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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Duas mulheres, dentro do nevoeiro

Duas mulheres atravessam o nevoeiro denso que desceu sobre Lisboa, uma brancura estranha e leitosa, quase palpável, um véu que esconde as coisas e lhes apaga os contornos, como o princípio de uma cegueira ou o esquecimento a roer a memória do que já foi. As duas mulheres não se conhecem, nunca se viram, mantêm uma certa distância de segurança, dez metros que o nevoeiro cerrado reduz à percepção de uma sombra, um vulto, uma presença que caminha pelas mesmas ruas e praças, aparentemente com o mesmo destino, Quem será aquela mulher, pergunta-se uma, Quem será aquela mulher, cogita a outra, ambas perplexas com a sua própria caminhada numa cidade que não reconhecem. Sem querer ainda revelar tudo, posso dizer que a primeira mulher, a de aparência humilde, a que se assusta com os poucos automóveis que circulam, faróis varrendo a brancura suspensa, a que se espanta com as montras das lojas, essa mulher muito direita e digna e de antes quebrar que torcer vem do passado, enquanto a outra, a de aparência mais distinta, a que segue atrás, a dez metros de distância, reparando nos poucos automóveis que circulam, faróis varrendo a brancura suspensa, como quem recorda um filme antigo, a preto-e-branco, essa mulher muito direita e digna e de antes quebrar que torcer vem do futuro. O agora é Lisboa, inverno de 1941, cidade triste, tristíssima, mas preservada do horror que anda à solta pelo resto da Europa, cidade-câmpanula-de-vidro-frágil que estremece com o fragor da guerra lá muito ao longe, como as porcelanas num louceiro quando passa o eléctrico. Ao fim de uma hora de caminhada, as duas mulheres param junto ao portão de um hospital, as duas agora próximas, as duas olhando a fachada do edifício para não se olharem uma à outra. Não me perguntem como se orientaram sem mapa e sem perguntar o caminho a um qualquer transeunte, como atravessaram com tanta certeza esta Lisboa que desconhecem, ou que pelo menos não reconhecem, não me perguntem porque também não sei. A mulher de aparência mais humilde ergue a mão para tocar na campainha mas depois hesita, a mão fica no ar, paralisada, incapaz, e então a outra, a de aparência mais distinta, chega-se à frente e toca. As duas ouvem o som, uma espécie de badalada àspera, as duas ficam à espera. São só elas, ali, dentro do nevoeiro, perto do débil lago de luz desenhado no chão por um candeeiro. Diz a mais distinta, Ai que frio, meu deus, devia ter trazido um casaco mais grosso, e a outra, aconchegando o xaile, Podia ser pior, podia ser pior. Batem os pés, pigarreiam, a mais distinta volta a carregar no botão da campainha, depois aproxima-se e murmura, Desculpe-me a indelicadeza, mas preciso de saber o que a trouxe aqui, O que me trouxe aqui, Sim, A verdade, minha senhora, é que não sei, Como é que não sabe, se eu vinha atrás de si e nunca a vi hesitar no caminho, Não sei, é como lhe digo, levantei-me esta manhã, deixei o meu marido dormindo, saí para a rua, estava um nevoeiro ainda mais denso do que este e uma força qualquer me conduziu os passos, fiquei até com a impressão de que isto é só um sonho e o meu corpo verdadeiro ainda está na enxerga, tremendo de frio entre os lençóis, Se calhar é mesmo um sonho, Deve ser porque não reconheço quase nada do que vejo, ainda agora nos cruzámos com máquinas mais estranhas do que a passarola do Padre Bartolomeu, E quem é esse Padre Bartolomeu, Isso agora teria muito que lhe contar, Ainda não nos apresentámos, Tem razão, minha senhora, mil perdões, o meu nome é Blimunda, Blimunda Sete-Luas, e digo-lhe já uma coisa, para que não se espante depois, em jejum consigo ver por dentro das pessoas, vejo tanto as tripas como as vontades, mas não se preocupe que antes de sair de casa comi uma côdea de pão, não lhe vou devassar as entranhas, A mim chamam-me a mulher do médico, Só mulher do médico, Só mulher do médico, Pensava que toda a gente tinha direito a um nome próprio, ao menos isso, Lá de onde venho é mesmo assim, E o seu marido, trata que maleitas, O meu marido é oftalmologista, Cruzes credo, que vem isso a ser, Trata dos olhos das pessoas, A mim não precisaria ele de curar, que até vejo mais do que devia, há quem diga que tenho olhos excessivos, E o que procura neste hospital, Para ser sincera, não sei lá muito bem o quê nem porquê, a força que me conduziu os passos formou na minha cabeça a imagem de um rapaz alto, com óculos, não mais do que vinte anos, chama-se José, trabalha aqui e a dita força meteu-me na ideia que ele precisa de saber que eu existo, para se lembrar de mim um dia que se ponha a escrever livros, Comigo foi quase igual, a mesma força, a mesma ideia, só não imaginei que viria acompanhada. Quando a mulher do médico se prepara para tocar mais uma vez, a porta abre-se, deixando ver a cabeça de um homem calvo e de má cara, O que desejam, Queríamos falar com o Sr. José, Qual deles, aqui há muitos, É um rapaz novo, alto, usa óculos, Dito assim parece o Zé das oficinas, o serralheiro, o que anda sempre com os livros atrás, Se calhar também escreve, Isso já não sei, mas que lê muito, lê, Então deve ser ele, será que o pode chamar, Vou ver se ele está, as oficinas ainda não fecharam mas pode ter saído mais cedo, esperem só um pouco, Está bem, E quem devo anunciar, Diga que são duas amigas que lhe querem bem. O porteiro virou-lhes costas e encostou a porta, afastando-se pelo corredor fora, murmurando para si mesmo, Logo duas, olha o magano, logo duas, não faz a coisa por menos.

[Versão ampliada de um texto publicado no n.º 93 da revista Ler]
via
http://bibliotecariodebabel.com/

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Felicidade Clandestina

Felicidade Clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade". Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu nao vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo...


Clarice Lispector

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http://www.youtube.com/watch?v=mbSMwUNjwtE