro de S. Carlos e a missa da uma hora no Loreto.
Todo o lisboeta que se prese é arrastado pelas engrenagens d'estas quatro machi-
nas impulsivas.
São contornos meridionaes do bairro do Chiado o largo solitário da Bibliotheca Na-
cional e o edifício do Hoíel Bragança, onde de preferencia se hospedam as celebridades
estrangeiras em tournée e os diplomatas portuguezes en vacances.
Ao norie ficam os theatros do Gymnasio e da Trindade, n'um desvio discreto de
342— Monumento aos Restauradores
' Do Chiado a Veneja.
■' Viagens no Chiado.
liSI
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
theatros populares enxertados n'um bairro que, para ser o primeiro em tudo, nem se-
quer lhe falta a estatua do príncipe dos poetas portuguezes.
Sobre a calçada do Sacramento, perpendicular ao Chiado, erguem-se as monumen-
taes ruínas da igreja gothica fundada pelo Santo Gondestavel. *■
Kucllas tristonhas, como a da Oliveira e da Condeça, irradiam do largo do Carmo,
como restos de um burgo velho que vivia do mosteiro.
N'este largo, que os alumnos do i." liceu agora perturbam, e onde d'antes os agua-
deiros do chafariz estavam muito á vontade, nasceu Camillo Castello Branco, o mais
portuguez e o menos lisboeta dos
nossos escriplores modernos. *
Propriamente dentro do Chiado
houve outr'ora um botequim famoso:
o Marrare do Polimento. '
Hoje, do mesmo lado da rua, ha
a Pastellaria Marques, que serve á
grande roda o fii^e ó clok tea.
Fica uma coisa pela outra.
O bairro de Santa Catharina,
contíguo ao Chiado e prolongando se
até á raiz da calçada do Combro, faz-
se apenas notar pela sua tradição e
actividade burguezas.
Tem um commercio variado,
mas essencialmente popular.
Ainda no principio do século xix
o alto de Santa Catharina era um
mirante tranquillo aberto sobre o
Tejo e por isso mesmo frequentado
por velhos caturras que palestravam
ao sol.
Lá dissse Tolentino n'uma sa-
tyra :
Iremos ouvir mil petas,
Quando mais o sol se empinA,
VenJo acerrirros jarretas,
Junto a Santa Catharina,
Argumentando em gazetas.
Hoje, o Alto de Santa Catharina, com ter bons prédios e um jardim, ainda não
deixou de ser retiro convinhavel a jarretas eunuchisados e a collo]uios de guitas dos
Paulistas com sopeiras do Calhariz.
Ali a dois passos, na travessa de André Valente, morreu o mais talentoso bohemio
que tem tido Lisboa — Bocage.
Descendo para a maro,em do Tcjo entramos no bairro de S. Paulo, onde a feição
predominante é ainda mais accentuadamcnte popular. Este bairro ficou celebre pelos
seus antigos carvoeiros, aos quaes se não podia perguntar impunemente se já Iniha dado
343— Casa"onde morreu Bocage
* Os restos mortaes de D. Nuno Alvares Pereira estiveram na capella mór da igreja do Carmo até
ao dia 14 de março (\e i83t), em que foram trasladddos para a. Vicente de Fora.
* O romance do romancis a, pag. 10.
' Marrure, do nome do seu proprietário; do polimento lhe chamavam por antonomásia em virtude
d'e«te botequim ter a armação de madeira polida, o que então era excepcional.
A EXTREMADURA PORTUGUE2A
1S9
meio dia em S. Paulo. A caracterisação dos prédios e das lojas continua a ssr demo-
crática, quasi plebea, e por vezes provinciana como no quarteirão dos algibebes na rua
Nova do Carvalho. Algumas janellas com taboinhas inculcam lupanares baratos. E o
martelo das ofRcinas, o ruido das carroças, o tantaii dos carros eléctricos, e em certas
««
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3^4 — Um trecho da 1 isboa antiga
occasiões a algazarra dos rapazes do Instituto Industrial complicam dissonantemente a
vida n'este bairro.
O do Aterro, já o disse, tem o aspecto de um vasto cães, a chamada ribeira nova,
onde a industria da navegação e a industria fabril se dão as mãos para exercer o trabalho
lucrativo. Ha n'este bairro quarteirões de bons prédios, alguns dos quaes eu vi edificar.
O barulho aqui é ainda maior, mas torna-se menos impertinente por ser roais des-
afogado o transito.
1^0 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O silvo da locomotiva no ramal de Cascaes e as sereas dos vapores no Tejo e dos
automóveis em terra cortam com sibilos agudos o ar, sem que, graças á amplidão da
rua Virile e quatro de julho, firam irritantemente o ouvido.
Todo o movimento vehicular de Alcântara e Belém roda pelo Aterro, onde no in-
verno o mau tempo do sul é violento, e o sol no estio cruamente marroquino.
Da galeria popular destacam-se n'este bairro marginal três typos com evidente re-
levo : o catraeiro, a varina — e o carregador de sal ou carvão, em camisa e manaias.
Os catraeiros, homens fortes que n'outro tempo eram os únicos braços lusitanos
capazes de acalmar a murro a bebedeira dos marujos inglezes, constituem ao anoitecer,
no Cães do Sodré, sob as janellas da Mutual Life^ um parlamento ordeiro no qual dis-
cutem discretamente os fretes e as viagens.
, A varina tem perto o seu bairro, vive do mar e do rio, e por isso labuta no cães,
como o carregador, mourejando a vida, ao sol e á chuva.
N'este bairro o Tejo é mais dominador, sem ser mais bello, do que ao oriente da
cidade.
Lojas de apparelhos náuticos, tabernas de matalotes, mastros de paquetes e faluas,
docas, armazéns, e até, á noite, o ladrar dos cães de bordo nos dão uma impressão con-
stante de agua navegável. Como o bairro ou é ribeirinho ou declivoso, as janellas dos
prédios avistam o rio, sereno e azul na bonança, arripiado e plúmbeo na invernia.
Vivese aqui em pleno contacto com o grandioso pórtico marítimo da cidade, que
todos os estrangeiros nos gabam, incluindo o desdenhoso Byron, a quem Lisboa «flu-
ctuante e espelhada sobre o porto magnifico», pareceu divinal no primeiro momento.
A rectificação da margem direita do Tejo vem da iniciativa do governo de i8H3,
vem de Hintze Ribeiro, então ministro das obras publicas. Uma commissão estudou o
plano geral das obras, e foi sobre o seu relatório que ainda Hintze Ribeiro e António
Augusto de Aguiar apresentaram ao parlamento em 1884 uma proposta de lei auctori-
sando o governo a dispender ate i5 mil contos com as ob'as do porto de Lisboa.
Esta proposta não chegou a ser votada. Mas, no anno seguinte, a lei de 16 de julho au-
ctorisou a construcçao por empreitada geral das obras entre Santa Apolónia e Alcân-
tara na importância de 10:800 contos de reis.
Em 1586 abriu-se o concurso, em 1887 foi assignado o contrato com o empreiteiro
Hersent, sendo ministro das obras publicas Emygdio Navarro, contra o qual se moveu
a mais flagelladora campanha de diffamação nos tempos moderno?.
As obras proseguiram até i8gi e em 1892 pararam por questões com o empreitei-
ro, vendo-se o governo obrigado a geril-as até 1894.
N'este anno, voltou Hersent a tomar conta da construcçao, cujo preço fora redu-
zido, dando-se partilha ao constructor na receita da exploração do porto por cinco annos.
Hoje, em virtude de uma lei de 1907, a empresa Hersent desappareceu e é o es-
tado que administra a construcçao e exploração.
Creio que teremos ainda por muito tempo umas novas obras de Santa Engracia.
O bairro de Santos, ' contíguo ao do Aterro, comprehende o antigo bairro da Es-
perança, e sobe até ao da Lapa.
E' o habitat dos varino", que enxameam, como abelhas em cortiço, na travessa das
Izabeis, na rua do Machadinho, na rua de Vicente Borga, e outras cangostas asphy-
xiantes.
' Comprehender-se-ha esta denominarão sabenJo-se que ella se refere a tres irmãos, Veríssimo,
Máxima e Júlia, naturaes de Lisboa, e ipanyres do christi.inismo, neste logar sacrificados e sepultados,
blrigiu-se em sua honra uma igrejd e um convento de freira<i, as quaes, no reinado de D. João II, (oram
transferidas a um novo mosteiro ao oriente da cidade, para onde levaram as relíquias dos tres santos.
Astim, pois, ficou havendo Santos o- Velho e Smtos-n-Novo.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
191
Pode dizer-se um trecho do districto de Aveiro intercallado na capital, porque a co-
lónia varina conserva na emigração todo o seu caracter de raça e classe.
As descargas no Aterro e a venda do peixe pelas ruas constituem a occupação das
mulheres ; os homens trabalham na pesca e na venda de jornaes.
Esta numerosa colónia mantém aqui e em toda a parte os seus usos e costumes
tradicionaes : conversa e espiolha-se no soalheiro dos degraus e soleiras das portas ; vae
aos chafarizes da Esperança e das Janellas Verdes com a bilha equilibrada horizontal-
mente sobre a cabeça ; traz os filhos recemnascidos ensacados n'uma dobra do chaile ou
da capa, que faz lembrar a bolsa dos marsupiaes ; namora á porta das mercearias e das
tabernas; casa com estardalhaço, ao som de repiques de sino, e sai da igreja sob um
tiroteio de confeitos ; chama carpideiras se
tem morte em casa, etc.
As mulheres são de uma precocidade,
prolificação e envelhecimento notáveis. Gas-
tam-se e extenuamse em pouco tempo.
D'ellas, algumas, muito poucas, são formo-
sas ; mas quasi todas elegantes, linearmente
perfeitas. Ordinariamente softrem ophthal-
mias chronicas, por effeito das poeiras e do
sol ; teem frieiras nas mãos, e cieiro nas per-
nas, que a saia curta destapa.
No bairro de Santos ha ainda algum
vestigio da antiga Madragôa, em dictérions
miseráveis, que os marujos e os soldados fre-
quentam.
Completada assim a physionomia plc-
bea do bairro, resta mencionar o que elle
tem de limpamente citadino nos bons pré-
dios da calçada do Marquez de Abrantes,
ruas direitas das Janellas Verdes e S. Fran-
cisco de Paula, onde avultam palacetes, jar-
dins públicos e particulares, um hotel inglez
— o Yo'k House, uma igreja protestante, '
e um palácio que foi do Marquez de Pom-
bal (hoje Museu Nacional de Bellas- Artes) ^ com o costumado chafariz em frente — pelo
que o povo dizia que todos os palácios do grande ministro tinham aguas furtadas.
O bairro de Santos communica com o de Alcântara pela Calçada da Pampulha.
Alcântara vem do árabe e significa— jpo«/e. Foi pois a ponte que deu nome ao bairro.
A meio d'ella erguia-se uma estatua de S. João Nepomuceno, que desde 1889 se
acha depositada no museu archeologico do Carmo.
A cidade occidental tinha a sua barreira, com portas de ferro, em Alcântara. Então,
o palácio real das Necessidades, o palácio real da Ajuda, e Belém ficavam no arrabalde ;
agora pertencem ao 4.° bairro administrativo da cidade.
Hoje, Alcântara é a parochia mais populosa de Lisboa : conta 22.775 habitantes.
Seguem-se-lhe em população as de Santos-o-Velho e Anjos.
Toda a caracterisação actual do bairro de Alcântara provém da sua grande activi
dade industrial e commercial : fabricas, officinas, depósitos e lojas de negocio.
345— Monumento a Eça de Queiroz
Serviu ao culto catholico, quando era dos capuchinhos francezes.
Weste palácio morreu a imperatriz Amélia em i8/3.
igz
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
E' também o bairro dos marinheiros da armada, aqui aquartelados.
Tem ruas largas, como a do Livramento, e travessas e becos.
O largo de Alcântara offerece um curioso aspecto, cavado no valle da ribeira do
seu nome, com ruas que sobem para a vertente oriental da ribeira; no alto, ao norte,
o cemitério dos Prazeres; na vertente occidental, longes de campo; e no largo o tran-
sito, o movimento, a agitação quotidianos de um bairro denso e activo.
Ha aqui, nas vizinhanças do palácio real, o fermento popular de ideias republicanas,
como no bairro de Santos, onde também o operariado domina pelo numero.
A Junqueira, com os seus palácios e o vasto edificio da Cordoaria Nacional, Be-
lém, com a sua Torre e o seu Templo dos Jeronymos, que são dois sorrisos de arte
manuelina, o seu monumento de AíFonso de Albuquerque e os seus quartéis da calçada
da Ajuda, no topo da qual se
alevanta o palácio habitado pela
Rainha Pia, a Junqueira e Belém,
dizia, constituem hoje o prolon-
gamento occidental da cidade,
muito mais ameno e alegre do
que os bairros extremos da mar-
gem do Tejo ao oriente.
Todos os viajantes que visi-
tam Lisboa, nacionaes ou estran-
geiros, querem conhecer Belém
por amor dos Jeronymos.
A este bairro está ligado es-
treitamente o nome do maior his-
toriador moderno de Portugal.
Alexandre Herculano foi pre-
sidente da camará municipal de
Belém, quando Belém era conce-
lho autónomo; ' Alexandre Her-
culano habitou um casarão do lar-
go da Ajuda, onde escreveu pelo menos os primeiros dous volumes da Historia de
Portugal e o Monge de Cister ; onde teve por hospede Garrett e por commensaes, nos
seus famosos sabbadox litterarios, os mais distinctos poetas e prosadores daquelle tem-
po;* Alexandre Herculano jaz, dentro dos Jeronymos, n'uma capella privativa em
moimento de honra.
O actual imperador da Allemanha, quando, visitando a igreja de Belém, entrou
nessa capella mortuária, examinou o tumulo, relanceou a vista pelas inscripções das
paredes, que certamente não entendeu, e depois, poisando os olhos no crucifixo de
mármore, que pende ao fund^», não os pôde arrancar d'ali sem dizer:
— Aquillo é que é realmente bello I
O Kaiser, numa rápida inspecção, tinha visto tudo e tinha visto bem.
Na Lisboa occidental os antigos bairros ao norte são: S. Roque, Bairro Alto, Ale-
gria, Rato, Santa Izabel, S. Bento, Jesus, Estrella e Buenos Ayres.
O de S. Roque, com a sua rua larga e a igreja ao fundo, com o seu passeio de S.
Pedro de Alcântara e o elevador da Gloria, tem sido desde longa data um bairro das
?46 — Tumulo^ie Alexandre Hcrcalano
' Vide VII vol. dos Opúsculos, psRs. i6i e iq\
- Vide Sol) os ciprestes por Bulhão Pato.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
'9^
mais cotadas mancebas mundanarias, como na velha Athenas o Cerâmico, entre a por-
ta do seu nome e a porta Dipila, era um bairro de hetairas.
Talvez isto provenha de ter residido por aqui muita corte — como diz o padre
Balthazar Telles — depois que os jesuitas, para edificar a sua casa professa, arrazaram
o extenso olival que vinha pela encosta abaixo até ao actual Loreto.
347— rachada da igrej
Os fidalgos azevieiros queriam ter perto as suas Lais e Phrynés, para frequental-as...
depois de cumpridas no templo da Companhia as devoções quotidianas.
Vive n'este bairro a hespanhola que exagera petulantemente as nlodas e tem ca-
deira de assignatura em S. Carlos.
Uma antiga empresaria de libertinagem ibérica deixou na rua de S. Roque a tra-
dição da sua colmea outr'ora frequentada por marialvas de Lisboa e morgados da pro-
víncia.
Morreu rica, e os jornaes deram noticia da sua morte, como fazem quando se trata
do fallecimento de outros capitalistas não mais escrupulosos talvez.
194
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O restaurant Tavares, com os seus gabinetes reservados, é uma consequência in-
dustrial da colónia das hetaíras no bairro.
Comtudo a rua de S. Roque tem negócios mais limpos, lojas vistosas, prédios de
famílias honestas, e a alameda de S. Pedro de Alcântara palácios de famílias abastadas.
A' ilharga da igreja de S. Roque encontra-se localisada uma instituição que o lis-
boeta conhece muito bem: a Santa Casa da Misericórdia. Conhece-a desde o tempo
em que a roda dos expostos era um sorvedouro de creanças illegitimas. Conhece a ainda
pelos subsídios ás amas de leite, pelos dotes ás noivas pobres, pela protecção ás orphãs
e aos velho', pela sopa económica aos indigentes, e, mais que tudo, por outra roda que
também é um sorvedouro, não de creanças, mas de illusÕes e economias.
Refiro-me á loteria portugueza, a que o lisboeta, na esperança de ter alguns dias
menos atormentados de miséria, vai entregar os seus magros cobres para comprar uma
cautela, que por sahir constantemente branca lhe torna ainda a vida mais negra.
O Bairro Alto, paredes meias com o de S. Roque, é em geral um bairro de po-
breza e de vicio, povoado por dicteriadas de vermelhão na face e cigarro na bocca e
por fadistas de carapuça ou chapéu á Mazantini, jaqueta, faxa e navalha de ponta e mola.
Ha cates de lepes, casas de prego, boticas e tabernas em todas as ruas d'este bairro.
A' noite a illuminação é escassa e o gaz empallidece, com grandes intervallos de
escuridão, n'um tom de lamparinas amarellas e baças.
De vez em quando trocam-se por ali facadas, como lembra uma cantiga:
Eu venho do Bairro Alto
Com vinte e cinco feridas,
Por andar tangendo amores
A' porta das raparigas. '
Salvas poucas excepções, as casas são pequenas e escuras, as escadas immundas,
e as sacadas embandeiram-se miseravelmente cora trapagens ao sol.
Nos cubículos do Bairro Alto moram famílias que vivem de comer carapaus fritos,
figos de capa rota, fava rica e castanhas cozidas.
A pobreza em Lisboa é essencialmente gatóphila, e o Bairro Alto o mais abun-
dante de gatos, que tanto estão na janella ou no telhado como na rua onde lambem as
pernas das varinas por cheirarem a peixe.
Em geral as casas d'este bairro não teem agua encanada: por isso ainda subsiste
n'elle o typo errante do moderno açacal, o aguadeiro gallego, com o seu pregão aú-aú
e o seu barril pintado, que mereceram a lady Jackson algumas palavras de sympathia
e benevolência.
As velhas e os entrevados do Bairro Alto tiram dez reis á bocca para comprar o
Diário de Noticias, que é um antigo jornal bairrista, único traço de união que os rela-
ciona ainda com o mundo, e que lhes diz ao certo quantas facadas levou a moça da
travessa da Boa Hora ou da travessa dos Fieis de Deus a quem na véspera ouviram
gritar afflictivamente ó da guarda.
Outr'ora, quando os fidalgos olhavam menos á vizinhança do que á tradição da pro-
priedade houve por estes sitios palácios, e assim o attesta ainda hoje o celebre cunhal
das bolas, que era um angulo do jardim dos marquezes de Olhão.
O bairro da Alegria desce da Praça do Príncipe Real, ajardinada no gosto antigo
e contornada por alguns palácios — entre elles a casa bysantina que foi de José Ribeiro
da Cunha — para a Avenida da Liberdade por um zig-zag de rampas ou pelas escadas
da Mãe d'Agua.
' Apud Júlio de Castilho, Lisboa antiga, I.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
'9-"'
E' bairro silencioso, quasi solitário, com bons e maus prédios, a cujas janellas re-
picam em acção de graças os olhos das inquilinas quando podem convencer-se de que
lá vem um. . . janota.
Outrora foi conhecido por bairro da Cotovia, e era infamado de rascôas e ladrões.
E' ainda hoje um retiro de cótés e mancebias clandestinas.
O bairro do Rato, com o seu edifício e jardim da Escola Polytechnica, a Imprensa
Nacional, a igreja de S. Mamede, o palácio Palmella, o da familia Anjos e o dos
Praias, que foi do marquez de Vianna, alterna o tj^po nobre com o t3'po plebeu, as
grandes salas fechadas com as pequenas lojas abertas.
Os estudantes dominam n'uma parte
do bairro e alarmam-n'a com as suas par-
tidas carnavalescas todos os annos ; a par-
te restante é dividida amigavelmente entre
os fidalgos, os lojistas e as officialas de
ateliers da Baixa.
Aqui, na repousada rua de S. Filippe
Nery, organisou Innocencio Francisco da
Silva benedictinamente o Diccionario bi-
bliographico entre montões de livros e
apontamentos, queimando charutos de dez
reis e. . . os miolos.
Os nomes de Fabrica da Louça e
Fabrica das Sedas, que subsistem na to-
pographia do bairro, relacionam-n'o histo-
ricamente com a protecção dada pelo mar-
quez de Pombal ás faianças da fabrica do
Rato e á industria das sedas, que já D. João
V animara.
Este bairro adoptou onomasticamente
a alcunha de um fidalgo, Luiz Gomes de
Sá e Menezes, que foi padroeiro do con-
vento também chamado do Rato. A soli- 348-Estatua de sousa .Martins
dão era tamanha, que as freiras tinham-lhe
medo. Ainda hoje, o prolongamento do bairro para as Amoreiras é um esconso de des-
confiança e retraimento, onde o aqueducto das Aguas Livres, que ali vem despejar-se
dentro do grande reservatório, parece sacudir sinistramente sobre as flores de um jar-
dim municipal recordações de bandidismo lendário.
O bairro do Rato alastra ao occidente para o de Santa Izabel e ao oriente commu-
nica com a Avenida da Liberdade por mais de uma artéria, havendo antigamente uma
única: era a tranquilla calçada do Salitre, onde Júlio César Machado viveu sem ambi-
ção e morreu tragicamente n'um prédio de esquina entre aquella calçada e a rua que
hoje tem o seu nome. '
Por oeste liga-se, pois, com o bairro de Santa Izabel, bairro a que se prendem re-
cordações de mortos illustres e de mortos obscuros.
Na rua do Sol falleceu o i." visconde de Castilho e na rua de Santa Izabel expirou
Garrett, defronte do Cemitério dos Cyprestes, privativo dos inglezes, onde jaz um
ék-
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' Antiga travessa do Moreira.
196
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
escriptor de muitos créditos no seu paiz: o notável Fielding, au:tor do Tom Jones. '
Dizia Garrett que os inglezes mortos eram sempre viziniios inoffensivos.
Pinheiro Chagas residiu largos annos na rua de S. Joaquim, mas foi morrer na
calçada do Salitre.
Pela rua Saraiva de Carvalho — um dos bairristas illustres — communica o bairro
de Santa Izabel com o cemitério dos Prazeres, necrópole vasta de portuguezes varia-
mente sorteados pela gloria ou pela obscuridade.
Aquella rua é pouco menos transitada por mortos que por vivos.
Deve notar se a predilecção que os escriptores e estadistas teem tido sempre pelos
bairros occidentaes da cidade.
Além d'aquelles homens de let-
tras, mencionarei Latino Coelho, Ra-
malho Ortigão, Urbano de Castro,
Fernandes Costa, Theophilo Braga,
conde de Sabugosa, Rangel de Lima,
Sousa Viterbo, talvez ainda outros, e
os proeminentes jornalistas Sampaio,
Mariano e Navarro, como domicilia-
dos que foram nas freguezias do oc-
cidente.
O mesmo se pode dizer dos es-
tadistas Fontes, Hintze, Júlio de Vi-
lhena, José Luciano, João Franco,
António Cândido, Jacinto Cândido,
Dias Ferreira, Bocage, Vargas, Lopo
Vaz, Beirão, Augusto José da Cunha
— e até o sr. Eduardo José Coelho: Maria vai com as mais.
O bairro de S. Bento é propriamente uma só rua, aliás tão comprida, que a sua
população chegaria para encher uma cidade de provincia.
A maior parte dos prédios, alguns d'elles grandes, são de três e quatro andares;
além d'isto, ha vários pàtcos na rua de S. Bento com agglomeração de moradores.
Foi n'um d'esses páteos, o do Gil— nome de um mestre carpinteiro, talvez seu pro-
prietário -que em 1816 nasceu Alexandre Herculano, tendo por berço uma casa que
já não existe. -
Na rua de S, Bento abundam os pequenos estabelecimentos commerciaes, de ca-
racter popular: lojas de capella, mercearias, talhos, tabernas, logares de fructa, bar-
beiros, etc.
O movimento é constante, mas a extensão da rua espraia-o, de sorte que não in-
commóda nem tumultua.
N'um recanto fica o mercado, e no largo sobranceiro ao mercado o Palácio das
Cortes, ainda com a sua apparencia de convento, banal e singelo, porque apenas o pór-
tico e a varanda de pedra que o encima teem alguma nobreza architectonica.
Ainda hoje se conservam vestigios monásticos nas cellas de todo o edifício c nos
bellos azulejos que servem de rodapé á escada da Camará dos Pares.
?49— Casa do Largo da Ajuda onde Alexandre Herculano residiu
' Fielding morreu em Lisboa, a 1 de ouiubro de 1754, aonde chegou já doente. Faia de nós no Jor-
nal de uma viagem de Londres a Lisboa. Camillo Castello Branco escreveu maviosas paginas a seu res-
peito nas Noites de insomma, vol. u. E Eduardo Vil, quando esteve em Lisboa e visitou o cemitério dos
inglezes, honrou a memoria d'aquelle glorioso morto colhendo uma flor e lançando-lh'a sobre o tumulo.
* Veja-se sobre esta casa e este pateo a interessante informação de Rodrigues Cordeiro no.-t/mana-
ch de Lembranças, de 1879.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
'97
Aa ruinas da igreja foram apeadas quando se construiu a entrada da actual Gama-
ra dos Deputados.
Ao oriente d'este bairro demora o de Jesus, com o seu jardimsinho da Praça das
35o — Aspecto interior da igreja dos Jeronymos
Flores, o seu palácio— dos Alcáçovas — , a igreja parochial das Mercês e o edifício que
foi convento de terceifos franciscanos e onde hoje estão plantados olympicamente os
sócios da Academia Real das Sciencias.
198 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Aos franciscanos chamava o nosso povo — os bótras ; e o caso é que este epitheto
irónico parece ter ficado jungido ao edifício para castigo dos inquilinos no passado e no
presente.
Todo este bairro tem ainda muito da sua antiga solitude campestre no tempo em
que era plantio ou matagal, como indicava o nome de uma rua, Cardaes de Jesus, hoje
Eduardo Coelho, e como indica o nome da travessa da Horta.
O bemquisto publicista Eduardo Coelho não nasceu, apenas residiu, na rua dos
Cardaes ; era do norte, isto é, natural de Coimbra.
E, circumstancia curiosa, foi na casa pegada á sua que falleceu em 181 1 o nosso
melhor poeta satyrico: Nicolau Tolentino de Almeida.
Outros nomes de ruas dão ainda uma impressão de bucolismo longínquo, como tra-
vessa da Palmeira, rua do Jasmim, rua de Monte Olivete, rua da Quintinha ; ou de
antiga povoação humilde, como Abarracamento de Peniche.
Estou capacitado de que foi o exemplo do marquez de Pombal, quando depois do
terremoto construiu na rua Formosa um dos seus palácios — não falta defronte o cha-
fariz — que attrahiu moradores de categoria para estes sitios.
Mas o nome de — Formosa — dado á rua não proveio do palácio, que a aformo-
seava, nem de suobismo para com o marquez. E' mais antigo, vem de um tempo em
que Lisboa se contentava com tão pouco, que até lhe parecia bello o que nós hoje acha-
mos vulgar.
Brilhou aqui, na rua P^ormosa, um salão litterario, que foi o ultimo de Lisboa.
Era o de D. Maria Kruz, mulher de D. Pedro Brito do Rio e mãe da condessa de
Ficalho (D. Josepha).
Bulhão Pato, n'uma satyra, lembrou a Eça de Queiroz que elle adquirira, nesse
salão, aforo da corte».
Esta rua Formosa liga-se pela do Arco-a-Jesus á de S. Marçal.
O arco é dependência de um prédio, como o do Bandeira no Rocio, e tem o cara-
cter antiquado de todos os arcos dentro da cidade, excepto o de S. Sebastião da Pe-
dreira, cuja construcção é recente, não falando no da rua Augusta, que já no nosso
tempo foi concluído.
Alguns prédios modernos constituem, na rua do Arco, um quarteirão tâo socegado
e hygienico, que para nada lhe faltar de bom até está afastado da Academia pelo leito
da rua e superior á mesma Academia por uma espécie de barreira prophylatica, sobre
a qual florescem jardins.
N'este bairro o nome de algumas ruas revela ainda o costume do agrupamento por
classes: tal é o da rua das Adellas.
Salões populares, bailes campestres fazem no verão ouvir o marulho sonoro das
suas valsas sentimentaes n'um ou n'outro ponto do bairro.
O baile dos pretos esteve por muitos annos installado n'uma casa da rua de Nossa
Senhora da Conceição.
Ali dançou a supposta raiultj do Congo, no tempo em que os pretos elegiam car-
navalescamente uma rainha, porque então ainda a monarchia era moda.
Os pretos em Lisboa são numerosos, o que até certo ponto nos pode envaidecer
como paiz colonial, e matiza a população.
Mas já se vae perdendo a tradição graciosa dos pretos serem caiadores por officio.
D'antes todos os pretos de Lisboa eram pobres; hoje o africanismo florescente já
nos manda pretos ricos.
Na primavera e no estio o bairro de Jesus tem um aspecto festivo de jancllas flo-
ridas com roseiras, cravos, chagas, amores-perfeitos, talvez com mais ingénuo bucolismo
do que qualquer outro bairro.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
•99
Os canários e os pintasilgos gorgeiam em gaiolas modestas.
E os grilos, comprados no mercado de S. Bento, cantam, na frescura da folhinha
de alface, o hymno resignado do seu captiveiro na gaiola.
Em Lisboa, a falta de quintaes, tão vulgares no Porto e nas outras cidades de pro-
víncia, é supprida pelos canteiros da janella.
Só famílias privilegiadas, como os condes das Alcáçovas e o conselheiro Bocage
n'este bairro, possuem jardins ou quintas.
O povo, filho das hervas e neto do húmus, tem sede e fome de terra.
Ora a única terra que em Lisboa lhe não disputam é a da rua, a dos vasos ou
caixotes da sacada, e a da valia commum.
Ao occidente da rua de S. Bento, e n'um plano superior, fica o bairro da Estrella,
celebre pela sua basílica com zimbório
e pelo seu Passeio, ao qual já em i856,
apesar de ainda existir então o Passeio
Publico do Rocio, Francisco Maria Bor-
dallo, na sua Viagem á roda de Lisboa,
chamava «o mais formoso» jardim da ci-
dade.
Aqui, na rampa lateral á igreja era
o tugúrio modesto de João de Deus, onde
o rei entrou para lhe reverenciar o ca-
dáver ; ali, na calçada da Estrella, lon-
ga, empinada, es>trepítante, morou por
muito tempo, e veio a fallecer, n'um pré-
dio quasi fronteiro ao Hospital Militar,
um antigo homem de lettras, o dr. Cu-
nha Bellem, medico do exercito; mais
para o alto superior á calçada da Estrella
fica o decantado Paço dos Navegantes, *
a Mecca partidária dos crentes progres-
sistas.
Carroças de carga sobem ou des-
cem e o elevador esfalfado passa tossindo
gosmento.
Este bairro participa já do caracter de retiro elegante e commodo que mais se af-
firma no de Buenos Ayres.
Moram por aqui famílias inglezas, altos burocratas e negociantes abastados. Sem
embargo, também se condensa pelas ruas e travessas da Estrella uma população ano-
nyma, que se exhíbe no Passeio em dias santos e noites de kermesse : reforma-
dos do exercito e da armada ou do funccionalismo, taes como serventes e correios, me-
ninas em cabello que andarilham ao som da musica e empregados do commercio que
as namoram.
A camará municipal tem ido substituindo os nomes que manchavam a antiga topo-
graphia do bairro: assim a travessa dos Ladrões é hoje rua nova da Estrella.
Chegamos, finalmente, ao muito empertigado, saudável e quieto bairro de Buenos
Ayres ou da Lapa, onde ha palácios com brazões e jardins, chalets de varias cores,
mirantes sobre os muros, e ruas tão solitárias, que havia de crescer n'ellas a erva, se a
municipalidade não a mandasse raspar.
35i— Fachada da nova igreja dos Anj
1 Habitação do sr. José Luciano de Castro.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Vive-se, por aqui, em geral uma vida de confortos e regalos e de mundanidade
muito senhora do seu nobre nariz.
Comtudo faltam os millionarios, como em toda a cidade.
As famílias de Buenos-Ayres (o meu antigo amigo Cândido de Figueiredo não
pode ver Buenos-Ayres escripto com i grego, porque na lingua hespanhola o não tem
e a denominação veio de iá ; mas eu vou no ramerráo da tradição orthographica) essas
famílias ficam se pelo palace.e ou pelo chalet, pela carruagem e pelo camarote em S.
Carlos, o que já não é mau; mas não dão festas como outr'ora deram, em outros bairros,
o Penafiel e o Vianna.
No verão fazem a temporada de Cascaes e jogam o laivu-tennis, com o rei no Spor-
ting Club. No inverno de Lisboa apenas abrem as salas para o five o clock tea.
Todo este bairro despacha á hora do
sol dezenas de bonnes e instilutrices para
o Passeio da Estrclla ou para as ruas da
Baixa.
Finalmente, Buenos Ayres é o baluarte
da grande-roda constitucional como S. Vi-
cente, na outra extrema da cidade, o é da
aristocracia realista.
E acabamos aqui a resenha da Lisboa
antiga; vamos agora aos bairros novos.
Estes bairros teem o cunho da expres-
são moderna tanto nos arruamentos como
nos prédios
Arruamentos largos e sadios. Prédios
J • de bonita apparencia e todas as convenien-
f £^ cias de interior: claridade, ventilação, en-
^P*^ canamento de gaz e agua, Cisa de banho,
^^^^? porta-voz para a escada, quartos separados
iHHHb^ para a criadagem, e cubículo para o guar.
da-portão.
Alguns dos prédios, poucos, foram
3.-.2-i-.5uiua ue José Kstevim construidos com 3 prctensão de resuscitar
o typo de uma supposta casa poi:tugue-{a.
Ora não ha propriamente entre nós um typo nacional de habitação, como já concluiu,
e muito bem, o sr. Rocha Peixoto. ' Typos regionaes, sim; typos segundo as províncias
e os climas. Isso é cousa differente.
Os bairros novos de Lisboa ou foram rasgados pela camará municipal ou por par-
ticulares.
Os da camará são —Calvário, Campo de Ourique, Casal do Rolão, Castilho, En-
tre-Muros, Estephanía e Picoas.
Destes, os dois que ao occidente e oriente ladeam a Avenida da Liberdade —
Castilho e Picoas — podem considerar-se os melhores ; depois, por sua ordem, Este-
phanía e Campo de Ourique.
Os bairros de iniciativa particular agrupamol-os na seguinte relação :
Pateo do Thorel, superficíe 88o metros quadrados.
Barbadinhos, bairro operário, superficie dos arruamentos G.Sag metros quadrados.
' Nos n °* 188, 190 e 191 do Primeiro de Janeiro em 1004.
A EXTREMADUKA PORTUGUEZA
Bairro do Alto do Pina, superfície 4,324 metros quadrados.
Bairro do Poço do Bispo, pertencente aos herdeiros de Ventura Luiz de Macedo ;
superfície 18.020 metros quadrados.
Ilha do Grillo, superfície i.i33 metros quadrados.
Bairro Castellinhos, superfície 6.585 metros quadrados.
Villa Amâncio, superfície 5. 200 metros quadrados.
Bairro Andrade, superfície 14. 336 metros quadrados.
Cascalheira (Alto do Carvalhão), superfície 3.242 metros quadrados.
Camões, superfície 5 1.255 metros quadrados.
Alto do Varejão, superfície 99Õ metros quadrados.
Bairro Linhares, superfície 9.150 metros quadrados.
353 —Igreja de Santo .\nionio da Sé
Villa Affonso, superfície 6õo metros quadrados.
Bairro Hygino de Mendonça, superfície 3. 800 metros quadrados.
Bairro Tavares (rua do Assucar), superfície 6.120 metros quadrados.
Villa Zenha (Xabregas), superfície 3.495 metros quadrados.
Mouraria, superfície 997 metros quadrados.
Marquez de Castello Melhor, superfície 222 metros quadrados.
Bairro Almeida Brandão, superfície 5.754 metros quadrados.
Bairro da Memoria entre a Ajuda e Belem, superfície 3.370 metros quadrados.
Bairro Surrada (Bemfica), superfície 3.847 metros quadrados.
Bairro Heredia (estrada de Bemtica), superfície 2.640 metros quadrados.
Avenida Gomes Pereira (estrada de Bemfíca), superfície 10.912 metros quadrados.
Villa Maia (Campo d'Ourique, rua Domingos de Sequeira), superfície 1.225 metros
quadrados.
Bairro de Campolide, superfície 8.55o metros quadrados.
Ha também algumas ruas de iniciativa particular.
A planta do Bairro Europa, ao occidente do Campo Grande, ainda não foi appro-
vada superiormente.
Todos os bairros novos, em que o capital brasileiro ou africantsla predomina, a
VOL. II iG
EMPRE2A DA HISTORIA DE POR 1 UGAL
tracção eléctrica, em que prepondera o capital inglez, os ascensores mecânicos e as
docas do porto, constituem os mais relevantes melhoramentos materiaes de Lisboa.
A tracção eléctrica em Lisboa é um facto recente, cujas origens legaes se devem
ir procurar ao decreto de 20 de outubro de 189S, que sanccioiou o contrato de 16 de
agosto do mesmo anno.
Foi referendado pelo conselheiro José Luciano de Castro.
O systema adoptado é o da electricidade aérea da sociedade Thomson-Houston.
A cidade, desde que foi estabelecida a tracção eléctrica, ficou desfeada no aspecto
das suas ruas pela suspensão dos fios vivos conjuntamente com a rede dos serviços te-
■ legraphicos e telephonicos, e pelo arvora-
mento dos respectivos postes, que se dis-
tanciam uns dos outros cerca de 3o a 40
metros.
Mas, em compensação, o movimento
constante dos carros e a rapidez e facili-
dade que eiles proporcionam, graças a uma
tabeliã de preços compatíveis com os es-
cassos recursos da população, deram a
Lisboa alguma animação e brilho, de que a
cidade, tão bella e tão vasta, mas tão morta
e pallida, muito carecia.
Pode dizer se, sem exagero, que foi
este o progresso de mais geral vantagem
que, nos últimos annos, tem beneficiado a
capital do paiz e os subúrbios.
O lisboeta mudou com delicia do re-
gimen dos acarros americanos» para o dos
«carros eléctricos», velozes, asseados e
baratos.
E as ruas, ainda tão mal illuminadas
á noite, receberam luz e vida da passagem
d'essas plsteas ambulantes, claras, limpas
e alegres, que deslisam rapidamente eomo
um salão que se desloca no espaço e devora o tempo.
Ficaram assim supprimidas as grandes distancias de bairro a bairro, bem como o
acclive de algumas das calçadas que accidentam a cidade e estavam ainda privadas
do beneficio dos ascensores, taes eram a rua do Alecrim, a de S. Roque e a de S. Pe-
dro de Alcântara.
O lisboeta acceitou com prazer e confiança a tracção eléctrica, sem temer os peri-
f^os da electrocução e da electrolyse. a que se referiu, na camará alta, em sessão de
24 de maio de iqoi, o par do reino Mendonça Cortez.
Por ora, felizmente, os desastres causados pela tracção eléctrica não teem sido
numerosos, o que contribue para que a concorrência e o agrado do publico não esfriem.
A tracção eléctrica começou a ter execução nas ruas de Lisboa durante o estio de
1902, sendo ministro das obras publicas o engenheiro Vargas, n'um gabinete Hintze
Ribeiro.
Ainda, comtudo, apparecem em circulação alguns chorriões de tracção animal,
capoeiras rodadas onde o povo se comprime como sardinha em tigela.
São os chamados carros do Chora, que fazem carreiras a 10 réis por cada zona e
que representam os antigos omuibus de babelica memoria.
354— Monumento a Affonso dwlbuqucque
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
Tendo passado revista ao aspecto geral da cidade e á caracterisação especial dos
seus bairros, chegamos á conclusão de que Lisboa seria a mais formosa capital do
mundo se tivesse mais luz, mais gente, mais hygiene, e, sobre tudo, mais dinheiro.
O seu grandioso porto, com que só podem rivalisar os de Nápoles e Constantino-
pla, é o soberbo prologo de um livro que lhe fica muito inferior no texto.
Sem embargo, na bocca do alfacinha vulgar de Lmneu, hoje, como na idade-media,
Quem não pé Lisboa, não vê coisa bôa.
'ii>i — luTiulu de Vasco da Gama, em I3eleni
Outrora, no tempo do Mestre de Aviz, as mulheres da rua cantavam acarretando
materiaes para as barbacãs com que a cidade queria defender-se dos castelhanos:
Esta és Lisboa presaJa,
Mirad-la y dejad-la.
Esta voz será eterna no coração e na bocca dos lisboetas incultos.
Mas o alfacinha illustrado, o que subiu pelo valor intellectual a um plano superior
ao dos seus conterrâneos, reconhece todas as chagas e misérias de Lisboa e confessa-as
com hombridade em voz alta.
António Augusto d'Aguiar, professor notável e estadista distincto, disse perante um
numeroso auditório na capital:
«Lisboa ! a rainha do Tejo, tantas vezes cantada pelos poetas e prosadores. A pri-
meira cidade do universo por suas bellezas naturaes.
«Sim. Uma cidade, que vive descuidosa e alegre sobre as fezes apodrecidas de seus
moradores ; uma cidade, em que o numero dos óbitos é apenas superior ao dos nasci-
mentos, podendo calcular, desde já, com escrupulosa exacção mathematica, o dia em
que ha de morrer o ultimo dos seus habitantes; uma cidade, que respira o pó das cal-
çadas e os effluvios dos canos, que compra, annualmente, ao estrangeiro o pão nosso
de cada dia, para me servir da bella phrase da oração dominical ; uma cidade, em que
até as arvores são infelizes, e que está dando á morte melhor asylo que aos vivos!»
O trabalho duro, a alimentação e hygiene insufficientes, bem como a devassidão dos
costumes, vehiculisam a população de Lisboa para a tuberculose. Em i885 morreram
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
por i.ooo habitantes 65,i. Depois de 1898 a percentagem, graças á acção da assistência,
tem descido. Em igoo foi de 38,8. As freguezias da cidade mais flagelladas pelo bacillo
de Kock são as de Santo Estevam e S. Miguel («o a 85 "/o no immundo bairro de Al-
fama). Na Baixa, onde não podem residir familias pobres pela elevação das rendas, a
mortalidade é muito menor. Mas no Bairro Alto orça por 4Ò a 5o % em consequência
da densidade e pobreza da população.
Pelo que respeita a maior transformação material da cidade, quando chegarão os
lisboetas menos esclarecidos e por isso mesmo mais fanáticos, quando chegarão elles,
fpara maior satisfação da sua ufania patrió-
tica, a vêr uma ponte sobre o Tejo, um vi£-
ducto entre a Graça e a vertente occiden-
tal, e quatro grandes focos de luz elé-
ctrica accesos sobre o Castello, S. Pedro
d'Alcantara, o alto de Santa Catharina e
o zimbório da Estrella ?
Talvez quando el-rei D. José se des-
montar do seu cavallo de bronze para
mandar concluir as obras de Santa En-
gracia.
O lisboeta é, em globo, mais astuto
do que intelligente, mais sabido do que
sabedor.
Mas tem qualidades de apresentação,
de conversação e de trato social, que o
recommendam. Veste com simplicidade e
elegância, um pouco á parisiense, porque
Lisboa quer ser tão franceza quanto o
Porto quer ser inglez. Nas salas não se
acobarda nem requinta, e na frivolidade
mundana que se chama — cumprimentos
— nenhum portuguez o excede.
D. Francisco Manuel de Mello, que
conhecia bem a sua terra, notou com verdade esta prenda amável dos lisboetas:
356— Moiiuraento a Eduardo Coelho
Um falar com tanto geito,
Um ditinho de repente
Que afeiçoa:
Um ter em tudo respeito,
Ai! mate-roe Deus jom a gente
De Lisboa.
Quanto A honra que se fazem uns aos outros na vida de relação, o caracter dos
alfacinhas não tem sofFrido quebra:
E de Lisboa se sòa
Que todos l;i são honrados
E de pessoa a pessoa
Se falam desbarretados.
A lisboeta veste ordinariamente com singeleza e distincção; não tanto como a pa-
risiense, a quem Victor Hugo reconheceu na tniletle uma graça volátil ; mas conhecc-se
á légua em toda a parte.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
2o5
Em geral é magra e gentil, tem o olhar quente, os cabellos pretos, o passo ryth-
mado e a voz cantante.
Camões escreveu a seu respeito:
«Ora julgae, Senhor, o que sentirá um estômago costumado a resistir ás falsidades
357 — Porta pi íncipal do convento dos Je
de um rostinho de tauxia de uma dama lisbonense, que chia como pucarinho novo com
agua, vendo-se egora entre esta carne de salé, que nenhum amor dá de si.»
Não é preciso mais para imaginar uma lisboeta quem nunca a viu nem ouviu.
A palavra tauxia (no árabe atauxia e no castelhano ataugia) quer dizer pintura.
A lisboeta, quasi sempre pallida, começou a pintar-se ha alguns séculos, porque já Gar-
cia de Rezende allude na Miscellaiiea ao uso dos cosméticos.
Quanto á voz chiante das alfacinhas, é certamente esse um attractivo nas classes
media e superior, mas repcllente por exagerado nas classes baixas.
2o6 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
O gentio da capital, alem de musicar excessivamente as palavras, estropia-as na pro-
nunciação; é elle que diz cravão, auga, moiyj, Rociu, abre demasiadamente as vogaes
e substitue o e final por i; hospital^ Bernardim^ tioiti^ trasti.
No tocante ao gosto do lisboeta pela rua e á sua mordacidade nos mentideros, são
vicios antigos, já observados por vários escriptores; seja um d'elles o mesmo Garcia
de Rezende :
Vimos muitos ociosos,
Sem querer nada fazer,
Deixar o tempo perder,
E dos bons e virtuosos
Não lhes minguar que dizer:
Pelas praças, pelas ruas,
Sem verem as vidas suas.
Andam vagamundeando,
O tempo mui mal gastando,
E as mãos e línguas crua<.
A litteratura lisbonense traduz o caracter frívolo e o génio indolente dos alfacinhas.
O erudito Herculano, reconstructor da historia de Portugal, e o operoso polygrapho
Pinheiro Chagas, são excepções.
O lisboeta lê o jornal do dia ou da noite, e fica-se por ahi. O único livro que pro-
cura é qualquer almanach. As meninas solteiras lêem alguns romances francezes para se
impregnarem de romanticismo e poderem citar phrases de effeito na conversação das
salas e das praias ou nas cartas de namoro.
O jornalismo, essencialmente politico^ visa habitualmente mais as pessoas que as
questões, e vai quasi sempre até á cluirge violenta, como a caricatura, que também é
pessoal.
O theatro vive á custa do repertório francez. As peças originaes são poucas e em
geral más. Salva-se uma ou outra d'este ou d'aquelle auctor. Emquanto eu fui commis-
sario régio junto do Theatro Normal, durante sete annos, apenas uma única peça fez
carreira segura e independente de favores: foi a comedia em 3 actos Peraltas e sécias.
Maior que este successo apenas conheço outro modernamente em Lisboa: a revista
O da guarda no theatro do Príncipe Real, que já ultrapassou cem representações, não
por ser boa, mas por falar ao paladar dos lisboetas.
Nas bellas-artes, a pintura é a que mais se avantaja: a paizagem, a marinha e as
flores; que a pintura histórica importa, na maioria dos casos, um desastre tremendo.
A musica tem alguns cultores dedicados no gallinheiro de S. Carlos e nas aca-
demias. De quando em quando apparece um compositor, mas as suas operas não se
demoram tanto no cartaz como as reprises de Verdi, cujas partituras, até na primitiva
maneira d'este maestro., ainda são aquellas que o lisboeta assobia com enthusiasmo
quando dá signal ao namoro.
Sem embargo, os alfacinhas, sempre mais espertos que intelligentes, não se atre-
vem a patear Wagner, comquanto o não entendam.
O que me resta dizer de Lisboa? Ah ! já sei. Aquillo por onde devia ter começado:
que a capitai portugueza, a inclyta ulyssea de Camões, foi etVectivamente fundada por
Ulysses, pois que o actor Silva Pereira, a quem por amável chalaça era costume attri-
buir uma longevidade archeologica, me aiVirm.)u uma vez — ter dado serventia como
moço de pedreiro ao mythologico fundador.
XII
Oeiras
Ara o lado do occidente, o concelho que confina com o 4." bairro de
Lisboa (no qual está comprehendido o antigo concelho de Belém)
é o de— Oeiras.
Outrora, ha trinta e cinco annos apenas, Belém era uma região
suburbana — notável por causa da sua monumental igreja dos Je-
ronymos, da bella torre militar de S. Vicente (vulgo Torre de Be-
lém) e ainda da installação da Casa Pia— que obrigava a uma via-
gem no Tejo a bordo dos vapores da carreira ou a uma jornada por terra nos pesados
omnibus estrondosos e ronceiros.
Por isso comprehende-se que fosse preciso um Guia do viajante em Belém, tal
como o publicou a casa Rolland & Semiond em 1872, porque toda a viagem de cir-
cumstancia exige um guia, oral ou escripto, e aquella viagem consumia na ida e na
volta pouco menos de um dia inteiro.
As praias d'essa região eram a da Torre, o Bom Successo e Pedrouços, porque as
que se lhe seguem para oeste, e hoje florescem elegantemente, ficavam muito longe por
falta de meios de transporte, e Cascaes era ainda menos accessivel por estar a maior
distancia.
Tinha então razão de ser o adagio -Uma vez a Cascaes e nunca mais.
Fui lá um verão em carruagem e regressei á noite moido, escalavrado, poento.
Era, principalmente, no Bom Successo e Pedrouços que se concentrava a maior co-
lónia de banhistas de Lisboa, especialmente aquelles que precisavam vir á cidade todos
os dias ou pelo menos com frequência.
Pinheiro Chagas foi um anno para o Bom Successo e informava de lá como de
um paiz longinquo e ignorado- «O Bom Successo é limitado ao norte pelo omnibus de
Pedrouços, ao oriente pelo Club Hotel, ao sul pelo rio Tejo, ao occidente por uma praia
de banhos. Fica situado na Europa, no reino de Portugal, provinda da Extremadura,
districio de Lisboa, e concelho de Belém, supponho eu. Os historiadores não estão de
accôrdo sobre quem foi que descobriu o Bom Successo. Dizem uns que foi Gonçalves
Zarco, outros que foi Gonçalo Velho da Camará. O que é certo é que fica a uma gran-
^ç,8 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
de distancia da capital do reino. Do Bom Successo a Lisboa váo dois dias de jornada,
como se prova pelo serviço do correio '.»
Em Pedrouços costumava veranear Fontes Pereira de Mello, sempre na mesma
casa. Ia e vinha em carruagem. E, por causa delle, iam para ali outros homens polí-
ticos— corajosamente. . . para fazer lhe a corte.
O palácio e quinta dos duques de Cadaval já então estavam desertos como hoie.
Eram apenas uma sumptuosa relíquia do passado.
Em 1906 mal podemos acreditar que Almeida Garrett dissesse -o fashionavel 'Pe-
droicos. • j r, j
O sr. Francisco Simões Ratolla, escrevendo a monographia de Pedrouços, presta
um serviço archeologico.
Algés, o antigo reguengo de Algés, logar comprehendido agora no concelho de
Oeiras e componente da freguezia de Carnaxide, era ainda em nossos dias uma quasi
solitária ribeira do Tejo, propicia ao amor em liberdade -.
Hoje Algés de Baixo tem casas para banhistas, uma alameda florida, uma praça
de touros, o edifício do Aquário Vasco da Gama, uma estação do caminho de ferro, a
linda Villa e Parque de Mira-mar, pertencentes á família Polycarpo An)os, e sobre^a
ribanceira-na linha alta dos extinctos conventos que se prolongava, com alguma solução
de continuidade, até á Boa-Viagem-a pittoresca vivenda de verão do sr. conde de Ca-
bral.
Toda esta ribeira do Tejo refloresce ainda, onomasticamente, as gloriosas recor-
dações da época dos descobrimentos marítimos e das aventurosas navegações portu-
guezas.
Dafundo, Boa-Víagem, Porto Salvo ' são denominações manifestamente relacio-
nadas com aquella época; assim como a linha dos fortes, hoje^arruinados ou desclassi-
ficados, recorda a defesa de Lisboa nas guerras da Restauração.
Dafundo não foi mais do que uma expressão geographica, porque dizia respeito
á altura do Tejo em que paravam as naus para a maruja vir a terra fazer aguada n'uma
fonte, que ho)e se pode referir topographicamente á quinta dos Palhas.
Ribamar seria talvez outrora todo o extenso planalto da vertente que declivava
sobre o reguengo de Algés, e que depois, talvez por causa da invocação dos conventos,
viria a tomar nomes difterentes. Certamente seria um trato de terreno-toda a riba ou
ripa dos antigos-muíto mais vasto, a julgar pela sua situação e proeminência, do que
o Ribamar actual, apenas comprehendido entre o Dafundo e a Cruz Quebrada.
Mas, tornando a Algés, devemos mencionar, entre as boas edificações do sitio, o
palácio da Conceição e o do sr. conde de Valenças, em parte do qual residiu durante
alguns estios o estadista Hintze Ribeiro.
Em 1849 recebeu o titulo de visconde de Algés o conselheiro José António Mana
de Sousa Azevedo, que foi ministro * de D. Maria II e par do reino.
Succedeu-lhe no titulo e no pariato seu filho Augusto Carlos Cardoso Baccllar de
Sousa Azevedo, que falleceu a q de junho de 1882.
O actual visconde, 3.* do tUulo, é neto e filho dos dois primeiros viscondes : José
António Maria de Sousa Azevedo, )uiz de direito.
' Fora da terra, r>afi. 201. > j m J
í Ainda em 1861 Vilhena Barbosa escrevia no Archivo Pilicresco (V, Jg») que o logar de Mkc
era «de poucos moradores.» ... 1 ,1
3 Povoação com uma ermida de Nossa Senhora da mesma invocação, três kilometros a leste da v.l
la de Oeiras. A im.igem é muito venerada pelos marinheiros, desde o tempo das primeiras carreiras dl
Índia.
* Fallccido em 3 de março de iSô).
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
209
O titulo veio de uma quinta que a família Sousa Azevedo possuia, no tempo do
i." visconde, em Algés de Cima.
Segue-se a Algés o Dafundo — continuamos na freguezia de Carnaxide — onde não
havia d'antes senão a bella quinta dos Palhas e um hotel.. . de livre-cambio.
Pois vão vel-o hoje, o Dafundo, com os seus chalets elegantes, o primeiro dos quaes,
se me não engano, foi habitado pelo illustre explorador africano Roberto Ivens, já fal-
lecido.
E sigamos para a Cruz Quebrada, que nós ainda chegamos a conhecer reduzida,
35S -Torre de Beleni
no bairro baixo, ao Foi^te, á ponte do Jamor, a uma loja de venda, á fabrica do Go-
dinho (cortumes) e a dois ou três prédios (um d'clles occupado no verão por Pinheiro
Chagas), ficando superior a esses poucos prédios o chaht e quinta do conde de
Thomar; no bairro alto, reduzida a um renque de casas térreas para os banhistas, e,
já no interior, á casa e quinta da Graça, de cujas immediações viria o nome especial
á localidade— em razão da cruz meio de pedra e meio de ferro, que ainda ali se con-
serva.
Pois é vêr hoje a Cruz Quebrada, na baixa da ribeira. Não se conhece, com os
seus chalels, o seu bairro novo, o seu viaducto do caminho de ferro sobre o valle do
Jamor.
Bonita, sempre esta região foi —lá n'isso falava verdade Garrett — mas era ainda ha
trinta annos quasi um ermo, cujo silencio seria sepulcral se o não quebrassem as carro-
VOL. II 27
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
ças saloias e carruagens de praça ou particulares que rodavam na estrada de Lisboa a
Cascaes.
E ainda tinha sido peor, unn ermo intransitável, no século xvii, quando Frei Rodri-
go de Deus instou com o senado de Lisboa para que mandasse construir pontes que no
inverno facilitassem a passagem de pessoas e cargas sobre as levadas que rolavam para
o valle da ribeira.
Vamos, pelo alto da Cruz Quebrada, seguindo para Linda-a-Pastora, que fica em
amphitheatro na encosta de um monte pedregoso.
O leitor conhece certamente a pastorella de Garrett, cujo assumpto c a seducção
da linda pastora por um viandante, talvez caçador, de condição distincta, pois calçava
meias de seda '.
O nome do logar presta-se á lenda, mas parece que não seria sempre Linda-a-Pas-
tora. O próprio Garrett ouviu dizer Nina-a-Pastora. O padre Figueira ^ conta que um
rei, vendo aqui uma pegureira mal agasalhada, ordenara que a enroupassem, dizendo:
aninha a pastora. Finalmente, um investigador recente ' dá cabo da galanteria femini-
na da lenda apurando que o nome actual é corrupção de Linhal-pastor.
Eu passei alguma vez n'esta aldeã, e consignei as minhas impressões n'um kodak
de folhetim:
«Pareceu-me mais do que uma aldeã,— uma villa. Ha trinta annos estivera ali
Garrett, dizia eu com os meus botõeS; e Linda-a- Pastora era então um logarejo, um al-
deote, como elle lhe chamou. Mas a povoação foi deitando os braços de fora, alargan-
do e crescendo. De fronte estava Linda-a-Velha com meia dúzia de casas apenas,— de-
cadente como todas as velhas, tenham sido lindas ou não. Ao lado Carnaxide, mais do
que bonito, guapo! E sabe-se por quê. Mas Linda-a-Pastora, reclinada na encosta da
sua serra, encantoume. . . de fora.
«Dentro é outra cousa,— muito peor. Comtudo, tem seu commercio vivedouro, lá
isso tem e eu fui encontrar uma respeitável matrona, muito bem sentada na sua loja de
capella, a ler o Diário de Noticias d'aquelie dia».
Ninha Velha ou Linha Velha ou Linda-a Velha, menos populosa que Linda-a-Pastora
(a vitalidade esiá sempre na razão inversa da idadi) fica de fronte e ao nascente d'esta
ultima povoação, em logar alto, muito açoitado das nortadas.
Nos arredores de uma e outra aldeã ha boas quintas: a do Roballo, a do Rodízio,
a dos Cyprestes.
Em Linda-a-Velha funcciona uma fabrica de roupa branca (firma Pereira da Costa)
e existe uma Academia Recreativa.
Sigamos para Carnaxide, sede da freguezia, povoação que se recosta na serra do
mesmo nome, e tem deante de si o bello panorama do valle do Jamor com o Tejo ao
fundo.
O orago da freguezia é S. Romão; e a população sobe a 3.657 habitantes.
O onomástico Carnaxide, Carnexide ou Carnechide, segundo Frei João de Sousa,
procede de duas vozes arábicas, cuja aggiutinação quer dizer— ponta ou corno de ovelha,
mas, segundo a tradição recolhida por Thomaz Ribeiro, será corrupção de Kara-a-Cid,
casa do side ou régulo.
A primeira hypothese indica uma região pastoril, e ambas as hypotheses denun
ciam uma região habitada pelos mouros, que na área d'esta freguezia deixaram outros
' Romanceiros^ iii vol.
■' Os primeiros trabalhos liilerarios do padre Francisco da Silva Figueira— Lisboa, i865, pag. 43.
' Artigo do DiiT-io de Noticias, de 6 de outubro de igoS.
A ESTREMADURA PORTUGUEZA
vestígios da sua linguagem, como por exemplo, na praia de Algés e no casal de Alfra-
gide.
A primitiva freguezia de Carnaxide representa o successivo desmembramento da
antiga freguezia dos Martyres, em Lisboa, que tivera por limite occidental o rio de
Oeiras, e que se foi retalhando em parochias, conforme as exigências da população
crescente.
Cariiaxide deve a sua celebridade moderna á apparição de uma imagem de Nossa
Senhora, que, em maio de 1822, foi encontrada dentro de uma gruta, sendo esta, até
então, ignorada pelos habitantes do lo-
gar, e casualmente descoberta por alguns
rapazes que perseguiam um coelho.
A' imagem, feita de barro, deram
logo a invocação de Nossa Senhora da
Conceição da Rocha, mas conservaram-
n'a, venerada, dentro da gruta, d'onde,
a breve trecho, foi roubada uma noite.
Reappareceu, comtudo, sobre uma oli-
veira, ali perto, e reconduziram-n'a á
lapa, onde continuou a ser venerada com
maior vigilância.
Mas o receio de que fosse roubada
outra vez, e a questão que sobre o di-
reito de guardal-a se suscitou entre os po-
vos de Carnaxide e Linda- a-Pastora, fez
que o governo interviesse, mandando re-
colher temporariamente a imagem na Sé
Patriarchal.
E esta resolução foi mantida, ape-
sar do alvoroço que causou em Carnaxi-
de, onde uma velha devota ousou pôr
as mãos no general Sepúlveda, que com-
mandava a força militar encarregada de
acompanhar a imagem até Lisboa.
Thomaz Ribeiro refere-se a este fa-
cto na primeira parte do poema — Men-
sageiro de Fê^.
Esteve a imagem na Sé Patriarchal emquanto, com muitos embaraços^ se ia con-
struindo em Carnaxide, sobre a gruta, o templo que devia recebela definitivamente, e
para o qual Nossa Senhora voltou em i883, mediante auctorisação do governo.
Foi Thomaz Ribeiro, então proprietário em Carnaxide, que promoveu não só a
conclusão do templo, como também a restituição da imagem.
Em 1898, este illustre poeta publicou o poemeto A Rocha, que no anno seguinte
encorporou, como prologo, no Mensageiro de Fé\.
A historia do descobrimento da gruta e do achado da imagem foi estampada n'um
opúsculo anonymo — Memoria de uma lapa, descoberta no dia 28 de maio de IS22,
na ribeira do Jamor, frefiue\ia de Carnaxide, e os mais acontecimentos que depois se Ike
seguiram (Lisboa, Imprensa Nacional, 1^22), o qual opúsculo teve segunda edição
em i8S?. Possuo ambas as edições e também o Hymno, a Vo\ da Gratidão, offerecido
em louvor da milagrosa imagem da Senhora da RoJia, por Jeronj'mo Ezequiel da
Costa Freire. Lisboa, 1825.
359— Registo da Senhora da Rocha
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
No fim da primavera — maio — faz- se era Carnaxide a romaria de Nossa Senhora
da Rocha, havendo festividade religiosa e arraial. E todo o anno ali vão algumas pere-
grinações, como por exemplo a das Filhas de Maria.
Na igreja parochial, que é um vasto templo, sendo de lioz branco o seu portal, e
bem trabalhado o retábulo da capella-mór, celebrase em abril a festa da Senhora do
Amparo, também com arraial, e procissão que se compõe de cinco andores: S. Sebas-
tião, Santo António, S Romão, Sant'Anna e S. Joaquim.
A philarmonica «Fraternidade» costuma acompanhar a procissão.
Em Carnaxide adquiriu uma propriedade, que era contigua á de Thomaz Ribeiío,
o visconde de Moreira de Rey, par do reino.
ms^^
o sr. dr. António Baptista de Sousa, também aqui proprietário, é o primeiro vis-
conde de Carnaxide.
Esta freguezia comprehende ainda os logares de QiJcj^s, Portella e Outorella.
Finalmente, no logar principal da freguezia está organisada uma associação de soc-
corros mútuos, denominada — «Fraternidade Operaria de Carnaxide».
Um conselho amigável: Se o leitor fôr alguma vez a Carnaxide, não pergunte lá
pelo ibode no coro», nem «como se chama a menina».
São contos da terra.
Fica a noroeste de Carnaxide a freguezia de S. Pedro de Barcarena, que ate
i8.S3 pertenceu ao concellio de Bellas, e desde então pertence ao de Oeiras.
Tem 1.340 habitantes, e é servida por um apeadeiro da linha de Oeste.
Esta freguezia tornou-se principalmente conhecida pela fabrica nacional de pólvora,
cujas primeiras oíficinas datam do tempo de D. Manuel, e que foi reedificada em 1725
por António Cramer, arrematante do monopólio.
O mesmo Cramer fez a fabrica de Alcântara, onde eram misturados os simpliccs»
indo depois ultimar-se o fabrico em Barcarena.
Por morte da viuva de Cramer, acabou o monopólio; a fabrica de Barcarena passou
a ser dependência do ministério da marinha.
Havendo em 1774 uma grande explosão no pateo do enxugo, o ministro Martinho
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
de Mello mandou reparar os estragos do incêndio, e augmentar o numero das ofBcinas.
Em 1802, ficou a fabrica pertencendo ao arsenal do exercito.
Houve ainda outras explosões, com maior ou menor numero de victimas, e, por-
tanto, novas e repetidas obras de restauração.
Em 1834, a venda da pólvora começou a ser feita por conta dos contratadores do
tabaco; mas em 1849 voltou a administração da fabrica para o arsenal do exercito.
No anno de 1862, a 17 de maio. succedeu mais uma explosão, cujo estrondo se
ouviu a i5 kilometros de distancia.
36i— Igreja de Laveiras
O motor da fabrica é a agua da ribeira de Barcarena, que passa encostada ao edi-
fício, do lado do poente e que, mudando de nome ao atravessar varias povoações, vem
desaguar no Tejo, próximo do Forte de S. Bruno.
A pólvora sem fumo é fabricada em Chellas, como já dissemos no i." volume.
Entre os logares que pertencem á freguezia de Barcarena, contam-se Queluz de
Baixo e Lecea. ' N'estes e nos outros logares ha varias quintas.
Agora retrocedamos á Cruz Quebrada, para seguirmos caminho pelo litoral.
Já outra vez na ribeira do Tejo, saudemos de fugida a Boa Viagem, que se alcan-
dora no alto, tendo o seu antigo convento de arrabidos sido convertido por Faustino da
Gama n'uma espécie de ampla i'illa, para muitas famílias banhistas.
Segue-se-lhe Caxias — já na freguezia de Oeiras — povoação cortada pela linha
férrea, ficando na parte inferior á linha o Forte, arruinado, e a praia; na parte superior
* O titulo de visconde de Lecea foi concedido a José Pedro Celestino Soares, por decreto de it)
de julho de iSím .
214 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
a casa e quinta do visconde de Porto Covo da Bandeira, e o palácio real, com a sua
quinta sumptuosa, que data do século xviii e pertenceu á casa do Infantado. *
E' este jardim um bom specimcit do gosto rococó com que n'aquella época eram
desenhados os jardins aristocráticos. A esse arrebicado systema, que Luiz XIV puzera
em moda, chama Ramalho Ovúg^o—architecturas vegetaes- Diz este cscnptor, referin-
do-se ao jardim de Caxias: «As avenidas são riscadas por esquadria, em ângulos
rectos. A arvore é decotada em forma de columna, de pyramide, de obelisco. Os tanques
teem molduras altas, lavradas em relevo, como grandes espelhos de salão. As alamedas
parecem galerias. As murtas aparadas, lisas, rectas, em volta do pequeno tanque, de
um vaso de Le Notre, da meza de mármore, do banco esculpido, semelham os biombos
que cercavam a meza do rei sol, quando nas noites de inverno elle ceiava com as suas
damcs, à graud couvert, nos salões de Marlyle-Roy». -
O palácio real de Caxias teve vida de corte quando ali residiu D. Miguel, em i832,
durante alguns mezes.
Depois ficou abandonado, quasi esquecido pela coroa.
Demora junto a Caxias a povoação de Laveiras, com a sua antiga casa monástica de
cartuxos de S. Bruno, ordem aspérrima de austeridade e rigor, que apenas contou dois
conventos em Portugal, este intitulado — Vallis Misericordiíx — e o da Scala Dei, em
Évora.
Para este edifício foi transferida a Casa de Correcção (sexo masculino), que durante
annos estivera em Lisboa no extincto convento das Monicas.
A igreja annexa ao edifício dos cartuxos achase agora restaurada.
De Caxias a Paço dArcos é um pulo.
Esta praia, realmente bonita e desafogada, offerecendo uma bahia para embarcações
pequenas, foi durante largos tempos muito frequentada pela aristocracia lisbonense,
cujas seges e alasões lhe permittiam triumphar da distancia.
O seu próprio nome veiu do paço, com dois torreões e uma varanda intermédia,
alçada sobre três arcos, que, com a respectiva quinta, pertence á familia do conde das
Alcáçovas.
Em 1871"), ainda Ramalho Ortigão escrevia a respeito de Paço d'Arcos: — idizem
que é a praia aristocrática dos subúrbios de Liaboa». Mas, ultimamente, apenas o mar-
quez da Fronteira sustentava com a sua assiduidade aquella nobre tradição que se obli-
terava ali. Hoje, Paço d'Arcos é muito concorrida, sem que possa justiticar pretençõcs
a praia déhie. Cascaes desbancou-a, sob esse ponto de vista.
A vida balnear em Paço dArcos está muito concentrada, e por isso é mais in-
tensa; pois que a povoação fica circumscripta entre a linha férrea e o mar.
A Avenida Marque^ de Pombal, com os seus chalels e arvores, constitue propria-
mente o apanágio moderno dos banhistas.
Ha também um casino, onde a valsa e a intriga giram velozes — como em todas
as praias.
Acha-se actualmente installada em Paço d'Arcos a escola de torpedos tixos, com o
seu respectivo quartel.
' Este palácio, qne estava na posse e usufructo da Corôa, foi cedido pelo sr. D. Manuel II, bem
como os de Belém e Queluz, á Fazenda Nacional, e encorporado nos próprios d'ella com a respectiva
quinta e mais dependências. O governo destinou a parte rústica da quinta para ser applicada á creaçáo
de escolas praticas de horticultura, pomologia, jardinagem, viticultura e artes de constracção civil,
ficando estes terrenos provisoriamente a car^;© da Casa de Correcçiio, e a parte urbana para alojamento
dos serviíjos e pessoal das obras da fortificMção de Lisboa.
- As Praias de Portugal, pat; ;5.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
Fora da povoação, para o lado da linha férrea, ficam as grandes pedreiras que
fornecem de muita cantaria a capital.
Fazem-se era Paço dArcos grandes festas, no mez de setembro, em honra do Se-
nhor Jesus dos Navegantes, cuja ermida foi edificada por subscripção publica e inicia-
tiva do benemérito Joaquim Lopes, heróico patrão do barco salva-vidas da barra de
Lisboa, que tantos náufragos salvou da morte com sublime abnegação e inexcedivei
coragem.
Thomaz Ribeiro cantou-o, glorificando-o, como elle por seus nobres feitos merecia:
Mas Q'este honrado velho a grande acção qual é ?
porque teve honras taes ? Queres saber por quê?
Pergunta aos vagalhões do oceano revoltoso
se elle tremeu jamais ante o seu ronco iroso;
se os filhos, com seu choro, a esposa, com seus ais,
com seu escuro a noite, o raio, os vendavaes,
fizeram trepidar o velho ante o presagio,
as lutas, o clamor, as anciãs d'um naufrágio.
Mal que do mar á praia assoma um ai de dor,
na salvadora barca o homem salvador
lá corre, sobranceiro ao horror do cataclysmo,
salvando a vaja e vaga, abysmo sobre abysrao!
o corpo sem vigor, que a onda ia tragar,
encontra um braço e um lenho e sobre a praia um lar.
Ganhou (que os traz ao peito) hábitos e medalhas,
nunca matando irmãos, mas a rasgar mortalhas.
O barco salva-vidas, que tanta gloria deu a este bravo homem do mar, pertence á
estação de soccorros a náufragos aqui estabelecida junto ao cães.
Joaquim Lcpes nascera no Algarve, mas residia em Paço d'Arcos, onde fundou d}'-
nastia.
Falleceu em 1900 com 90 annos de idade -curtido pelo mar.
Ha, junto a esta povoação marítima, algumas quintas, como a das Covas, que é do
conselheiro Francisco Beirão; outra, do dr. Curry Cabral; — e a dois kilometros a da
Terrugem, ' onde residiu e falleceu o conde de S. Januário.
Foi i.° visconde e i.° conde de Paço d' Arcos o illustre official de marinha Carlos
Eugénio Correia da Silva, irmão do fundador do Diário Illusirado, Pedro Correia da
Silva.
Ha, que eu saiba, em Paço d'Arcos duas associações : uma de Soccorros Mútuos e
outra de Bombeiros Voluntários.
De Paço d' Arcos a Oeiras não vale a pena tomar a linha férrea; vamos pela
estrada velha, e entremos na villa pombalina pela rua Direita.
Villa pombalina, sim, porque foi o grande ministro de D. José que lhe deu alento
e importância; foi elle o i." conde de Oeiras; foi elle que lhe obteve foral em 2? de
setembro de 1760; foi elle que, com a sua famcsa quinta e a dos seus irmãos, aqui
attraiu, além do rei e da corte, grande concorrência de pretendentes e servidores; foi,
finalmente, elle que, sob a apparencia de simples feira, aqui realisou a primeira expo-
sição industrial portugueza, muito antes de 1798, época em que o diccionarista Maigne,
• Esta quinta era, no século xviii, de D. Jorge Francisco de Menezes, marido d'aquella fidalga da corte
de D. João V que ficou conhecida por Flor da murta. A isto alludiu o velho D. José Coutinho de Len-
castre no opúsculo — Passeio.de Lisboa a Cascaes (iSõS), ao falar da quinta da Terrugem: «no fundo da
quinta — diz elle — e sobre pequena ondui<«ção de teTeno (apparece) para a direita uma casa barraca de
flor da murta, em forma de cotage ou chalet, etc.o
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
cheio de falso patriotismo, colloca a primeira exposição d'aquelie género na Europa,
querendo assim dar origem franceza ao que cm verdade não a tem.
A linha férrea corta a povoação. Ha o apeadeiro de Santo Amaro, que serve a
praia, onde tem sido edificado um bairro balnear de chalets; e ha a estação, que fica
próxima á Quinta do Marquez, e serve a extremidade occidental da villa.
Mas nós, seguindo a estrada de Paço d' Arcos, entramos justamente pelo lado
opposto, e vamos descendo até chegar á igreja, grande postoque vulgar, a cuja ilharga
fica o Largo do Egypto (hoje do Dr. Pinto Coelho), com um coreto, e em cuja frente
fica o Largo de D. Carlos com a Escola Conde de Ferreira.
Tomamos ao acaso o nome de algumas ruas: do Marquez, das Alcácimas ', de
José Diogo da Silva, etc.
3i'>2-Paço <l'Arcos- A praia
O novo edifício dos paços do concelho, situado em frente do Largo do Pelourinho,
foi inaugurado no dia i de dezembro de 1906.
Tem a villa poucos prédios bons, e diminuto movimento comraercial — pelo menos
na apparencia.
Os famosos palitos e biscoitos de Oeiras apenas os encontramos no estabelecimento
de José Augusto.
Em caminho para a Quinta do Marquez soubemos haver um theatro com o nome
de Taborda, uma Academia Musical Oeirense e uma associação de Bombeiros Volun-
tários. -
Perguntamos qual a solemnidade religiosa mais importante de Oeiras; disseram-nos
que a procissão dos Passos, o que já sabíamos.
Aproximamo-nos da Quinta do Marquez; — já nos ferem a vista os seus muros
côr de rosa.
' Este nome é também o de um casal, na freguezia de Santiago de Évora, coucelho de Alcobai,'a.
Não sei que appareça em qualquer outra parte. Será talvez corruptella do árabe Alcácema, divisão.
' Ultimamente pub)ica-se na villa um semanário republicano com o titulo O Povo de Oeiras.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
217
O palácio foi mandado construir pelos dois irnnãos mais novos do Marquez, Fran-
cisco Xavier de Mendonça e Paulo de Carvalho de Mendonça, que também adquiriram
e cultivaram, em proveito do primogénito, a quinta adjacente, chamada de baixo.
Agora, de toda a grandeza realenga dos bellos dias de Oeiras o que resta, a não
ser o palácio, quasi sempre solitário, e as duas quintas, que communicam entre si, a
de cima e a de baixo, onde todas as ruas desertas parecem adormecidas ao murmúrio
das cascatas e ao pipilar das aves abrigadas na sombra das arvores seculares ?
Já eu, ao entrar, havia notado na cornija do palácio a grande quantidade de ninhos
que as andorinhas ali teem fabricado, constituindo-se ellas, e só ellas, ousados se bem
que innocentes inquilinos d'esse vasto edifício, que
uma familia poderosa mandara construir, e onde o
próprio rei de Portugal fora hospedar-se por vezes
com a corte.
A meu vêr, o palácio de Oeiras é o mais cara-
cterístico monumento que possuímos do século do
Marquez de Pombal. A estatua equestre do Ter-
reiro do Paço offerece apenas o anverso da meda-
lha, pregoa a grandeza de um reinado em que o
rei, graças á politica auctoritaria do seu primeiro
•ministro, era ainda um dominador, postoque já mor-
talmente ferido pela doença. Os arruamentos da
Baixa são também ainda uma affirmação da força
pombalina que fazia resurgir das ruinas do terre-
moto uma cidade nova. Mas no palácio e nas quin-
tas de Oeiras ha o anverso e o reverso : está a me-
dalha completa. Sente-se, é certo, o esplendor da
época ; mas sente-se também a acção demolidora
do tempo, que amorteceu, em mais de cem an-
nos, toda a grandeza do rei e do ministro; sente-se
finalmente que esses dois homens passaram e que,
não obstante ter sido enorme o seu poder, são hoje
apenas dois nomes na historia, nada mais.
O esplendor da villa de Oeiras passou também com esses dois homens que a en-
grandeceram. Pôde bem dizer-se que esta vi'la foi um improviso da familia Carvalho,
de collaboração com D. José. O rei erigira-a em condado do seu primei'-o ministro em
6 de junho de lySy e elevando-a á categoria de villa dera-ihe foral no anno seguinte. *
Sebastião José de Carvalho e Mello ali tinha bens por herança de seus pães, de
sua primeira mulher D. Thereza de Noronha, que morreu sem successão, e de seu tio
Paulo de Carvalho e Athayde, arcipreste da egreja patriarchal.
Os dois irmãos do primeiro ministro de D. José, applicando os rendimentos dos
seus bens patrimoniaes e os vencimentos que percebiam do estad"» á acquisição de
novas propriedades, vincularam e encorporaram ao morgado de Oeiras todos os bens
por elles adquiridos ou por elles bemfeiíorisados.
Depois, o Marquez de Pombal, por cuja influencia o logar fora elevado á catego-
ria de villa, comprou, mortos os dois irmãos, terras de lavoura, olivaes e vinhas, ar-
redondando opulentamente o seu vasto morgado.
Sabe-se, por um documento authentico, qual era em 1777 o rendimento das pro-
353— Patrão Joaquim Lopes
' O original authentico do foral, escripto em pergaminho finíssimo, existe na Bibliotheca Nacional
de Lisboa, Collecção pombalina, códice 727.
VOL. II 28
2i8 EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
priedades do Marquez de Pombal em Oeiras. Refiro-me a instrucções particulares do
Marquez a seu filho. Avalia elle as producçóes da quinta pela forma seguinte: trigo,
19:200 alqueires a 480 réis; fructo.sde espinho, 2:400-000 réis. Quanto ao vinho, exalta-lhe
a excellencia ; recommenda que o fabriquem sempre com o maior cuidado, que se não
ofFereça á venda á Companhia do Douro, nem se renda a ivgle; do Porto, para não
parecer vingança á Companhia. '
Foi assim, á sombra d'esta família poderosa, que a villa de Oeiras nasceu e flores-
ceu. E' o que a historia testemunha. Mas o interior do palácio e das quintas denuncia
eloquentemente o alto prestigio do Marquez, em torno do qual vinham agrupar-se hu-
mildemente as obras dos primeiros artistas do tempo, as relíquias sagradas, os presen-
tes do Papa, as alfaias esplendorosas e peregrinas. Assim, na casa de jantar, que abre
sobre o jardim, avultam as estatuas de Alpheo e Aretv.sa, obra de Machado de
Castro, o celebre auctor da estatua equestre. Possue o palácio um painel de S. Fran-
cisco, pintado por Ticiano. Foi André Gonçalves, um dos pintores mais notáveis do sé-
culo xvni, que executou os painéis da capella. O quadro representando os três ir-
mãos Carvalhos, de mãos dadas, sob a divisa de Concórdia fratriim, julga-se ser
composição de D. Anna Ignacio Monteiro de Carvalho, a celebre Joanna do Salitre,
assim chamada por ter vivido n'esta rua. O retrato, em miniatura, de Clemente XIV
foi por este mesmo pontífice offerecido ao primeiro Marquez. Não faltam também as
relíquias piedosas e preciosas, os corpos de três santas que, revestidos de cera, jazem
na capella do palácio.
Sente-se, pois, que se está n'uma casa, cuja influencia politica se tornou conhecida
e respeitada em toda a Europa, graças ao primeiro Marquez de Pombal, mas sahindo
das salas desertas para as avenidas solitárias das duas quintas, sente-se também que
todo esse poderio se desfez nas cinzas da morte e nas ruinas da historia. As estatuas,
os bustos, aqui e ali espalhados, parecem chorar na solidão uma época que passou, e
misturar as suas lamentações á voz flebil da agua, que se despenha nas cascatas.
A quinta de baixo, contigua ao palácio, tem, como todas as quintas antigas de
Portugal, esse cunho de grandeza melancólica, que as caracterisa. A luz apenas ali
bruxolea, em consequência da abundância e desenvolvimento do arvoredo, n'um tom crepus-
cular que, pela continuação, se torna monótono. O mesmo acontece, por exemplo, na quinta
de Bellas. A paizagera interior não sorri; antes parece convidar á melancolia. Mas, em
Oeiras, as memorias históricas do sitio, misturadas com um tal ou qual abandono em
que a quinta se acha, reforçam a impressão de tristeza, que o eusemble produz.
A sombra cae ampla e espessa dos bastos choupos, freixos e olmos que povoam
as avenidas: aqui escurece as margens do rio da Lage, que atravessando a quinta vae
desaguar no Tejo; ali cae como um véu de escumilha sobre frescas rosas de maio, que
tentam sacudilo e procurar o beijo de algum tímido raio de sol que, furtivo amante,
entra na floresta.
A Cascata dos Poetas avulta levantada em três corpos disiinctos, cada um com
sua gruta, seu lago e seu terrado. No corpo central, Neptuno, forte e longo como um
cetáceo, reclina-se gosando a voluptuosidade do seu eterno banho, e nos corpos lateraes
os bustos de Homero, Virgiho, Camões e Tasso justificam o titulo dado á cascata, to-
dos ellcs modelados pelo grande Machado de Castro.
Em quanto eu estava observando esta construcção ornamental, que destaca ao ca-
bo de uma avenida sombria, como um panno de fundo, imitando o antigo, pintado por
Manini, passou pelo meu espirito a visão da época litteraria e artística de D. José, vi
' Bibliotheca Nacional de Lisboa, (Jolleci,ão pombalina, códice (jqS a ti 149.
A EXTREMADURA PORTUGUEZA
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mentalmente desfilar a litteratura da mythologia e da Arcádia, sonetos de Corrêa Gar-
ção rumorejaram a meus ouvidos, os últimos eccos da Academia Real de Historia fa-
ziamse sentir na linguagem empolada das Memorias de D, João /, que José Soares da
Silva parecia estar lendo ainda a um grupo de cortezãos. Vi passar por deante dos meus
olhos as sombras do theatino António Caetano de Sousa com os seus doze tomos
da Historia Genealógica, e de Diogo Barbosa Machado com os quatro enormes in-folio
da Bibliotheca Lusitana. Toda essa litteratura vasta e fria como a adega da quinta de
Oeiras, todos esses grossos volumes resistentes e duros como os toneis de vinhatico
que lá estão e que podem receber trinta pipas de vinho cada um; todo esse enxame de
poetas académicos, que povoavam as suas estrophes com as divindades do paganismo,
recebidas da antiguidade clássica como herança sagrada; todo esse mundo de histo-
riadores, académicos e poetas vi eu resurgir por momentos do pó da morte e animar-
se galvanisàdo. A arte da época pombalina evoquei-a na sua principal manifestação, as
linhas correctas das estatuas e dos bustos, do corpo humano, n'uma palavra, o que era
ainda o rescaldo do amor que a Grécia antiga professara pela esculptura anatómica.
Lá estavam em Oeiras as estatuas e os bustos, delineados pelo melhor esculptor por-
tuguez da época. Muito elegantes as estatuas, é certo, mas friamente correctas como a fi-
gura do próprio Marquez de Pombal e como os passos, mesurados mas gelados, do
minuete, que fez as delicias choreographicas d'aquelle tempo.
A mythologia, que apparecia então em toda a parte, na estatua equestre do Ter-
reiro do Paço, onde a Fama emboca a tuba potente, e nos sonetos arcadicos dedilha-
dos em honra de Vénus ou de Cupido, lá está copiosamente representada em Oeiras :
aqui é Neptuno recostado na cascata em toda a pujança da sua estructura hercúlea;
ali é o lago das Quatro estações, personificadas em divindades que symbolisam os sols-
ticios e os equinoxios.
Todo este mundo antigo de deuses e de cabelleiras, de odes e de minuetes desa-
bou nas profundezas da historia. Sobre a época do Marquez de Pombal, tão notável em
progressos, passou a mão dura do tempo, e as suas grandiosas reformas já hoje pedem
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
reforma, se é que não estão reformadas. A Universidade reclama refundição. A instruc-
ção commercial, que elle fundou, viu sobrepor-se-lhe a creação dos institutos moder-
nos. E o sinistro trem mortfero, onde os Tavoras succumbiram, e João Baptista Pelle
acabou, foi despedaçado por esse impetuoso vendaval de liberdade, que soprou dos la-
dos da França.
Na solidão melanco'ica da quinta de Oeiras, se a confrontamos com a tradição das
festas ali dadas em honra de D. José, está a historia completa do valimento e da de-
cadência do primeiro Marquez. Tudo passou: o poder absoluto do rei, a auctoridade
por vezes draconiana de Sebastião José de Carvalho e Mello, e até a preponderância
patricia da sua familia. Todas as familias que devem a sua gloria a um só homem, gas-
tam-se depressa, são como as fogueiras alimentadas por um único toro.
Em lu de agosto de i^b^ foram a Oeiras visitar o segundo marquez de Pombal
a rainha D. Maria I e o rei D. Pedro III. A rainha allegou o fútil pretexto de querer
vêr as cascatas, a dos Poetas na quinta de baixo, as da Taveira e da Alma do ouro na
quinta de cima, mas o segundo marquez viu n'essa visita, cuja relação escreveu, ' um
propósito de reconciliação com a casa Pombal. Houve festejos na villa e na quinta.
Mas foram já um pallido retiexo dos que ah se fizeram em honra de D. José. Os bons
dias de Oeiras tinham passado, o rei e o seu primeiro ministro haviam descido ao tu-
mulo, a pagina da historia portugueza em que a família e a villa de Oeiras se engran-
deceram, tinha sido voltada para todo o sempre. O livro da gloria pombahna estava fe-
chado.
Além das minhas impressões pessoaes, colhidas na quinta de Oeiras, ficam con-
signadas n'este capitulo duas ou três noticias inéditas. Eu entendo que não é licito hoje
a ninguém, ainda mesmo quando se p"oponha tratar ligeiramente um assumpto histórico,
reproduzir apenas o que já está publicado e é conhecido de muitos. Essas noticias são
authenticas, porque sairam da casa dos marquez-is de Pombal para a Bibliotheca Na-
cional de Lisboa. O estado comprou em 1868 os manuscriptos que constituíam o tombo
tanto da casa de Oeiras como da casa de Pombal.
Olhamos ao largo e vemos terras áridas, montes mis; a maior distancia o castello
de Cintra vagamente esboçado.
Decididamente, o que ha de melhor ainda em Oeiras é o que resta dos tempos
pombalinos.
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Muito interessante.
ResponderEliminarObrigado pela partilha.