quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

“ É a causa da Liberdade”

O Homem que oferecia rosas, inédito, excertos

"João dos Reis nada entendia de política. Aliás, quando viera para a grande cidade e antes da partida, o padrinho aconselhara-o com brandura na voz mas com firmeza: “João, se queres chegar longe na carreira, nunca te metas em política! Afasta-te dela. Sempre!”

João ficara então com a ideia que essa tal política deveria ser uma espécie de prostituta que nunca tomava banho e que, segundo ouvira dizer, por lhe apodrecer a rata, pegava horríveis infecções e inflamações ao descuidado que com ela se metesse. A verdade é que para além desta ideia aberrante que o padrinho lhe enfiara no subconsciente não sabia o que era política. Na dependência bancária onde trabalhava ouviu diversas vezes alguns colegas aludirem à conquista do sindicato mas também desconhecia esta palavra e portanto ignorava se era ou não política. Outras vezes ouvia falar em liberdade. Esta palavra já era sua conhecida. Prezava-a muito. Achava por exemplo que os pássaros do campo a tinham. Mas ignorava se era ou não política, e se o fosse, se os pássaros, inclusive os da aldeia do padrinho, seriam afinal políticos embora ninguém por lá tivesse dado conta de tal facto.

Um belo dia de manhã disseram-lhe que estavam em greve. João admirou-se e perguntou a um colega mais velho que à socapa entregava uns papéis onde se falava de liberdade e do sindicato e dessa palavra - greve - que ignorava o que fosse. Disseram-lhe então que fazer greve era não trabalhar por uma causa justa. Perguntou que causa era essa. E responderam-lhe: “É a causa da Liberdade”. João dos Reis gostou da resposta. Ele sempre fora pela Liberdade. Nunca pássaro algum que lhe viesse dar às mãos, qualquer que fosse a razão, conhecera cativeiro de gaiola.

- Pois se é pela Liberdade eu também sou pela greve!

Foi assim que João dos Reis se viu numa rua da Baixa, na grande cidade, reclamando Liberdade para toda a gente, para os pássaros nos campos, para os canários e periquitos, e para os bancários, pois claro!

Julgou que tudo fosse uma festa e gostou. As pessoas que passavam na rua também pareciam gostar. Juntavam-se a eles e era maior o coro que gritava: Liberdade!

Estavam nisto pela manhã, e o Sol brilhava que dava gosto, quando na praça grande, aquela aonde a rua desaguava, se viram chegar mais de uma dúzia de grandes camionetas azuis. Alguém gritou em pânico: “É a polícia!”. João admirou-se. Que raio! Também eles viriam para a festa da Liberdade?

Não tardou muito a perceber que se tinha enganado redondamente. Afinal não vinham para a festa, pelo menos para a mesma festa onde João imaginara estar. Vieram correndo rua abaixo o que por si só não quereria dizer nada. Toda a gente anda apressada quando caminha para os festejos. O capacete com viseira, o bastão agitando-se no ar, os cães de ar feroz, os escudos faiscando ao sol, é que o convenceram de que se tinha enganado. Ora, ninguém vai assim para uma festa. Quando atingiram o meio da rua onde os bancários clamavam: “Liberdade! Liberdade!”, eles fizeram-lhe a vontade e malharam livremente em tudo quanto se mexia e tinha cabeça.

Os transeuntes, assustados, fugiam em todas as direcções, tal como o povo da Aldeia da Pinha quando um foguete preguiçoso resolvia estralejar em terra em lugar do céu para onde o haviam enviado momentos antes. Mas quanto mais fugiam mais se assemelhavam às serpentes do José Apolinário escorregando por peitoris de janelas e pelos poiais das portas, e mais cada um dos polícias se transfigurava na figura do mocetão tresloucado decepando répteis a golpes certeiros de machado.

João dos Reis não entendeu semelhante loucura mas via-lhes os olhos cruéis e frios de punhal iguais aos do retrato do avô Carranca e pensou que se a greve era por uma causa justa, a causa da tal Liberdade, também aquela loucura teria uma razão, embora ignóbil, uma causa, se bem que injusta. Desde esse dia decidiu que seria político e sindicalista, mas com cuidado, para que lhe não acontecesse o mesmo que ao Malaquias, a quem a “Secreta” apreendera todos os livros e selara a gaita, tornando-a inofensiva.

A adesão de João dos Reis à prática sindical e à política, em nome da causa da Liberdade, olvidado que ficara dos sábios conselhos do padrinho de baptismo e mais tarde de crisma, o engenheiro Pedro Mendonça, levou-o a ganhar uma nova dimensão para apreciar as pessoas e as coisas, os homens e as mulheres, os bichos e as bichas, e até para se aperceber da marca de classe que a loucura, nas diferentes matizes, necessariamente tem.

Nunca João dos Reis se lembrara tão pouco de Gabriela. A solidão dos primeiros meses na grande cidade despertara-lhe o desejo de companhia e agora que a tinha não a dispensava por nada. Nem sequer ocupava o pensamento em doces recordações. Deixara em repouso, hibernando, a rota que desde sempre lhe dera sentido à vida e o norteara nos seus ainda escassos anos de vida: a busca da estrela dos seus sonhos. Estabelecera amizade com o Lucas e com a Luciana, com o Picanço e com a Cotovia, seus colegas de Banco, a quem não esquecia por muita coisa, e, sobretudo, por o terem levado à descoberta dos mais felizes recantos nos festejos da grande cidade.

Formavam pares interessantes. Lucas era gorducho, excessivamente gordo, e tinha uma cara de velho precoce já que a sua idade não ia para além dos vinte e cinco anos. Ria muito e gabava-se de não ter ido para a tropa por falta de farda que lhe servisse.

O Picanço, por sua vez, assemelhava-se mais a uma ave pernalta de pernas anormalmente compridas do que ao pássaro a quem roubara o nome. Se o Lucas se safara da tropa por ser mais gordo do que convinha aos serviços de fardamento do exército, Picanço não terá sido chamado a cumprir o serviço militar para evitar motivos de chacota que seriam evidentes nas paradas das forças armadas em que participasse. A maior das calças verdes azeitona fabricada pelos serviços de fardamento não chegaria para lhe cobrir as canelas. Daí o terem-no dispensado sem reservas ou condições. A Cotovia, namorada do Picanço, tinha o condão de o fazer parecer ainda mais gigante tão pequena e insignificante ela era. Chegar-lhe-ia à braguilha, se usasse sapatos rasos. Ao umbigo, se utilizasse, coisa que nunca lhe foi vista, um par de sapatos de salto alto.

Moravam os quatro num apartamento alugado na zona norte da grande cidade, quase no limite, ali onde as construções de cimento findavam e no horizonte próximo, como excreções urbanas, se erguiam bairros sujos e fétidos, ameaçadoramente escuros, estranho amontoado de casas sem nexo, paredes desconjuntadas em tábuas de madeira velha e carcomida, tectos de cores bizarras constituídos por várias camadas de latas espalmadas.

João dos Reis saía do Banco às cinco, passava pelo quarto do sótão onde tomava um banho rápido e, de eléctrico ou de autocarro, rumava à casa dos seus amigos, usando de toda a prudência de que era capaz. Lucas dissera-lhe para ter cuidado, que seria perigoso para todos ser descoberta a actividade que os envolvia por inteiro nas horas livres. Segundo ele, quem não fosse do sindicato nacional e desenvolvesse actividade sindical só poderia ser comunista. Achou tudo muito estranho e quis saber o que era isso de ser comunista.

Foi Picanço quem lhe começou a explicar a essência de tal palavrão. Mas fê-lo com voz tão baixa, parecia ter medo de que as paredes o ouvissem, que João dos Reis não entendeu nada. A Cotovia disse-lhe então que o comunismo era uma ideia, uma maneira de ver as coisas, que havia quem sonhasse por um mundo livre, sem ricos e sem pobres, onde todos fossem iguais. João continuou sem entender mas a alusão ao sonho fê-lo dizer que conhecera um amigo assim, capaz de sonhar, que se chamava Malaquias, e que dele, infelizmente, nunca mais soubera. Foi a vez de Luciana lhe revelar que também tinha muitos amigos assim: que eram capazes de sonhar, e que um dia, sem se saber como, também tinham desaparecido. E que nunca mais deles se soubera. João dos Reis falou-lhes da Aldeia da Pinha, do Texana e do José Apolinário, e quis saber se na grande cidade, ou noutras grandes cidades por esse mundo fora, também existiriam loucos como eles. Pressupunha que sim, pelas amostras do que pudera observar desde que à grande cidade chegara. Faltava-lhe conhecimento para ter certezas. Foi de novo o Picanço quem agarrou no fio da meada. De todos era o mais conhecedor de História; não admira portanto que lhe dissesse: “Há diversos tipos de loucos; e de loucura. Deixemos de lado a loucura individual, como a que te foi revelada pelo teu Texana, ou por esse tal José Apolinário. A loucura que conta é aquela que é posta ao serviço dos interesses de uma classe.”

João dos Reis ficou siderado. Jamais lhe ocorrera que pudesse haver assim tanta profundidade dentro da loucura. Picanço reparou no ar incrédulo do amigo e sem qualquer paternalismo de entendido na matéria prosseguiu pausadamente, ao jeito de quem conta uma história:

- Era uma vez um obscuro sargento do exército de um grande país europeu, talvez o maior de todos, não sei bem. O povo dessa nação vivia em grandes dificuldades. Um constante pesadelo. Cada mês um mar de tempestades. Em cada novo dia, sempre uma nova procela. O dinheiro não chegava para metade dos dias do mês mais pequeno e o desemprego alastrava em massa e invadia a maior parte dos lares, assim como as marés vivas de Setembro que inundam os arrabaldes das praias, para já não falar das roupas que engole aos banhistas desprevenidos que assam à torreira do sol. E no entanto era um país muito rico.

- Mas se era um país muito rico, porque tinha tantos pobres e desempregados? - admirou-se João dos Reis.

Picanço, que não se sentiu seguro para dar explicação conveniente, fingiu não ouvir a pergunta e prosseguiu:

- Então o sargento, que era um louco varrido e ainda para mais sedento de poder, acompanhado por outros loucos varridos igualmente sedentos de poderio e de grandeza, inventou a teoria de que o mundo tinha duas espécies de seres humanos, os puros e os impuros. Seriam puros todos os naturais do seu país que não fossem comunistas, nem anarquistas, nem judeus, nem ciganos, nem pretos, nem…, falta-me o termo exacto, olha, que não fossem loucos felizes como tu dizes ser o tal Texana. Vai daí mataram milhões de homens em nome da pureza da sua raça. Mas o mais estranho é que se aliaram no mundo com outros países onde os homens até têm cor de gema de ovo deslavada, o que só quer dizer que a teoria da pureza da raça é uma grande treta. Como vês a loucura do sargento esconde na verdade uma questão mais profunda.

- O quê? - disparou João dos Reis.

- O poder da grande finança que apoiou e deu força ao louco. É por isso que eu te digo que a loucura, ouve bem, a loucura que mais conta na realidade social, não é independente da luta de classes - rematou o Picanço e fechou-se de imediato em copas para que mais tempo perdurasse a sua frase de mestre.

João dos Reis sentiu uma profunda tristeza. Do conhecimento que até aí possuía sobre os loucos, pesando nos dois pratos da balança, os infelizes e violentos por um lado, e no outro os babados e felizes, ainda era para estes últimos que o fiel pendia. Contudo, a história relatada por Picanço viera baralhar tudo na sua mente. Um louco sanguinário, como esse tal sargento, desequilibrara completamente o fiel da balança para o lado trágico. Talvez por isso, um pouco a medo, atreveu-se a perguntar:

- Então, e nessa perspectiva da luta de classes, não há loucos do outro lado?

Ficou feliz por Picanço lhe ter dito que sim. O amigo pôs-se então a falar destes loucos. Contou a história de homens ainda novos, iguais a eles, sem tirar nem pôr, e que um dia decidiram deixar tudo, emprego, mulher, filhos, família, casa, carro, cão e gato, e que até de nome mudaram para lutar pela Liberdade. Vivem em esconderijos, sempre a fugir, mudando constantemente de poiso para que a “Secreta” os não apanhe. De vez em quando há um que cai nas mãos da polícia; mas a boca fecha-se e nem às piores torturas ela se abre para denunciar os companheiros.

- Pois é. São mesmo loucos! - foi espanto tudo quanto assomou ao olhar de João dos Reis pois esta loucura nada tinha que ver com todas as que conhecera até então.

- São. São loucos. Mas da loucura que dá asas ao sonho e à Liberdade!



Jacinta, abalada com a partida de João, embora desde há muito suspeitasse que mais dia menos dia ela acabaria por acontecer, encontrou finalmente o arquétipo do seu falecido marido. Bem o merecia, pois Jacinta, sendo desde há muito um fruto maduro, conservava ainda as cores, a polpa e o sumo que tornam saborosas as frutas.

Encontrou-o na esplanada do costume, enquanto falava de novo sozinha.

Artur Santos entretinha-se a dar de comer aos pombos que lho vinham buscar à mão. Este primeiro facto fizera calar Jacinta e pô-la em alvoroço; não toda ela; sobretudo o seu coração.

Depois Artur começara a falar com as aves e tal acontecimento despertou-lhe a memória adormecida, a caixa secreta onde guardara as mais doces lembranças da personalidade do defunto.

Quando Artur Santos se pôs a distribuir moedas por um bando de garotos da rua e lhes disse: “É para gelados”, Jacinta arrepiou-se toda e experimentou com emoção a surpresa de lhe parecer ter a seu lado, finalmente, o sonho que a perseguira desde há mais de vinte anos.

A última vez que supusera reencontrar em vida a réplica do falecido marido fora ao conhecer João dos Reis. Precipitara-se. Daí o engano. Agora algo lhe dizia que não repetiria o erro. Artur Santos não era apenas ele. Era ele e o outro. Melhor ainda. Era o outro, o defunto, feito ele. Os detalhes neste caso pouco interessam. O que é certo é que passado um mês, Jacinta e Artur Santos, estavam juntando os trapinhos.

Jacinta desta vez não se enganaria. Voltara a viver como gostava, enleada num amor que a prendia completamente, e com o qual ela prendia Artur da mesma forma, livremente obsessiva, conscientemente absorvente; mas eram felizes porque ambos assim gostavam de se amar e nem sequer saberiam viver de um outro modo. Jacinta aprendera à sua custa que não valia a pena mostrar-se como não era; nem nunca seria capaz de ser; ou a aceitavam com as suas qualidades - que teria muitas - e com os seus defeitos - que também teria alguns, como todos os têm - ou nada feito.

Tratou pois de pôr os pontos nos is a Artur Santos: “Far-te-ei feliz, se jamais tiveres pensamentos fora de mim!”

Ora, por uma simples coincidência, Artur Santos pensava exactamente da mesma maneira, pelo que, pensando de imediato em voz alta, lhe disse: “Fica combinado! Nenhum de nós pensará sozinho. Pensaremos sempre alto por forma a que cada um saiba sempre o que o outro está pensando.”

Jacinta sentiu-se feliz e para evitar o paradoxo do impossível acrescentou: “Se algum de nós pensar quando estiver sozinho, mal nos encontremos, contaremos logo todos os pensamentos ocorridos, sejam eles quais foram.”

Não podiam ser mais felizes aqueles dois. Tão felizes que se habituaram a pensar como se uma só alma possuíssem e até nem lhes apetecia pensar na ausência um do outro, com receio de que depois não conseguissem, sem querer, reproduzir com exactidão tudo o que tinham pensado.

Mas, como tudo na vida, não há regra sem excepção. Os espíritos são difíceis de entender e nem sempre o estado do corpo ou a influência do exterior os deixava imunes aos pensamentos privados. Ora, se um violava de vez em quando a regra do pensamento a dois, e disso tinha absoluta consciência, era natural que admitisse que o outro também o poderia fazer; certamente que o faria. Surgiam momentos de desconfiança e então partiam a loiça. Jacinta esmurrava-lhe a cara e puxava-lhe pelas orelhas e pelos cabelos. Artur Santos não queria ficar atrás e largava-lhe um par de tabefes e uns empurrões nem sempre devidamente ponderados.

Depois de muita violência, normal e comum em casais que se amam desta forma tão intensa, e tão partilhada, apanhados os cacos, reparavam que não existia no chão qualquer fragmento de pensamento individual, e caíam nos braços um do outro. Abraçavam-se demoradamente, choravam e riam, o amor entre ambos crescia, e assim se ia fortalecendo
."

José Murta Lourenço



José Murta Lourenço nasceu na aldeia de Estoi, concelho de Faro, em 2 de Dezembro de 1949. Licenciou-se em engenharia electrotécnica no final de 1977. É autor de já vasta e reconhecida obra literária.

via
http://manuelcarvalho.8m.com/lourenco0.html

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