quarta-feira, 18 de maio de 2011

O enterro do conceito

"O conceito era elementar em filosofia. A sua vértebra mínima, e por ela se formavam corpos de potencialidade analítica. Corpos diferentes uns de outros tal como as vértebras se corporizassem. E que diria um conceito? Uma espécie de pensamento, de apropriação de uma experiência traduzida numa formula que a trouxesse a uma evidência mental. Uma evidência portanto conceptual, que resultasse da articulação de formas de apropriação conceptual de realidades objectuais exteriores, de fenómenos e dinâmicas materiais. O conceito será lapidar, um grau de abstracção quase perfeito na revelação de algo que se possa isolar, na realidade, como experiência reconhecível, realidade objectiva, verdade insofismável. Pelo menos assim parecia ser, como por exemplo o conceito de realidade, de conjuntura, de objectividade, de determinação em última instância pelo económico, de subalternização do prospectivo crítico ao real, ao pragmático, do escravizar da alma ao corpo, finalmente tão pesada quanto ele. Assim parecem ser as coisas, isto é, aquilo que na realidade são os seus princípios ordenadores – o princípio da realidade por oposição ao princípio onírico ou utópico -, pondo as coisas na sua ordem hierárquica, submetendo a uma condição marginal, depreciada, o que são as coisas da fantasia, do desejo convertido em ficção, da fome de tudo o que não se come como substância real, materialidade palpável, pensamento que não seja rasteiro, não pensamento.

Mas o conceito veio à baila não como forma elementar do que em filosofia é o elemento mínimo de uma articulação discursiva, mas porque o conceito hoje se democratizou – massificou - ao ponto da sua prostituição, aplicável ao que for que se possa consumir, adquirir por um preço. O conceito do interior da casa, o conceito do menu, o conceito da sobremesa, o conceito de colher de mesa e de faqueiro, o conceito do que a eito é o conceito do que for, a lingerie certamente mas, menos do que isso quando isso já é quase nada, o conceito mesmo de como colocar a anca no prato da sedução publicitária mais canhota possível, aquela que leva uns a optar por uma pastilha elástica em vez da outra.

O conceito nunca desceu tanto quanto o que possa ser essa instrumentalização do conceptual como modo de vestir o que se queira vender, mais do que outra coisa qualquer que também tem direito ao seu conceito, uma nobilitação do que a mercadoria mais comezinha possa ser, uma ascensão do trivial aos céus do jet-set por exemplo, que sabemos ser um novo Olimpo, o Olimpo do negócio do kitsch com as suas boçalidades analfabetas de gosto e drama de pacotilha, tal como nos episódios sangrentos do folhetim oitocentista, tão em voga no ecrã da era televisiva e digital. Como se os conceitos fossem tamanhos diferentes de frutas idênticas de uma mesma árvore que não suporta nenhuma outra enxertia porque esgotou a sua imaginação genética.

Eu já enxertei uma maçã meio bravo de Esmolfe numa Starking e a macieira não fez a síntese, antes cada enxerto deu o que já era, contra qualquer mestiçagem. Neste caso a árvore do saber pode evoluir como uma biblioteca previsível e cada ramo seguir a sua constelação de revelações específicas de um mundo que são mundos limitados de um ilimitado horizonte – o que é uma biblioteca senão a impossibilidade de esgotar o saber?

Quando me perguntam pelo conceito das calças e me dizem que é o de ter as bainhas levantadas, ou de exibir uma cintura abaixo do umbigo, claro que entendo que o conceito se massificou e se aplica a qualquer coisa, mesmo ao que não se dá bem com ele, certamente o próprio peido, mais difícil de conceptualizar mesmo que outros odores tenham conceito. E daí o que nos vem? O que vem daí é que a vulgarização do que possa ser pensar qualquer coisa é, desde logo, rebaixado pelo facto de que qualquer coisa é conceptualizável e que portanto, o conceito, aplicado a tudo e nada, nada possa ser. E é este o problema. Nada pode revelar-se como algo perceptível se a força reveladora do conceito se tiver prostituído ao ponto de se fingir como profundo o que é apenas trivial. Quando o trivial reduz a profundidade à ditadura da sua superficialidade estamos definitivamente incapazes de sequer perceber o que andamos a fazer e de finalmente tomarmos consciência de que já não somos os mesmos, aqueles que sonharam com uma democracia que superasse as características da democracia formal, a que fala de direitos humanos apenas na lei. Direitos que, nos tempos que correm, estranhamente, são consumidos permanentemente como uma justa potencialidade de futuro a ser sucessivamente destruída como vulgaridade do que é instrumentalizado, pois a sua forma de uso retirou-lhe a substância crítica, faz parte dos póqueres de sedução mediática dos jogos de poder e maquilhagem dos poderes, que se estão nas tintas para o efeito de momento pois sabem que a seguir, outro efeito de momento virá e que o único efeito de momento relevante é o que está próximo de um qualquer acto eleitoral, momento de excepção da feira dos partidos e seus produtos, altura em que o animal político é exposto como criatura dialogal e faz acrobacias verbais mais ou menos circenses para encantar a plebe. Na realidade, a política deixou de ser a arte da governação para ser mais um território de negócios. Não há político que não tenha acções e cargos de renda, empresa privada, cadeira num conselho e de administração ou numa assembleia de poder, e mesmo os que apenas estão no negócio parlamentar não deixam de, aos olhos da massa, ser uma espécie de PME de interesse próprio e de grupo, pois a renda, mesmo com o Almeida Santos a dizer que é pouco - e o Presidente do PS sabe do que fala - é um insulto se pensado relativamente ao salário mínimo nacional. Pois de que vivem e de que vivem muito melhor que os demais se não é daí? Pois é, o conceito, na esfera da recepção, e tudo é recepção pela homogeneização do que faz a cultura hoje – não há vida fora do mercado - a esfera aquisitiva trabalhada pela generalização do publicitário como a forma específica da cultura pós moderna, significa que o poder é o poder desse negócio das imagens constante de um combate de galos de que as estatísticas são o preço de saldo em constante oscilação no mercado dos votos. Para além dos que vão sendo chutados para fora do mercado eleitoral – os que falam d o acesso a esse gesto como direito, universalidade, falam só como manual, como delegados de um clausulado abstracto – os outros ou votam por interesse ou de modo alienado, não há três vias pois todos vendem gato por lebre, mesmo os que pensam que vendem lebre por gato, mesmo os que se vendem com a marca da autenticidade sincera. Como disse o bispo Januário Torgal, só uma ruptura interessa a Portugal.
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por - Fernando Mora Ramos

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