"As crianças, nas suas visitas de estudo, poderiam conhecer o mar, a pesca, os Jerónimos, a Serra da Estrela, etc., e poderiam mesmo conhecer outras coisas, como o interior dos interiores junto às casas mortas das aldeias da pura memória, as famílias solitárias, a árvore mais antiga de Portugal, o ruivaco de regresso à ribeira de Alcabrichel, a vaca açucarada das Caldas, o rio Homem, as falésias da costa vicentina, as Terras de Suão, as vinhas do Douro, o montado alentejano, o porco preto e o porco da farinha de peixe ou lá o que lhe derem para engordar, a aquicultura e a pesca à linha, a lagoa de Óbidos, o vinho dos mortos e as invasões francesas no seu sítio, A Dos Francos, o silêncio que resta no interior mais interior do último arvoredo português cercado de eucaliptos e tantas outras coisas vitais que nenhuma folha A 4, nem A 3, nem a própria alcatroada A OITO, nem um romance de duzentas páginas de títulos possíveis de ficções poderiam conter. Poderiam conhecer coisas muito diferentes. Mas agora o que se passa é que as crianças fazem visitas de estudo a centros comerciais e têm aulas de como comprar e vender coisas e pessoas, pernas de pessoas da bola biqueirada e cabelos e unhas assim e assado e como encurtar ou aumentar o nariz, formas de desenhar as partes íntimas e piercings de pendurar nos artelhos para dar nas vistas aos artelhos adversários na competição global, pois tudo se aprende para sermos competitivos e exportar como diria o professor Cavaco, o que der para exportar, até a avó claro, uma avó de qualidade, competitiva. Numa outra vertente, as nossas crianças, têm também aulas de novela, de como consumir outros que, deste modo, muito maus ou muito parvinhos, são tão descartáveis, ou menos, que o urso de peluche, pois esse não discorda, só abre o corpo ao abraço, nem urrando, pois as pilhas, logo gastas, esgotaram-se no tempo de um abraço apertado, sem medida calibrada. É isto, segundo os analistas psicólogos e sociólogos e mesmo engenheiros, mais os opinian makers TVvisíveis – os do fazer o pino opinativo -, que se passa hoje em dia: a transposição dos afectos, antes humanos entre humanos, para os animais de estimação vivos humanizados pela nossa capacidade de os ficcionar e pelos beijinhos pedagógicos nas babas diversas, pois os animais mortos, os de peluche, não satisfazem o afecto predador dos miúdos e dos que, adultos, ficaram adolescente e infantes – o adolescente retardado abunda e o sempre infante também (conheço alguns que já vão nos sessentas e são responsáveis e estimados pela sociedade como seres pensantes e relevantes apesar de às escondidas namorarem o bibe e terem muitos cd’s para fazer castelos como com legos - este tipo humano espalha-se como uma nova fé no Império das famílias hiper-protectoras). Os miúdos gostam de apertar muito o bicho vivo e não o morto, pois este não responde e portanto não é interactivo e não o sendo não é pedagógico, num abraço que, por vezes, é de urso e nada de peluche. Estes bichos vivos, que se vendem em lojas da especialidade – nunca vi tanta passarada em gaiolas e tanta selva a morrer - já passaram há muito a soleira da porta e ocuparam no leito o lugar do parceiro ou parceira. Muita gente gostaria de ser bicho de estimação e uma grande parte desta gente que tem esse desejo gostaria mesmo de atingir o estatuto do gato de divã, esse animal que faz a psicanálise à dona, ou dono, com o seu ronronar inteligentíssimo e que depois, num gesto de cumplicidade sadomasoquista arranha a dona nos pontos conhecidos da acupunctura para lhe expulsar o tóxico stress erótico pelas narinas, por onde também saem certas alergias primaveris – o erotismo, que é uma prática e não um acidente, exige alguma escola e que, ao mesmo tempo, se não perca a inocência do primeiro impulso, tudo com muita blindagem por causa das bactérias e dos vírus e das contaminações. É o próximo passo talvez, o casamento entre espécies diferentes, por exemplo entre um camelo e um habitante das beiras, ou entre dois camelos com bossas diferentes, ou entre um camelo estúpido e um dromedário inteligente, ou entre uma iguana e duas vanessas, ou entre dois camaleões em regime de beliche por acoplagem com dois furões em extinção mais que havida, tudo na mesma toca de 4 assoalhadas e quatro camas de casal para sexo rotativo em digressão doméstica – como nos rodízios brasileiros, essas manjedouras amazónicas -, ou mesmo entre um lagarto, uma pomba e um gambozino, casamento nocturno como as composições do Chopin para depois dos sóis postos, ou mesmo entre dois caniches que tenham frequentado o colégio alemão e um rotvailer que tenha andado no francês, ou para finalizar esta listagem aberta, entre um Sócrates que ladre inglês técnico e um conselho de administração qualquer que fale estatística e em que faça de centro de mesa um Coelho, por exemplo – isto não é ironia sobre os casamentos gay, que é uma conquista maior que Abril como qualquer Sócrates dirá, é sobre o casamento apenas, esse selo de afecto carimbado pelo institucional que mata o passional embrulhando-o numa expressão legal e em supostos direitos, que correspondem a deveres e situações de auto castração das liberdades libertinas e outras, que obrigam a modos de vida estritos e que são muito bons para a nossa sociedade de mercado, para a família e para a santa casa que, como sabemos, põe esta gente toda a comprar lotaria na porta da desgraça, à entrada do tsunami de serviço ao esbulho a que nos sujeitam, nós filhos bastardos da Europa, essa Puta e do FMI, esse proxeneta. Os nossos netos, o futuro, os nossos filhos, o futuro, agradecem em nome dos afectos e da dívida que carinhosamente a sociedade do hiper-consumo massivo constrói com denodo, gentileza sorridente e muitos embrulhos, os mais criativos que se possam imaginar. Somos aliás o primeiro produtor mundial de papel de embrulho e laços, e vamos exportar o mais que pudermos para sair da crise para uma nova crise tão boa como esta que tem muitos centros comerciais."
Por: Fernando Mora Ramos
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