terça-feira, 17 de maio de 2011

poema ambicioso

se eu ladrasse gemesse ou uivasse em vez de falar
ninguém me levaria a sério ou levavam-me a sério
de maneira errada e ofensiva por isso deve ser por


isso que por vezes passo muito tempo sem dizer
nada o silêncio é discreto ninguém dá por nós podem
limpar-nos o pó da cara e das pernas porque nos


confundiram com a cómoda no canto do quarto e
não tem importância nós ficamos imobilizados
como uma estátua para não os assustar não vale


a pena perturbar-lhes a rotina e se nesse momento
ladrássemos havia de ser engraçada a reacção não
posso evitar tive de me rir ao imaginar a cena se


eu soubesse cantar ou tocar piano também podia
falar sem usar a garganta a boca a língua mas se
tocasse flauta já seria diferente quando me dou


ao trabalho de pensar um pouco descubro coisas
interessantíssimas acontece-me quando aquilo
que designo por inspiração ou ímpeto criativo


me abandona não será curioso claro que é curioso
contribuir para denegrir aquilo a que alguns
ingénuos ainda designam por poesia e que lhes


dá tanto trabalho e tantas emoções fabricadas
na oficina em que cinzelam sem descanso as
peças de oiro que acabarão no fundo de um


armário antes de serem definitivamente enviadas
para a lixeira municipal mais próxima denegrir a
poesia a literatura nem sequer me diverte na


verdade o projecto é muito antigo o que acontece
é que eu nunca tinha tido coragem de ir tão longe
distante da pátria dos escritores dos legisladores


de meia dúzia de tolos tontos que se tomam por
especialistas da literatura e pensam que alguém
lhes presta atenção a minha liberdade é total o que


eles dizem o que eles pensam nem sequer chega ao
meu conhecimento a maior parte das vezes e quando
chega não me merece grande atenção como dizia


no início se pudesse ladrar uivar gemer e até tocar
piano ou oboé a situação mudava radicalmente
só que embora me importe pouco o que possam


pensar do que eu faço a maior parte das pessoas
não tenho competência suficiente em nenhuma
dessas artes daí o meu silêncio quando se esvai


aquilo a que chamo a inspiração o ímpeto criativo
a minha sintaxe desconjuntada não me leva a lado
nenhum bem sei mas se escrevo provo que existo


não abandono o lugar que é meu a ninguém oh não
se alguém o quer ocupar empurre-me rasteire-me
insulte-me tente assassinar-me daqui não saio

J Camilo
via

http://nadanientenadaniente.blogspot.com/


http://www.ovni.org/

provincialismo e carros fixes
[...]

Num dos dias entrei no perímetro do Centro de Congressos do Estoril dentro de um belo carro, um Mercedes descapotável último modelo. Antes de tentar entrar na faixa de rodagem destinada ao parque de estacionamento reservado, precipitaram-se sobre mim, e o carro, vários polícias com sorriso e postura amável que indicaram a direção com grande espírito de serviço e boa educação. Em seguida, vários jovens de fatinho ofereceram-me o dístico de Parque, que me incluía no grupo dos eleitos, e instruções, sorrisos, senhora doutora para aqui e para ali, ocupando-se de me arranjar um lugar e de me ajudar a estacionar ao lado dos outros Mercedes e BMW. E nem era eu quem guiava. Ninguém me perguntou o que ia fazer ali ou se tinha direito a parque reservado. No dia seguinte, entrei no mesmo perímetro reservado ao volante de um velho Twingo com o dístico ‘dos eleitos’ bem à vista. Os polícias mandaram-me logo parar com ar carrancudo quando tentei avançar para o parque, apesar de ter o dístico bem colocado. Onde é que pensa que vai? Disse onde é que eu pensava que ia. Um jovem carrancudo, olhando o dístico do carro com reservas, foi buscar uma lista e perguntou-me se estava ligada a alguma instituição. Consultou a lista, olhou para o carro, consultou o colega, e comecei a passar-me. Já tinha mostrado uma identificação, um cartão com uma fita a atestar que era speaker, ele continuava a procurar um modo de me expulsar do reservado. Disse que ia apresentar o último orador, Mohamed El Baradei. Não se deixou impressionar. Aí, um dos outros subitamente baixou a cara para me olhar bem e reconheceu-me. Tudo mudou. Disse-me logo para passar. Outro polícia carrancudo olhava para aquilo com desconfiança. Lá entrei no parque. Ninguém me ajudou ou arranjou um lugar de estacionamento.
Este pequeno filme português também podia e devia ser apresentado não aos finlandeses, mas a todos os portugueses. É o traço comum do nosso subdesenvolvimento. Os pobres curvando a espinha e tirando respeitosamente o chapéu da cabeça perante os fidalgos da casa mourisca. E, para ser rico, neste país, basta ter um bom carro. É símbolo do status. Não admira que não haja empresário pato bravo que não queira ter um Ferrari Testarossa. Se eu entrasse de Aston Martin não era eu que apresentava o Baradei, era ele que me apresentava a mim, segundo a ontologia daquelas cabecinhas dos jovens de fatinho que pululavam. O fato de Francisco Fukuyama, por acaso, era dos mais amachucados. Se entrasse com ele no Twingo punham-nos fora.
[...]


Crónica: A mentalidade do criado, Clara Ferreira Alves

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