quarta-feira, 18 de maio de 2011

Mediocridade, partidocracia, mérito e democracia

"A mediocridade não tem obra, suga a alheia. Não é uma identidade activa, prospectiva, é aquela forma sem vértebra, hábil em mexer cordéis que a pessoa do oportunista ou instituição manobram nas águas turvas de um caminho que se trilha sem sobressaltos, de modo garantido, fermentando o bloqueio dos processos, sacaneando o parceiro, o outro ou outra entidade, e disso colhe o que procura como lucro privado e íntimo – o medíocre é perito na oportunidade, é oportunista, e não concorre com o outro pela qualidade da coisa pelo jogo da alternativa, o medíocre corre com o outro pela via do bastidor, do truque, é chico-esperto. Ele é o pilar da imobilidade e na imobilidade tem a sua renda – nada melhor que um deslize dos prazos das obras, que um reajuste orçamental, que um poleiro inútil, pouco visível e pago em senhas de presenças, viatura, refeições, horas fora de horas, salário directo no NIB, férias, prémios de desempenho pela invisibilidade competente, etc.; nada melhor certamente que a criação necessária de uma Fundação desnecessária, que uma comissão que se prolonga por objectivos não atingidos e plena de reuniões não realizadas, nada melhor que fingir na simulação bem urdida a mudança para que tudo fique na mesma. Ele é o filho-da-puta de que fala o Alberto Pimenta, aquele do discurso que se cola à ocasião que, não o obrigando a nada, o mantém à tona garantindo-lhe as benesses tramadas ocultamente e fazendo fluir o pequeno e o grande tráfico em que está envolvido.

A mediocridade não produz riqueza, é improdutiva, porque justamente na média apenas se concretiza o que a inércia concede e não aquilo que, inventado – sair da crise é invenção e não aplicação de receitas anteriores -, o futuro necessita: a tal riqueza própria criada que, investida em democracia, poderia viabilizar um país livre e não uma bagunça descoordenada em que justamente reinam os mais medíocres, daqueles que também ganham as eleições porque espelham um desígnio da média que vota na média e da bagunça que é seu habitat – o ambiente em que as coisas crescem como viroses, doença ideológica conformista, é o habitat da política portuguesa que, sem verdadeiras rupturas, não encontrará respostas saudáveis ao que tem de enfermo. Os medíocres adoram as águas turvas e nesta opacidade ambiente prosperam, nada melhor que manobrar em lugar oculto, em estranhas associações, em reuniões de três e de cinco, em plataformas negociais de interesses privados de grupo, aí residindo o espaço de decisão dos verdadeiros poderes. De um espaço a outro o medíocre faz o seu caminho. Da loja para o grupo, do grupo para o partido, do partido para o voto concelhio, do voto concelhio para o geral. Da eleição para o cargo na empresa, da empresa para o Ministério e vice-versa, assessor, administrador, consultor, executivo de topo, chefe de gabinete, membro de conselho de administração com cargo não executivo, director-geral, presidente do conselho de administração, secretário de Estado, accionista anónimo de capital saqueado por via habilmente legalizada, predador imobiliário e mesmo usurário: eis os meandros. Quantas donas Brancas não singraram com o aval das instituições mais supostamente sérias, ungidas de auréola moral e de auréolas de outro tipo, religiosas e a da infalibilidade tecnológica aliada a uma competência que nunca se traduz em melhoria, nem em resultado palpável, nem tem dimensão humana?

Será a democracia, a democracia do voto? Não, não é. Porque mais de metade da população não vota, isto é, mais de metade não reconhece esta democracia como uma democracia e nela não se faz representar. Como um corpo sem as patas de trás, com meio pulmão e um coração mecânico que se arrasta para uma debilidade cada vez maior. Se aos que não votam se juntarem os votos brancos e nulos há uma vasta massa de criaturas fora do sistema que, na realidade, não vota na média e que portanto não se identifica com a mediocridade instalada, mesmo que o sistema em que reinam os que fazem da média o seu poder os caracterize como desistentes, irresponsáveis e outros epítetos. Estes fora do sistema não são necessariamente a maioria silenciosa do medíocre Spínola, nem a massa amorfa dos supostos absentistas do voto, nem são tão diferentes de uma grande parte dos que votam e que o fazem sem opinião, por puro mimetismo ou empurrados por terceiros, mesmo obrigados e alguns levantados da cama quase mortos para a ela voltarem para expirar sem a paz merecida depois da cruzinha preenchida no cacique mais ou menos familiar.

Os que não votam são mais do que os epítetos que lhes querem colar à pele e são muitos, são a maior maioria e uma maioria feita de imensas diversidades – é um estudo por fazer e ninguém o faz, menos ainda os sociólogos, estes teriam de ir para o verdadeiro terreno e constituir equipas esforçadas e persistentes, mais do que manipular segundo as circunstâncias amostras ditas paradigmáticas ou dados estatísticos mais que suspeitos a favor de teses que são anteriores à própria investigação para confirmarem os seus estudos académicos nada experimentalistas. Estas zonas por investigar, estes buracos negros da democracia, continuam cuidadamente fora de ser objectos de investigação, e portanto nas profundezas do ignoto por razões obviamente do sistema que só tende à reprodução das malformações convenientes a quem o estrutura laboriosamente nos limiares promíscuos da relação entre público e privado.

Os que não votam são, seja como for, a prova de que a democracia dos medíocres não os consegue convencer a que votem, trinta e tal anos depois, ou de que nem lhes chega o desejo de votar sequer através da voz institucional e massificadora do direito de votar – os partidos também não saem de votações baixas, vistos os números -, o que significa que há quem esteja fora do sistema por precariedade total e que por essa razão, que esta democracia não combate de modo que a aprofundasse, nem sequer acede ao voto, mesmo perante o proclamado direito a saltar-lhe em frases publicitárias frente aos olhos cegos – no país da estatística somos não sei quantos alfabetizados, até licenciados - cujos canudos se adquirem na versão de Bolonha como produtos brancos de supermercado - mas no país real somos maioritariamente iletrados e incapazes de criar riqueza libertadora.

Nos partidos abundam os fiéis que apenas fazem número, mesmo que nos partidos exista um potencial de transformação dos próprios partidos justamente junto dos que são apenas os marginalizados seguidores não fiéis. Os partidos praticam o simulacro da pluralidade mas são partidos cujos eleitores votam os secretários gerais em votações na casa dos noventa por cento, à moda das tradições de homogeneidade acéfala que conhecemos. Dos outros, dos elementos dos partidos e seus aliados ditos independentes, directamente sistémicos, há que indagar quantos agem pelo interesse geral e com que competências. Quantos parlamentares produzem de facto matéria legislativa? Quantos intervêm? Que qualidade tem o material produzido? Quem fala disso ou analisa isso? Quantos têm posições próprias, reflexão sobre as matérias que supostamente conhecem? Ensaios, estudos, análises? Não basta ser capaz de levantar o braço, nem basta ser capaz de reproduzir um discurso que o chefe proferiu antes. Cada deputado deveria ser um partido para quem o elegeu, o verdadeiro representante da categoria glocal – global e local -, como diria o Marc Augé.

À verdadeira escola, à verdadeira cultura, não escaparia a tal criação de riqueza que libertaria o país, o que não é apenas uma conversa de crescimento com uns quantos algarismos percentuais para satisfação de cabeças estatísticas. Porque a essa escola só pode corresponder uma cultura – resultado também da escola estética, da prática e fruição das formas de conhecimento específicas desses discursos fundamentais - da qualificação constante com incidência económica, no quadro de uma política do mérito eleita como regra democrática e ambiente crítico - o respeito desta formulação colocaria que percentagem da actual classe dita política no desemprego, ou no devido emprego?

Assim sendo, uma maioria de portugueses não vota por estar fora desta democracia e por não reconhecer na lógica representativa, tal como é praticada e manipulada, uma verdadeira dignidade e verdade de representação, sentem-se exteriores ao sistema, excluídos da política como ela é praticada pelos que se auto-nomeiam políticos e pelo sistema que também os nomeia desse modo. A delegação de interesses num suposto grupo de pessoas proposto por partidos e que é escolhido dentro dos partidos por uma via absolutamente privada – são associações privadas com vocação pública, o que não significa representação do interesse público – para ulteriormente ser ungido pelo voto da eleição geral, é um mecanismo que na realidade funciona de modo corporativo e segundo interesses que não respeitam a representação mas que, pelo contrário, são expressão de formas de desenvolvimento de tráfico dentro dos partidos e entre as capelas partidárias e as empresas e também de outros interesses, nomeadamente salariais e de cargos – o cargo de deputado europeu o mais ambicionado, claro. Fora deste esquema não há verdadeiramente partido algum, já que nos partidos que apenas acedem aos poderes públicos e não aos poderes empresariais e financeiros, o mecanismo interno de selecção de candidatos e de acesso aos poderes internos deixa muito a desejar e não procede de modo que funde competências político técnicas, nem paradigmas de funcionamento interno democrático capazes de gerar trabalho e obra como dedicação ao país e ao planeta. Os candidatos não são sujeitos a critérios de verdadeira exposição e combate democráticos, são objecto de listagens e de lutas de lugares, de hierarquias, sendo raro o espaço de uma verdadeira pluralidade de opinião e posicionamentos geradora de dinâmicas não dirigidas de modo dirigista e resultados de lógicas mais que de antagonismo de conjuntura. O trabalho lento, diverso e íntegro de um verdadeiro projecto concreto de alternativa futura não surge com a consistência da projecção possível na prova prática, há programas de partidos totalmente indigentes e ainda mais sectores da realidade ignorados nos próprios capítulos que se lhes dedicam. O caso da cultura é paradigmático e nunca nada se diz sobre as políticas do património, dos museus, da língua, das artes plásticas, do cinema, do audiovisual, do teatros, das artes performativas em geral, da criação, da internacionalização, do livro, da divulgação e animação culturais, da inscrição no território das estruturas de criação como componentes da identidade contemporânea nacional e do espírito de tradição universalista europeu, da articulação entre as artes como profissões e os ensinos como um caminho para lá se chegar, etc., nunca nada se diz sobre a importância dos clássicos, mas finalmente fazem-se declarações pomposas sobre as potencialidades económicas de Pessoa como marca e do inglês técnico para nos abrir a porta do paraíso. Nenhum partido tem dentro de si uma verdadeira capacidade de experimentação do futuro e lamentavelmente nenhum deles desenvolve na sociedade civil um verdadeiro campo de experimentação social em antecipação do que de facto desejaria desenhar como futuro, mesmo de um modo apenas “apontado”, a partir da própria realidade organizativa interna partidária e adjacente. O decréscimo de forma organizativas próprias de modelos de sociabilidade democráticos, tais como as mutualistas, as formas cooperativas e autogestionárias, as universidades populares e outras formas organizativas de livre iniciativa – organizações privadas sem fins lucrativos – são hoje em dia, no todo social, formas residuais ou de entretenimento terapêutico/social, e mesmo os sindicatos não se desenvolvem verdadeiramente como um vasto campo de cultura alternativa sob formas organizadas socializadoras, para além do combate político no estrito sentido da oposição ao poder governativo de um modo muitas vezes apenas como contraponto mecânico, puramente reactivo e não autonomamente activo e livre, potencia de futuro.

Os partidos, para serem partidos que representassem o interesse geral teriam de, no plano interno, funcionar de forma abertamente democrática e segundo as leis gerais da exposição e do debate abertos. Seriam casas do exercício da política como ciência pública da governação do que é comum. Uma organização não pode ser parcialmente oculta no seu modo de vida associativo privado e reivindicado como tal como ideal para si mesma e depois, em condições determinadas, representar o interesse nacional e geral. É uma contradição nos termos, uma impossibilidade. Os interesses representados para serem gerais não podem gerar-se nas micro estruturas de simbioses identitárias, de fulanizações humoradas e de pequenos interesses, os interesses imediatos dos próprios. Os partidos são geridos por lideranças e o seu sistema de voto interno é, como se sabe, manobrado ao ponto de existirem dentro dos partidos formas de tráfico dos cargos a que se candidatam, inclusive sabendo-se de candidatos que pagaram para serem candidatos a determinados cargos.

Claro que os partidos se podem organizar como quiserem e fazer as reuniões que entenderem como entenderem, mas não podem, por essa via da sua vida interna, reivindicar uma legitimidade de representação do interesse geral. Ao interesse geral só pode corresponder uma identificação absoluta com o que ele é e isso significa, para além de exposição clara às regras da democracia transparente, que os cargos públicos a que se candidatam, parlamento e governo, não deveriam ter, nem corresponder, a nenhum tipo de privilégio nem de salário elevado, mais elevado que o comum dos mortais – o combate dos partidos nunca seria, deste modo, por nada que o comum do cidadão não pudesse fruir e almejar pelo seu trabalho normal. O verdadeiro representante do interesse público não deve estar acima dos seus concidadãos quanto a meios de vida, nem gozar de nenhum tipo de privilégio.

A democracia não se coloca estas questões porquê? Pela simples razão de que é um sistema que serve apenas directamente parte dos que votam, mais ou menos, e os partidos que são proprietários da democracia – é uma democracia para os partidos e não para o interesse de todos. O interesse de todos está longe de poder ser representado pelos partidos e por isso a democracia é muito mais do que os partidos são, embora o sistema remeta para estes o exercício do poder político de uma forma absolutamente imperfeita para aos tempos que correm. A necessidade de encontrar formas pós partidárias de representação do interesse geral está em cima da mesa e é de uma urgência vital. O que acontece na realidade está para além do que os partidos podem e são. Outras formas de exercício do poder dos cidadãos são necessárias de modo a que a inscrição da participação dos cidadãos na vida colectiva se faça como a crise o exige. Ainda recentemente o provou a manifestação da “geração à rasca” cujo primeiro resultado é o da superação da própria condição geracional em que surgiu, o que é um sinal extraordinário de possibilidades futuras. O potencial de mudança da força surpreendente que ali emergiu não encontra formas de participação adequadas à sua própria força de mudança. A sua força de mudança corre o risco de se esgotar no nada.

Num sistema democrático estes sinais de presença e de actividade positiva política encontrariam os seus mecanismos de inserção dinâmica, transformadores, canais abertos á participação e neles os qualificados, os mais capazes e com provas dadas, obras de transformação criativas, seriam reconhecidos pelo mérito do que realizam e por essa via eleitos como líderes de projectos, como mais capazes, como líderes sociais. Mais que uma campanha eleitoral o que deveria guindar alguém a eleito seria a sua obra, ter realizado mudança, coisas palpáveis, ser um criador de formas de liberdade e qualificação da vida dos outros e da riqueza comum."




Fernando Mora Ramos
via

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