sábado, 20 de novembro de 2010

NA SUA PRÓPRIA IMORTAL MEMÓRIA

"A nossa melhor atenção é a amorosa. Talvez por isso ninguém ensine tão bem quanto o Amor. Aprende-se de cor como alguém gosta da gema do ovo estrelado. Filho. Marido. Tanto faz, fazemos. Para molhar o pão? Redigo-me. Insisto: de cor significa com o coração. Aprende-se de cor a gema ou os cinco adjectivos para um substantivo, de Eça de Queiroz, dois antes três depois, o pulso nas vírgulas estendidas, bem respiradas, o comprimento do parágrafo desde o ponto de partida, e lá vamos nós, adiante, prosseguimos sem dúvidas, deriva, perdemo-nos completamente, retorno, voltámos sem saber como, conclusão, agarrados: a descrição, nós pela mão, até nos entrar pela retina o que ele via para que nós víssemos. Ou o silêncio com o mundo dentro na grande quietude de Hammershoi. Do calor do corpo, morno de aquecido à exacta temperatura do sono, tão tenra, aprendemos a sensualidade com a Danae de Klimt. Da paixão, technicolor mesmo a preto e branco de sombra, sabemos o que a saber há nos filmes que João Bénard escreveu. Ou será da fantasia? A botânica escondida na corola. Eu própria ainda não descobri, talvez não a ame bem, se a música vem de Bach ou do perigoso ritmo de cobra lenta de Dylan Thomas. Todo o conhecimento é uma forma de apropriação a partir de uma raiz de desejo. Talvez por isso uma boca se possa comer de beijos. Redigo-me: amar é conhecer. Do fundo escuro onde diariamente nos regeneramos ao tecto do céu, conhecer: filho marido texto tela flor imagem som beijo. Conhecer.
Assim, quero dizer, direi: Murasaki Shikibu.
Tudo começa num dia, desconhecido. Tudo começa em 978. Tudo começa no nome: Murasaki. Uns dizem: nome da heroína do romance que escreveu, a amada de Genji, e tornado nome da autora que a concebeu e se recriou e baptizou pela verdade da ficção. Outros dizem: a mãe, tão encantada pela filha acabada de nascer, roubou a um poema o seu nome — a este poema que traduzo muito livremente: quando a violeta está tomada de toda a sua cor, mal notamos as outras flores no campo. Murasaki: criadora do romance, heroína de romance, violeta em flor, raiz de violeta e símbolo da constância, gradação do lilás ao roxo. Como preferir. Todos. Shikibu: tão somente o título de um dos postos que o seu pai ocupou.
Murasaki Shikibu faz parte da história porque inaugurou um estilo literário: o romance. Ninguém antes dela. Ninguém se tinha lembrado de escrever sobre o que vivia. Como vivia: arroz, peixe cozido; um poema-bilhete no leque e um encontro nocturno; a disposição do jardim; a beleza do rosto de uma amiga em flor, adormecida; a cor da seda, a textura do linho; a luz nas grinaldas; as migrações dos pássaros; a frutificação nas copas, o aroma. As relações que se mantinham, os sonhos, os equívocos, as alegrias. A análise do desejo, a origem da felicidade. Uma sucessão de acontecimentos numa linha de tempo que levasse os personagens da vida à reflexão sobre vida, e até morte e à reflexão sobre a morte. Antes dela, ninguém se tinha lembrado. Depois todos. Fê-lo nos primeiros dias do século xi e chamou-lhe Genji Monogatori. A História de Genji. E tão bem feitamente o fez que continuamos a ler hoje, dez séculos depois, de gosto, as aventuras desse Príncipe Brilhante, ao longo de mais de cinquenta anos, em mais de mil páginas. Tantas personagens em 54 capítulos, tantas que desejamos mapeamentos, uma toponímia de relações, e têmo-los. Genealogia de várias folhas: uma árvore para os jogos de nomes e atributos que os substituem. Tantas personagens e nenhuma se lhe escapa por um buraco da teia. Nem o tempo que a faz imensa teia se escapa. Nem o modo no tempo que a faz teia-espelho no reflexo dos fios tecidos. Nem o pensamento que se faz facetado até à poesia como no diálogo junto ao lago, suma de vida. Teia. Olho de Proust. É verdade. Não sei japonês, porém traduzo Murasaki Shikibu por Olho de Proust: não foi Shakespeare o pai do romance psicológico parido pela sua dramaturgia. Sequer da dinâmica relacional. Nem foi Freud que desvelou, do amor, a busca do primeiro rosto. Se foi em Don Juan que?.. Foi com ela. Murasaki Shikibu. Se fosse só isto, teria sido muito. Mais. Blogger. Sim. Ainda que a este género não o tenha inventado, fez um extraordinário blog. Outro nome para o seu registo de memórias, de costumes e de reflexões pessoais de rotação e translação anotadas: a natureza humana. E mais a flora, a fauna, a civilização. Rotação e translação, em volta do eu em volta dos outros, anotadas. Diário. É por ele que sabemos até onde foi rarefeito o cerimonial, a etiqueta, o sentido de estética na corte, um detalhe: quando uma mulher se vestia, reproduzia nos trajes, camada sobre camada de seda, a flutuação da luz ao longo do dia, ou ao longo da estação, ou a floração da árvore. Ela contou de uma sobreposição de vestidos na coloração do narciso, os rosados todos abertos para a brancura na oscilação do corpo até que quem o usava, era o movimento da flor, se a brisa. Uma flor em movimento, disse. É neste excesso de estilização, primeiro degrau do declínio da estética pela opulência, da arte pelo simulacro artístico, da tradição pelo costume, da política pela sinecura, que aponta o advento do que virá contê-lo militarmente: daimios, shoguns e seus samurais nas patas do feudalismo a caminho – galope do por vir. Eram tão exactas as suas descrições que a sua palavra era toda inteira e verdadeira, e quando dizia belo, a beleza estava na sílaba escolhida e era acreditada pelo ouvido. É por ele que sabemos que amava o marido de quem era viúva, apenas uma das esposas, de quem tinha uma filha, também ela poeta um dia. Tempos de felicidade os do curtíssimo casamento. Não tinha dito ainda que este Japão era polígamo? Já conto então. Mais adiante. Porque tudo isto foi depois, entre 1007–1010, quando ficámos a saber que nascer era muitas vezes morrer, pela alegria do filho e pela da recuperação de Akiko, de quem era dama de companhia. Ou ainda está em choque da feliz poligamia? Não fique, é só outro paradigma. Afinal até os chineses chamavam a este Japão, Terra de Rainha ou País de Rainha pelos costumes liberais das mulheres: educação, casa própria, tomar amantes que poderiam ser de uma só noite, muitas, casar com eles, omiti-los ou apresentá-los à família, rejeitar pretendes, herdar. Sim, disse este. O do Período Heian que quer dizer, o que teve como capital a Cidade da Paz. O que sucedeu ao Nara e precedeu o que havia de mudar tudo. Este Japão, o da capital mudada de Nara para hoje Kioto, renomeada Heian-kjo, jo, Heian — os Períodos ou Eras assumem o nome das capitais, ou melhor, das sedes de governo. É uma lógica facilitadora. Heian — 794‑1185: enquanto a Europa, nocturna, apodrecidas as grécias, se atolava na barbárie do tempo escuro das sementes, ao sol nascido, a oriente, a sedução conversava em sílabas métricas com naturalidade do verso livre num jogo rápido de respostas. Não, nem tudo eram rosas, se mesmo ainda há pouco falei da mortalidade neonatal. Mais a peste, fogos sucessivos nas cidades erguidas em madeira e construções contíguas, salteadores, más estradas, corrupção política, burocratização do estado. Todavia arte. Todavia estudo. Todavia cultura. Um arco de trezentos anos que assinala o extremo alto do poder do clã Fujiwara, vindo desde antes, vindo dos primeiros dos dias xintoístas e até à sua decadência. Não tinha dito ainda que Murasaki Shikibu era de um ramo estreito, pequena nobreza sem visibilidade, do tronco largo deste clã? Que o seu pai, poeta e académico feito governador de províncias menores era longemente aparentado do Primeiro Ministro do Imperador Ichijo? Prefere Regente a Primeiro Ministro? Sequer que Murasaki estava ao serviço da segunda das mulheres do Imperador? Ai disse disse, do blog e de Akiko e do seu bebé! Mas antes disto tudo há que repassar na cronologia: o estudo, a poesia, o casamento, a viuvez, a invenção de um género literário, a corte, a expansão do romance, o sucesso, o estudo, as aulas escondidas à imperatriz, o diário, a poesia. Em português, ela gostaria assim, sem margens contadas, um verso subido? Não me apetecia brincar com os bichinhos de conta e o verso ascendeu.
UMA CARTA ESQUECIDA
Quem a lerá?
Quem, neste mundo,
viverá para sempre?
Uma carta esquecida
na sua própria imortal memória.
E depois o silêncio. Depois da morte do imperador Ichijo, Akiko retira-se. A corte com ela. E Murasaki. Um grande silêncio. Mas antes. A educação de uma mulher nobre, de cultura, consistia da aprendizagem da escrita, música e na leitura dos vinte volumes de Kokinshu: poemas lidos, poemas sabidos, usados na banal, nada banal, conversação. Imensa obra. Quem o diz é uma mulher de cultura: Sei Shonagon, autora do maravilhoso Makura no Soshi – o Livro de Cabeceira. Poeta. E fulgor na corte de Sadako. Sadako?! Eu não disse que o imperador tinha duas mulheres? Sadako era a primeira, filha de mais um Fujiwara, filha de mais um Primeiro Ministro Fujiwara, morto, a mais velha, a mais poderosa. Akiko, mais nova, apaixonada, dizem. Ninguém iluminava a corte de Akiko. Ano após ano, Sei Shonagon fazia a luz brilhar sobre os telhados de Kokiden, casa de Sadako e da sua corte, no palácio. E a sombra sobre Fujitsubu, casa de Akiko e da sua corte, no palácio. Foi essa sombra que Murasaki interrompeu de claridade. Por isso a apontam como rival de Shonagon. E talvez tenha sido, é provável que sim. Mas Shonagon não foi sua rival. Não tinha par, jamais teve, do bom gosto à erudição. Tinha, sim, consciência do reverso da sua imparidade: a solidão, uma tristeza sem melancolia da incompreensão, que compreendia tão bem: contou, justificando, da estreiteza que fechava a visão periférica. Compreendia. Fazia escolhas de cuidado e sensibilidade, preferia omitir o quanto sabia, e sabia, por valorizar apreço e aprovação; para se sentir, senão entre iguais, pelo menos, aparentemente, consonante. E sonhava um interlocutor*. Não o tinha entre as mulheres, e os homens viviam do outro lado dos biombos transportados para todo o lado, e em todo o lado biombos, separando o espaço em macho e fêmea, erotizando fortemente os mundos masculino e feminino, unidos caída a noite, separados antes de amanhecer, suspirados entre as horas livres do dia. Tinha-o sonhado antes, sempre. Porque tivera uma educação também masculina, dominava o código masculino do pensamento mais erudito: a língua e cultura clássica chinesas — é preciso perceber esta China como ainda muito mais referente do que a nossa França Cultural até aos Baby Boomers, e ao Budismo como ao nosso Catolicismo, o xintoísmo só regressou depois. E porque nesta educação se revelara brilhante, mesmo nos seus elementos mais complexos. Porque a isto juntara o livre estudo dos Sutras. E o da produção literária feminina, exclusivamente em língua japonesa, e exclusivamente da vida da mulher, se do homem, mais objectificado, mais de carga sexual e romântica. As mulheres eram educadas pela mãe. Na casa da mãe. Ou pela família da mãe. Os esposos não partilhavam da mesma casa. O homem visitava a mulher. Ela recebia-o. Mas Murasaki foi educada pelo pai. Em casa do pai. Imersa no ambiente e família paternas. Por junto com o seu irmão a quem excedia em tudo. É conhecido o lamento do seu pai, o desejo de que esta filha tão dotada fosse homem. Ou, ao menos, que o filho se lhe comparasse. Ímpar. Casou tarde. Com outro Fujiwara, claro. Não era um bom partido, o pai não era rico, era erudito. E a filha falava chinês. Pior: lia e escrevia em chinês com mais elegância do que um homem. A poesia que escrevia, apesar de cumprir todas as regras, ia além. Fazia incensos de rara subtileza. Ainda por cima, além da sofisticação, carácter, beleza. Casou tarde. Foi muito feliz no curto casamento que teve. Já tinha dito, eu sei: gosto de repetir a felicidade. Depois de viúva, começou a escrever o texto que haveria de criar a estrutura do que chamamos romance, a matéria escritiva que o compõe, o conteúdo que o actualiza. E ainda a corte de Akiko à sombra estendida pela solaridade de Shonagon. Por pouco tempo mais. Outro Fujiwara, outro Primeiro Ministro, ouvira desta sua parente. Mandou-a chamar. Ela foi. O resto é a história que já contei.




* No blog MÁTRIA MINHA, um lugar que tive, fiz uma série de 35 textos pequeninos, THE LOST ART OF CONVERSATION: as regras que Murasaki Shikibu não escreveu para as fotografias de Nobuyoshi Araki, uma das coisas que mais gostei de escrever até hoje, sobre isto, ou melhor, a partir disto. E Listas para a Sei Shonagon que as gostava com a mesma lógica interseccionista que eu."

Ps:
a) não há acordo nas datas. Um ano a mais, dois a menos. Foram cinco os que passou retirada após a viuvez? Foram dois?
b) Ichijo, Ichijio, Ichijiô..
c) Teishi/Sadako e Soshi/Akiko eram primas irmãs.
d) há uma lenda: a Imperatriz terá pedido a Murasaki que escrevesse. Ela retira-se para um mosteiro budista e numa noite de luar de Agosto, tem uma visão, começa a escrever a Genji Monogatori. É bonito. Não aconteceu.

Eugénia de Vasconcelos

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“In a certain reign there was a lady not of the first rank whom the emperor loved more than any of the others. ”


"Havia num certo reino uma senhora de primeira ordem que o imperador amava mais do que qualquer um dos outros. "


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