Duas mulheres atravessam o nevoeiro denso que desceu sobre Lisboa, uma brancura estranha e leitosa, quase palpável, um véu que esconde as coisas e lhes apaga os contornos, como o princípio de uma cegueira ou o esquecimento a roer a memória do que já foi. As duas mulheres não se conhecem, nunca se viram, mantêm uma certa distância de segurança, dez metros que o nevoeiro cerrado reduz à percepção de uma sombra, um vulto, uma presença que caminha pelas mesmas ruas e praças, aparentemente com o mesmo destino, Quem será aquela mulher, pergunta-se uma, Quem será aquela mulher, cogita a outra, ambas perplexas com a sua própria caminhada numa cidade que não reconhecem. Sem querer ainda revelar tudo, posso dizer que a primeira mulher, a de aparência humilde, a que se assusta com os poucos automóveis que circulam, faróis varrendo a brancura suspensa, a que se espanta com as montras das lojas, essa mulher muito direita e digna e de antes quebrar que torcer vem do passado, enquanto a outra, a de aparência mais distinta, a que segue atrás, a dez metros de distância, reparando nos poucos automóveis que circulam, faróis varrendo a brancura suspensa, como quem recorda um filme antigo, a preto-e-branco, essa mulher muito direita e digna e de antes quebrar que torcer vem do futuro. O agora é Lisboa, inverno de 1941, cidade triste, tristíssima, mas preservada do horror que anda à solta pelo resto da Europa, cidade-câmpanula-de-vidro-frágil que estremece com o fragor da guerra lá muito ao longe, como as porcelanas num louceiro quando passa o eléctrico. Ao fim de uma hora de caminhada, as duas mulheres param junto ao portão de um hospital, as duas agora próximas, as duas olhando a fachada do edifício para não se olharem uma à outra. Não me perguntem como se orientaram sem mapa e sem perguntar o caminho a um qualquer transeunte, como atravessaram com tanta certeza esta Lisboa que desconhecem, ou que pelo menos não reconhecem, não me perguntem porque também não sei. A mulher de aparência mais humilde ergue a mão para tocar na campainha mas depois hesita, a mão fica no ar, paralisada, incapaz, e então a outra, a de aparência mais distinta, chega-se à frente e toca. As duas ouvem o som, uma espécie de badalada àspera, as duas ficam à espera. São só elas, ali, dentro do nevoeiro, perto do débil lago de luz desenhado no chão por um candeeiro. Diz a mais distinta, Ai que frio, meu deus, devia ter trazido um casaco mais grosso, e a outra, aconchegando o xaile, Podia ser pior, podia ser pior. Batem os pés, pigarreiam, a mais distinta volta a carregar no botão da campainha, depois aproxima-se e murmura, Desculpe-me a indelicadeza, mas preciso de saber o que a trouxe aqui, O que me trouxe aqui, Sim, A verdade, minha senhora, é que não sei, Como é que não sabe, se eu vinha atrás de si e nunca a vi hesitar no caminho, Não sei, é como lhe digo, levantei-me esta manhã, deixei o meu marido dormindo, saí para a rua, estava um nevoeiro ainda mais denso do que este e uma força qualquer me conduziu os passos, fiquei até com a impressão de que isto é só um sonho e o meu corpo verdadeiro ainda está na enxerga, tremendo de frio entre os lençóis, Se calhar é mesmo um sonho, Deve ser porque não reconheço quase nada do que vejo, ainda agora nos cruzámos com máquinas mais estranhas do que a passarola do Padre Bartolomeu, E quem é esse Padre Bartolomeu, Isso agora teria muito que lhe contar, Ainda não nos apresentámos, Tem razão, minha senhora, mil perdões, o meu nome é Blimunda, Blimunda Sete-Luas, e digo-lhe já uma coisa, para que não se espante depois, em jejum consigo ver por dentro das pessoas, vejo tanto as tripas como as vontades, mas não se preocupe que antes de sair de casa comi uma côdea de pão, não lhe vou devassar as entranhas, A mim chamam-me a mulher do médico, Só mulher do médico, Só mulher do médico, Pensava que toda a gente tinha direito a um nome próprio, ao menos isso, Lá de onde venho é mesmo assim, E o seu marido, trata que maleitas, O meu marido é oftalmologista, Cruzes credo, que vem isso a ser, Trata dos olhos das pessoas, A mim não precisaria ele de curar, que até vejo mais do que devia, há quem diga que tenho olhos excessivos, E o que procura neste hospital, Para ser sincera, não sei lá muito bem o quê nem porquê, a força que me conduziu os passos formou na minha cabeça a imagem de um rapaz alto, com óculos, não mais do que vinte anos, chama-se José, trabalha aqui e a dita força meteu-me na ideia que ele precisa de saber que eu existo, para se lembrar de mim um dia que se ponha a escrever livros, Comigo foi quase igual, a mesma força, a mesma ideia, só não imaginei que viria acompanhada. Quando a mulher do médico se prepara para tocar mais uma vez, a porta abre-se, deixando ver a cabeça de um homem calvo e de má cara, O que desejam, Queríamos falar com o Sr. José, Qual deles, aqui há muitos, É um rapaz novo, alto, usa óculos, Dito assim parece o Zé das oficinas, o serralheiro, o que anda sempre com os livros atrás, Se calhar também escreve, Isso já não sei, mas que lê muito, lê, Então deve ser ele, será que o pode chamar, Vou ver se ele está, as oficinas ainda não fecharam mas pode ter saído mais cedo, esperem só um pouco, Está bem, E quem devo anunciar, Diga que são duas amigas que lhe querem bem. O porteiro virou-lhes costas e encostou a porta, afastando-se pelo corredor fora, murmurando para si mesmo, Logo duas, olha o magano, logo duas, não faz a coisa por menos.
[Versão ampliada de um texto publicado no n.º 93 da revista Ler]
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