quinta-feira, 28 de outubro de 2010

“Os pés de Rudolf Nureyev”


"Foi uma alegria quando o sexto esquerdo do prédio dos meus pais foi comprado. Finalmente, o último apartamento seria ocupado. Acabava, assim, o corrupio de potenciais compradores, gente que entrava e saia, examinando cada recanto, mexendo em tudo, olhando-nos, seus potenciais vizinhos, com a mesma frieza com que olhavam os mármores da entrada e os alumínios dos caixilhos. O prédio seria, por fim, poupado ao embaraço desses estranhos que pareciam fazer troça do nosso lar. Podia repousar na tranquila alegria de uma família completa. Logo se soube que o apartamento fora comprado por um casal de professores aposentados. Tinham apenas um filho que acabara há pouco tempo o curso de medicina. As características do novo agregado familiar agradaram a toda a gente. Num prédio de funcionários públicos, donas de casa, militares de pequena patente, retornados, um casal de professores proporcionava a decência escolástica que o exercício do professorado ainda gozava naquele tempo. Um jovem médico exerceria, por outro lado, uma boa influência nos miúdos que cresciam naquele bairro dos arrabaldes de Lisboa. Feita a mudança, o casal instalou-se. Os professores aposentados eram muito educados. Nunca estacionavam o carro no lugar dos vizinhos e traziam o patim da escada impecavelmente limpo. Já o filho, o jovem médico, logo na sua primeira aparição, provocou nos habitantes do prédio um desconforto miudinho. Era uma sensação estranha que não sabiam explicar. Parecia um bicho cocegando a pele.

Esguio, seco como um ramo, de rosto pálido e comprido, o rapaz fazia lembrar um louva-a-deus. Tinha lábios finos, hirtos, tensos. Os olhos, cinzentos, muitos claros, eram bonitos, quase transparentes, de vidro, como se neles nos pudéssemos assomar para lhe espreitar o avesso. Vestia-se com uma certa informalidade moderna que muitos vizinhos confundiam com desmazelo. Usava o cabelo pelos ombros e trazia sempre uma mala a tiracolo. Movia-se com discrição. Em silêncio. Parecia procurar as sombras para que ninguém o visse. O jovem médico, andrógino, ligeiramente extravagante, tão silencioso, foi olhado com desconfiança. Um dia tudo se esclareceu: o rapaz afinal não era só médico. Também era bailarino. Fazia parte de uma companhia de dança clássica. Foi um desassossego. Os habitantes inquietaram-se. Um bailarino, ainda que médico, não era uma influência saudável na juventude do prédio. Os rapazes mais velhos andavam quase todos na Afonso Domingos. Tinham o destino traçado. Era um futuro de sucesso e virilidade que os esperava. Seriam engenheiros mecânicos, engenheiros civis, engenheiros químicos, engenheiros electrotécnicos. Se algum, mais sensível, não se sentisse atraído pelo funcional mundo da engenharia, poderia ser sempre arquitecto. Um bailarino destoava daquele quotidiano de fundações sólidas e inabaláveis.

Eu, pelo contrário, quando soube da notícia, fiquei encantada. O meu mundo, circunscrito ao prédio, ao centro comercial do bairro e ao externato, não tinha bailarinos, nem cantores, nem pintores, dispensava a poesia e a imaginação. As pessoas que conhecia, coitadas, eram tão concretas! Por essa altura, influenciada pelo comunismo da minha tia, vibrava com as vitórias das ginastas russas, apreciava genuinamente os desenhos animados checoslovacos. Gostava, sobretudo, de me encostar no corpo da tia Dé, para assistirmos aos programas de televisão que glorificavam o socialismo soviético. Foi neste contexto, embalada nos braços de fêmea da minha tia, que, num documentário sobre a vida do bailarino russo, descobri os pés do Rudolf Nuriyev. Como boa aprendiza, não me interessei pela história da fuga. Queria lá eu saber por que é que o bailarino fugira da pátria amada e se enfiara no covil mais sujo do mundo! O que me impressionou, e para sempre se gravou na minha memória, foi a imagem dos seus pés. Eram uns pés monstruosos, feiíssimos, calejados, totalmente deformados pelas longas horas de treino em pontas. Com as suas calosidades, os seus ossos corcundas, os metatarsos deslocados, as falanges e falangetas libertas da sua posição inicial, soltas numa amálgama de tecidos moles, eram uma imagem impressionante de sofrimento e perseverança. Mostravam também que a beleza pode nascer da feiura. Aqueles pés equídeos eram os mesmo que sustentavam o corpo esguio do bailarino e o fazia voar pelo palco, com uma leveza de pássaro alado.

Foi então que pensei: se o tal Rodolfo Nuriyev, que era bailarino, tinha pés deformados, também o meu vizinho bailarino os teria. Era um silogismo simples que permitia conclusões irrefutáveis. Os pés do jovem médico tornaram-se numa obsessão. Precisava de os ver! Quando subia com o jovem médico no elevador, a primeira coisa que fazia era olhar para baixo. Porém, ele trazia sempre os pés enfiados numas alpercatas vermelhas. Eu bem tentava perceber, através da lona áspera, a forma dos seus pés. Mas nada. Nem um joanete, nem um aleijão, nem uma curva duvidosa se mostrava para me sossegar a curiosidade. Estava quase a perder a esperança quando finalmente lhe pude ver os pés. Certa manhã, saindo do prédio com a minha mãe, percebi que o jovem médico subia a rua em sentido contrário. Os pés vinham livres, enfiados nuns chinelos. Antecipei, com deleite, as sensações de surpresa e horror que iria experimentar. Apressei o passo. Quando nos cruzámos, enquanto a minha mãe cumprimentava o jovem médico, olhei-lhe para os pés. Tive uma desilusão profunda. Devo ter soltado um grito pequenino. Para meu desgosto, eram uns pés grandes, normais, de dedos longos, sem qualquer interesse, nem um calinho se topava naquela pele macia, naqueles pés de deus grego. A normalidade daqueles pés pareceu-me grotesca. Não fora a minha mãe puxar-me pela mão e teria invertido o sentido da marcha para os observar com mais atenção, para me indignar com a sua banalidade.

O tempo passou. Apesar de mal se dar por ele, continuava a procurar as sombras, o jovem médico passou a ser o exemplo de um mundo de certa bizarria que não era o nosso. Uma manhã, estando na sala a ler, escutei na cozinha, a voz da minha mãe e da minha tia. Falavam em murmúrios. Calaram-se quando entrei. Percebi que era do jovem médico que falavam. Se calhar, pensei eu, também elas haviam reparado nos seus pés normais! Afinal, a tia Dé vira na televisão o documentário sobre o tal bailarino russo! Ela sabia que os bailarinos não tinham pés macios, normais, bonitos! Até que, certo dia, percebi que só eu vivia angustiada com a normalidade dos pés do jovem médico. Estava perto do elevador. Esperava que a minha mãe chegasse com o correio para subirmos, quando, vinda da escuridão fresca da garagem, surgiu uma mulher. Olhei-a de alto a baixo. Trazia o cabelo apanhado com muitos ganchos. Não era bonita, nem feia. Nem gorda, nem magra. Nem alta, nem magra. Era apenas uma mulher. O rosto pareceu-me vagamente familiar. Subiu connosco no elevador. Usava um vestido pingão às cornucópias, que parecia escorrer-lhe do corpo, escondendo formas e saliências. Calçava sandálias de couro e, por isso, pude ver-lhe os pés. Depressa percebi que conhecia aqueles pés. Por tudo aquilo que não eram, de tão normais e banais, aqueles pés tinham ficado gravados num canto qualquer da minha memória. Eram os pés do jovem bailarino, só que estavam postos no corpo daquela mulher. Olhando-lhe para os pés, percebi que afinal a mulher fazia-me lembrar o jovem médico: tinha os mesmos olhos transparentes, de vidro, aguados, tristes. Puxei a mão da minha mãe, muito aflita, como que a tentar explicar-lhe a razão do meu tormento. Quando saímos no terceiro andar, mal a porta se fechou, perguntei-lhe o que se passava, quem era aquela mulher que estava no nosso prédio e se apossara dos pés e do rosto do jovem médico. A minha mãe procurou a chave na mala, meteu-a na fechadura, rodou-a sobre si própria, uma duas, três voltas, abriu a porta. Depois, esgueirou-se para o quarto, dizendo que tinha de tirar os sapatos que lhe magoavam os pés. Quando voltou, descalça, perante o meu olhar inquisidor, como se falasse da coisa mais natural do mundo, explicou que o jovem médico fizera uma operação e se tornara numa mulher. Mandou-me fazer os trabalhos de casa e fugiu para a cozinha. Fiquei parada, no meio do corredor, na companhia dos deuses de sândalo, espantada com aquela revelação. Como podia um homem transformar-se em mulher? Podia acontecer-me o mesmo?

O assunto foi esquecido. A minha mãe e a minha tia, por vezes, falavam do jovem médico, sem maledicência ou preconceito. Só estranheza. O meu pai, porém, franzia-se todo. Homossexuais, lésbicas, transexuais, eram uma estirpe de proscritos. Não eram dignos de desprezo ou nojo. Apenas de indiferença. Como os intocáveis da sua Índia natal. Calei as minhas dúvidas durante muito tempo. Anos mais tarde, percebi, naturalmente, o que acontecera. O rapaz do sexto esquerdo livrara-se de um corpo que não era seu. Porventura, fizera uma vaginoplastia, redesenhara a sua intimidade, arrancara de si um pedúnculo de raízes fundas, mas podres. No seu lugar, crescera uma flor muito frágil e simples. Era um acto de profunda coragem que punha em causa as leis do mundo, de deus e do nosso prédio. Desejei que a metamorfose do seu corpo lhe trouxesse paz. O jovem médico, tornado mulher, deixaria de procurar as sombras. Foi o que pensei. Voltei a subir no elevador, muitas vezes, com a médica. Assisti ao seu envelhecimento. Passou a usar óculos. O cabelo ralo cola-se ao crânio, sem graça ou beleza. Parece trazer sempre o mesmo vestido de cornucópias. Deixou de dançar e engordou um pouco. Os pais morreram. Vive sozinha no sexto esquerdo. Da janela da marquise do apartamento dos meus pais, onde gosto de observar a rua da minha infância, vejo-a chegar. Estaciona o carro no lugar onde o seu pai estacionava um datsun azul. Tira um ou dois sacos de compra. Movimenta-se com lentidão. Continua a procurar as sombras. Já não estranho que, há muito tempo atrás, tenha sido o jovem médico bailarino que fez tremer os alicerces do nosso mundo. Perdoei-lhe, há muito, o facto de ter uns pés normais, sem o grotesco encanto dos do Rudolf Nuriyev. Vista da janela, procurando as sombras, sempre as sombras, apenas me custa a sua solidão, que é imensa.
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